DELÍRIOS DA PRISÃO (1973)

“A tortura é, muitas vezes, um meio seguro de condenar um inocente fraco e de absolver o celerado robusto. É esse, de ordinário, o resultado  terrível dessa barbárie que se julga capaz de produzir a verdade, desse  uso digno dos canibais, e que os romanos, malgrado a dureza dos seus costumes, reservavam exclusivamente aos escravos, vítimas infelizes de um povo cuja feroz virtude tanto se tem gabado”

(Cesare Beccaria, 1764)

 

Após ser torturado por dias seguidos na sede do DOPS em São Paulo, o torturado, antes de morrer, ouviu de um dos  torturadores, extremamente detalhista:

– Fique ligado! Essas torturas não são institucionais.

 

A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero  humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti…

(John Donne)



Mais importante do que a força física é a renitência do caráter. Pode alguém obrigar outro a fazer o que não quer? Não pode! O translado é um mergulho no nada, sem a noção do tempo e do rumo, ainda mais nestas condições. Temos corredores infindos, salas embaçadas de fumaça, refletores potentes e homens sem rosto, iguais, homogêneos, que gritam palavrões e desferem golpes com a propriedade de um lavrador que rasga o ventre da terra. O medo de há muito se foi atrelado à esperança. Ficaram as dúvidas, algum ódio, e muita, muita ânsia, o desejo de, como um deus, instaurar um facho de luz e olhar as horas, saber se é dia ou noite, se posso morrer. Viver é quase desnecessário. É como ser arrancado para mais uma sessão de tortura: não importa muito, desde que não tenha caído, mais uma vez, no ardil do sonho. Quando senti algo assim? Nunca! Queria sempre avistar o outro dia, o mero transcorrer das horas já me incentivava, como se o operoso tique-taque estivesse refletindo a construção do mundo. Quanta ilusão no bojo do tempo futuro! Se, de repente, a “nossa” revolução triunfasse? O que me falta aqui são esses tique-taques denunciadores de um mundo que pulsa e lobriga. Nada é mais desesperador do que o relógio da parede, coberto de jornais. Podem me negar a noção de tempo, e de eternidade, como se fossem deuses? Roubar-me a alma, deixar o corpo zanzando, sem sair do lugar? Zumbi estacionado. Eles são idiotas. Poderiam acenar com a retirada do jornal e eu contaria tudo o que não sei, mas que eles gostariam de ouvir. Um “nada”, porém, não fala, e sou um nada. Um deles disse: você não é nada, nada, um objeto, uma coisa. Uma coisa tem passado? Pode não ter futuro. Desde criança que sou valente, homem, hoje eu não sei o que é isso. Os conceitos, os juízos, as distinções de uma maneira geral, parecem-me difusas, como se de repente eu tivesse ficado isento, imune, diferente das outras pessoas. Quando eu era pequeno, peguei uns moleques assim na raça, na afoiteza, os quizilentos apostando no tamanho. Quanto mais alto o pau, maior a queda. Os meninos do mesmo tope eram canja de galinha, café com leite. Falo mesmo é dos grandes que se faziam de bestas comigo e eu encostava assim na posição de ataque, sem o menor temor. O arreliado, perdendo a paciência, aplicava-me um tabefe, aplicava-me dois tabefes e no “aplicava-me três tabefes”, já estava impressionado com a resistência, então era fácil aplicar um murro no baixo ventre. Metia a zorra e debandava célere, que a fuga aí já não era mais de covardia, mas de estratégia de ação beligerante. Se acontecia eu não poder acertar o golpe, aguardava; a derrota inicial nunca era o desfecho da guerra. Coletava trapos, ensarilhava armas, bodoques de tiras de câmara de ar, espadas de pau, pedras pontiagudas, urdia infalíveis planos e partia para vingança. Tínhamos normas éticas de guerrear, isto tinha. Era proibido, por exemplo, pegar o inimigo à traição ou ir dois contra um porquê isto é covardia. Precisava chegar de frente, peito aberto, não cerceando a defesa de ninguém. Imagine se quem vai “morrer” não pode exercer o seu direito de continuar vivendo. Neguinho da rua já conhecia as regras. Era tudo a mesma coisa. No jogo de bolas de gude, surgia a dúvida e o suscitante gritava: tem mida. Começava a medição. Se a dúvida não era dirimida, o prejudicado anunciava: tem laúza. A partir daí tudo era possível. Primeiro, vinha o corte formal de relações: um juntava os dedos indicadores e o outro cortava no meio, selando o desacordo verbal. Se a briga não começasse logo, os colegas impacientes davam um adjutório. Faziam um risco no chão, que simbolizava a mãe de um dos conflitantes, e incentivavam a violação. O outro, de regra, vinha e pisava. Era briga inevitável. Briga limpa, você sabe quem era o inimigo. O inimigo sem rosto muitas vezes não é nem sequer adversário. Um deles me disse: não tenho vergonha de ser de direita, eu também sou idealista. Defendo a propriedade, a família, que vocês querem exorcizar. Olhe para dentro de si prisioneiro, tem certeza que aguentará? Você está nas mãos do exército regular e genuíno do povo. Olhe para dentro de si prisioneiro, você é um “coisa”. O que eu veria se olhasse para dentro de mim? Um cancro invisível durante toda a vida? Sim! Acompanhou-me, alimentou-se do meu alimento, desenvolveu-se nas minhas entranhas, nutriu-se do meu caráter. Só que, agora, é tarde, tarde demais para extirpá-lo. Pois, se nem vontade tenho e é como uma hemorragia fatal que sangra, sangra, esvaindo os vasos, mas acenando com uma morte lenta, absorvente, bem ao gosto dos heróis que admiro. Não! Não é esta subjugação física que me fará negar o passado. Posso não ter é futuro. Não poderia jamais negar a minha existência pautada num único e nobre esforço: reforma. Tempos longevos, férias no sítio novo, e a realidade injusta já pressentida. Triste sina! Eu espicaçava o mais eu podia o tempo acordado para conceber planos, métodos, política de ação e, em última hipótese, contundentes ataques. Coceirinha nos olhos, dificuldade de mantê-los abertos, mas a assembleia estava reunida. Sono e fantasia: incisivos discursos em nome da paz, liberdade, justiça social. Sono e sonhos: erradicação da miséria, a verdadeira noção científica da propriedade, exércitos irregulares se movimentando. Dormia? O cancro invisível supurou por toda minha vida. Inquietação, ânsia, renitência quase mórbida foi a consequência. O tempo formaria em meu íntimo um núcleo portentoso e vivo que resistiria incólume às arremetidas persuasórias — sustentava-me na minha ebulição e inconstância, como a querer aviventar a saga da roça do mato. A história não se repetiu. Muitas outras bastilhas solapadas continuam indenes. Que nostalgia da roça do mato, das promessas de tio Raimundo Nonato. Que diferença faz, agora? Quem já viu a morte de perto e sabe que ela voltará, tem conhecimento de como ela é. Aquela dor e desilusão, vontade de cantar. “Eu vou embora…”. Compor a coreografia da dor e expressar a desilusão no canto. É como você cultivar uma alma mordaz. Depois, a alma mordaz fica desdentada, magoa as gengivas e chora. Então, você fica só você, mas não quer ficar sozinho. Precisa chorar ou escrever um livro. Puta que los pares! Tem que ser muito inteligente para escrever um livro bem grosso. Prefiro escrever cem poemas como “A rosa e o rio”. Foi por isso que comprei a “Arte de Escrever” pelo reembolso postal. Joguei fora as revistas de fotonovelas, os gibis, os catecismos de putaria. Como não foi suficiente, adotei os gregos e os quinhentistas. Quando foi mesmo a primeira desilusão literária? Quando, após tentativas frustradas de leitura, reconheci, afinal: os clássicos estão ultrapassados. A salvação, a única salvação era escrever cem poemas como “A rosa e o rio”. O crime era não escrever. Dever de português: descrição da sala de aula. A folha em branco na minha frente, prontinha para ser preenchida com palavras e mais palavras, parágrafos e mais parágrafos, o tema me parecendo árido. Eu, ávido de ideias, o cérebro inerte, perplexo, confuso. No outro dia o professor (“Contenho e supero”, era o lema dele), sem maniqueísmos, leu dois trabalhos. O de Rodrigo estava bom. É bem verdade, dissera o professor, que pecou pela falta de ênfase, energia ascendente em direção de um cume. Os elementos deveriam ser dispostos paulatinamente, convergindo para a consecução de um objetivo único, fatal, já inculcado no espírito do leitor. Aqui, a primeira característica da ênfase, o leitor tem que absorver facilmente a ideia principal, esquecendo os pormenores. Reparassem neste exemplo do mestre Ruy: — O regato corria murmuroso e descuidado: encontrou o obstáculo: cresceu, afrontou-o, envolveu-o, e, afinal… afinal o que, seu José? O que eu poderia dizer? Afinal, enche mestre. Já está cheio seu José, já está cheio! Observe o que falei: envolveu o obstáculo, cobriu-o e só pode ser com água, com líquido, porque se trata de um regato. Então? Então, derrama. Mais precisamente seu José: transpõe, galga, ultrapassa. É a conclusão lógica, exceto se o senhor estivesse lá sugando a água. A turma se divertia, gozava com o meu trabalho. Seu José, a sala de aula só pode ser um lugar de estudo. Seu José, descrição topográfica não tem nada a ver com os professores. Seu José, os alunos constituem o corpo discente e não docente. Fiquei aviltado e tirei uma lição com a desdita. Foi daí que, abeberando-me nos clássicos (ainda não os considerava ultrapassados), como consequência da paixão pela maiêutica, escrevi um Diálogo do Desentendimento, desfiado, intuitivo. Mostrei ao professor e exigi dele uma crítica mordaz. Eu não sou cachorro, não! Respondeu-me ele, de plano. A imitação, seu José, como método é válida, mas há necessidade de uma nova argamassa, uma nova feição. O mestre acha assim? O final, Seu José, tem que ser mais conclusivo. Lembre-se do que falo sempre: contenho e supero. O senhor quer dizer o quê? Uma metáfora, Seu José. Ninguém pode ser escritor antes de ter criado uma metáfora. É o grande teste. Veja exemplo do mestre Castro Alves: incêndio — leão ruivo, ensanguentado. Observe a semelhança, a congruência. Ele é poeta, mestre. Qual é a diferença, seu José? Qual? Carcereiro, você tem corda das boas para eu me enforcar? Não tem jeito, quando ele está trabalhando não gosta de prosa. A não ser quando vem abrir as grades. Diz que não tem nada a ver com isso e que está cumprindo a obrigação dele. Também, diz ele, não é de torturar ninguém e espera que eu compreenda. Uma corda de caroá como aquela da minha infância. Imaginava que se tivesse uma corda de caroá bem grande, poderia enlaçar o mundo. Sendo o planeta, terra, redondo (havia aprendido na escola) era só amarrar a corda na bananeira do quintal e ir descendo, tomando cuidado para não descambar. Ia indo… indo… direto, sem dar ousadia a ninguém. Passaria pela casa da tia Judite, entraria em São Paulo, atravessaria o mar (como?), chegaria ao Japão, na África, caía, mas onde? No céu não podia ser, porque fica lá em cima, nas alturas. Então, era no inferno, nas profundezas do inferno. Hoje quero escrever algo. Não como escrevo sempre: pagando um tributo doloroso à ambição artística. Quero escrever de graça, só para exercitar mesmo, um livro sobre o amor de Ênio e Mirthes da pensão de dona Lili. Ênio trabalhava como gerente no cine Massangano, em Petrolina, e perdera a oportunidade de viver um grande amor na juventude. Foi isso? Quem eram eles? Porque pareciam se esconder? Porquê? Eram namorados quando jovens, e, agora, se reencontraram no escurecer da vida? O tempo perdoaria as oportunidades perdidas? Teriam uma segunda chance? Eram ex-padre e ex-freira? Mirthes era alta, magra e tinha todo o ferramental para ser bonita, mas era mais bonita por dentro. A distribuição não obedecia aos cânones firmados de beleza, guiados por Deus. Estou sentindo um fluxo, uma caudal, um veio que escorre para o nada. O nada existe, tanto é verdade que estou falando dele. Meu Deus! Não sei se estou vivo. Posso ter virado uma coisa entre a vida e a morte. Nosferatu. Como seu Joaquim do Colégio, que fazia a faxina, vendia a melhor cocada do mundo e virava lobisomem à noite. Quanto tempo, hem? Mais de dez anos. Coitado do seu Joaquim. Todos os dias, à meia-noite, virava lobisomem na beira do rio. Também, quem mandou bater na própria mãe? Quando vinha pela manhã abrir o colégio, ainda guardava resquícios do animal carnívoro: o andar envergado, como os primatas da enciclopédia Mirador, os braços cheios de pelos negros, os olhos faiscantes de cão danado. Lobisomem é assim: fica entre a vida e a morte, falso ao corpo de gente, falso ao corpo de animal. Quero escrever sobre a noite, esta noite, aqui sempre é noite. Um grito de dor ressoa cortante. Ouvi. Grito de torturado antigo, profissional, que sabe extrair as mais pungentes notas, ordená-las harmonicamente e obter um grande efeito. É um grito manhoso, humilde, sem revolta, extraído do mais íntimo, como o choro de uma tenra criança que luta pelo mingau. Não há coração de aprendiz de torturador que aguente. É por isso que os novatos começam com os presos mais frescos, ainda sem malícia na dor. Estes, quando são torturados, exalam gritos excitantes, desordenados, quase acintosos que, somados ao olhar cheio de ódio, incitam ainda mais os torturadores, incapazes de compreender tal audácia num verme subjugado. Alternativamente, expressam uma surpresa incomodativa (existem, realmente, pessoas capazes de tais atrocidades?), que fazia os torturadores parecerem extraterrestres. Como provar a sua origem terrestre, humana, senão voltando a torturar? Radicalizarei. Ou não! Para quê? Morrer como outros, enquanto o Flamengo perdia? Entendia quem radicalizou. Bóris radicalizou, mas quem é Bóris que o comissário de polícia falou? Bóris é o produto do meu remorso, subproduto da minha cumplicidade passiva que me atazana o espírito. Preciso concebê-lo nem que para isso tenha que me transformar em Gepeto, o pai carpinteiro de Jesus Cristo. Vou fazê-lo fulvo, tostado pelo sol abrasador dos dias do Nordeste. Colocá-lo como protagonista de uma historinha comum, réplica de milhares com o mesmo enredo. Uma história pungente onde a personagem principal era a gente nordestina do Brasil, sem Moisés e nem terra prometida, com um protótipo de um sertanejo rijo, mãos calejadas, que, combalido, recorria ao êxodo rural. Uma história de um sol causticante que ceifava, desde as cactáceas, até a fé arraigada no mais recôndito dos corações e alumiava do alto de um céu sem Deus. A minha solidão é povoada por astros assim, como Bóris, que não conseguiram o brilho das estrelas, mas na minha cela, cheia de baratas e lagartixas medrosas, eu os adorno, e os paramento, de conformidade com as suas tendências, transformando-os nas verdadeiras eminências pardas que são. Eles me amam, agradecidos. Tenho os seus nomes gravados a fogo na minha mente, em uma lista que denomino ‘lista de personagens’. Nela, vou fazendo anotações nas quais me baseio para reinventar meus heróis no momento em que a fé se expira num corpo sob lancinantes torturas, ou se queda, desfalecida, na certeza da impossibilidade de quebrar os muros da prisão. É assim que Eujácio Teles sai da minha mente atordoada, toma de assalto a minha cela e preleciona para um discípulo aplicado, agradecido, que o saúda com o título de mestre. De Zaqueu, aprendo o gosto pelo sangue que me penetra pela boca, narinas e todos os buracos que possuo e aviventa o meu espírito, dando mais força para matar. Narrita: — um sorriso (não de gozação) e uma olhadela. Basta isso para evitar rebanhadas hostis. O alimento maior vem da sua mente sonhadora (“Eu sempre quis ser a mulher que existe dentro de mim, pegada com o homem que sou. O que quero para mim? Aquilo que me der amor”). Simone. A grande inteligência, a dama estereotipada do operariado, o corpo torturado, o sexo (que não foi poupado) com um filete de sangue escorrendo, uma flor estilhaçada. À noite, pousa seu corpo no meu — tal contato me produz um frêmito de prazer. A imagem que degluto sofregamente é de uma mulher estirada, inerte e feliz, agradecida, com o sexo desabrochado e os meus lábios beijando-o em sonoras e malvadas lambidas que sobem e descem, aumentando progressivamente, como a querer esganá-lo. Parada, ela não está morta e nem tampouco viva. Voou, apenas isso, fugiu e está habitando a antessala da região dos deuses, esperando o visto de permanência. Eu, enquanto isso, ficava atento, esperando um retorno, uma reviravolta fatal em que ela engoliria o meu rosto com o sexo. Ao mesmo tempo, torcia pela deificação. Segurava na mão esquerda uma auréola que iria depositar na cabeça dela, no momento em que seu corpo se retesasse em convulsões nervosas (talvez ela opte por voltar à terra como reles pecadora, objetivando experimentar, mais uma vez, o sabor dos meus lábios no seu sexo). Quando não estou polindo minhas estrelas ocultas, ocupo-me, igualmente, de tarefas nobres e gratificantes. Sou o observador esmerado, atento para captar os mínimos detalhes de cada uma delas e contar uma história na qual estou pensando. Nessa história, audaciosamente, elas se imiscuem, tentando aparecer para fertilizar a minha narração com suas vidas opacas (talvez alguém tenha agora na mente a visão de um livro oco, com uma portinhola, na qual se adentram cegos, aleijados, malucos e bichas, todos levando uma página rascunhada de próprio punho). Não as culpo, pois, eu mesmo vou usar o livro para objetivos múltiplos — denúncia, vingança, expiação de pecados, revelação da minha fantasia anterior e, talvez, um alerta para manter hasteado o pau da bandeira da esperança. Digo: que importa a lucidez se a loucura pode vencer, metamorfoseando-se em lucidez? O brilho do exótico e do pitoresco nos cegará? Então formemos uma sociedade de cegos, desde que seja mais justa e tenha um acentuado amor ao mito homem, que teima em acreditar muito mais no que não existe. Bóris nasceu ontem, após ter sido gestado num útero fecundado com espermatozoide de sangue. Quando a bolsa se rompeu, um líquido amniótico vermelho se derramou sobre as páginas de um jornal que surrupiei aqui na prisão. Trazia a notícia do achado de um original de romance entre os pertences de Augusto Braga, sequestrado por agentes dos órgãos de segurança. O estado, completava a notícia, negava a sua prisão e morte e respondia na justiça através de ação de responsabilidade impetrada pelos familiares. Já Aníbal, nasceu, santo e assassinado, pelo autor das páginas manchadas de sangue do mesmo jornal, que trazia o estigma de um destino predeterminado. Tratava-se do fruto da minha ingerência e ousadia (pela primeira vez, acredito, o verbo e a criatura se identificaram numa comunhão plena, tornando-se difícil, talvez impossível, a dissociação da divindade modelo da sua cria, gerada à sua imagem e semelhança). Sei que dia é hoje. Imagino as horas: onze horas, onze minutos e onze segundos. Conheço também a sensação angustiante de não saber tais dados, tão imprescindíveis para nós habitantes aculturados do mundo cartesiano. Amanheceu ocioso, pois, o sol, embora já tenha despontado por trás dos edifícios que observo da prisão, teima em permanecer imerso em pesadas nuvens. Envolvo-me como se fosse habitante do fundo de um sonho, daqueles que não permito a ninguém compartilhar, exceto as figuras quase etéreas que me ajudam a sonhá-lo em vão. Desejo, do mais íntimo do meu ser, que elas nunca se curvem às minhas ordens, que nunca se tornem reais e que minhas pernas não deixem de ficar entorpecidas, flutuando em miragens (não posso e nem devo alcançar). Começo uma batalha de revolver a memória, triando o mais interessante, dando uma nova argamassa e projetando um futuro de cores vermelhas, lancinantes, algozes. Vejo uma dor, uma poesia. Deus, homem, bíblia, tudo é poesia, ainda incompleta. Posso chorar. Fazer como fazia Aníbal, quando desprendia todo seu ser na consecução de uma frase fatal que expressasse seu estado de espírito. Mais importante do que a força física é a resistência do caráter. Se soubesse que aquele esforço não seria mais que o preâmbulo da vida (perdoa-me, autor, e o lápis empurrando-o inexoravelmente para o precipício) teria sido mais vigilante. Portanto, mais resistente às traições íntimas dos confins da prisão e infenso à revelação das ideias que fluíam caudalosas e desordenadas. Estou indiferente às súplicas de um torturado. Amanhece? Não! Nunca amanhecerá! Que nada! A revolução vencerá e estarei à frente. Não por acaso. É o coroamento dos meus esforços. Se eu não fosse um homem atinado, ainda estaria no sertão sem nome, administrando a miséria, espoliando os ainda mais pobres, adquirindo módicos hábitos burgueses. Nunca! Fui viandante de outro caminho. Quando tive inteligência para escrever o “Cemitério das Ilusões Nordestinas”? Ilusões Nordestinas, teu cemitério aguarda; enterradas, espremidas, traídas, não sucumbem; à perfídia, à ingratidão, ao progresso selvagem; sangue vivo; o braço de novel nordestino; matará; e se consolidará como eterno. Nem sabia. Molecote com a ideia fixa de ir para a capital. Ociosidade, falta de perspectivas e os incentivadores — movidos pelo orgulho — contando histórias fantásticas. Rios de dinheiro, de água salgada, de edifícios que pespontam no céu. Voltar? Só a passeio, prodigamente distribuindo dádivas, ajudando os necessitados. Andar por toda cidade de origem, tentando descobrir em cada rua, em cada esquina, em cada ângulo, o homem que era, para sentir bem acentuada a diferença. Fazendo parte da junta de governo da revolução, eu seria mais útil. Poderia abolir a propriedade privada supérflua, determinando que a única riqueza passível de acumulação parcial é a oriunda do trabalho. Oriunda do capital, não! Mijei pus. Outro dia foi sangue. Esta prisão é uma fedentina. Carcereiro, vou lhe nomear carcereiro-mor em nome do futuro governo revolucionário brasileiro. Não sei, talvez fosse melhor deixar de lado a revolução. Se não estou enganado, essa cela tem cinco metros quadrados, ou menos. Lá fora tem o mundo. Quantos metros quadrados tem o mundo? Dorinha! Professora estava ali. Vem me ajudar, Dorinha, por mim, Dorinha! Um mundo tão grande e eu só tenho direito a cinco metros quadrados. Arre! É muita mesquinharia. Se pudesse sair por esta porta, iria caminhar até morrer. Morrer livre é melhor que viver preso. Tenho certeza que perdi muitas oportunidades de andar, caminhar como um desesperado. As estradinhas. Tio Raimundo nunca deixou que eu as explorasse completamente. Aonde levariam? Nenhum lugar. Ótimo! O importante mesmo era trilhá-las livremente, e não ficar somente olhando. O povo do sertão tem mania de ficar assuntando, assuntando. Carcereiro, você também é do sertão, cabra-da-peste? Marcos era solene como um protestante em início de carreira, mas gostava de uma perturbação. Camarada Aníbal (ele me rebatizou), vou lhe dar logo um codinome de general romano que é para confundir os macacos. Compreenda uma coisa, o curso de capacitação política é imprescindível para ser admitido na organização. Economia política, história, tática de despiste, controle das massas, técnicas de ações inflamatórias, como suportar torturas 1, 2, e 3. Aprovado. Camarada, é uma vitória. Nobres tarefas o esperam. Qualidades como as suas não se encontram facilmente. Companheiro de tal quilate é uma raridade. A iminente vitória final, compensará os nossos esforços. Adeus Marcos, para sempre! Quarenta e cinco tiros de metralhadora, enquanto o proletariado via o flamengo perder. Marcos poderia ter morrido nas celas de tortura, mas resolveu antecipar, lutara bravamente e encontrara o seu próprio fim. A vida já não lhe pertencia mesmo: era do proletariado que a renegou. Até os estudantes pequeno-burgueses estavam lá, de pé, na concentração, mas o proletariado, que encarava sempre o trabalho de conscientização política com frieza e desconfiança, optou pelo futebol. O flamengo ainda perdeu. De que vale viver? Os homens trincaram quarenta e cinco balas nele e ainda cegaram os olhos com fogo de maçarico. Mando eriçar o cabelo e deixo a barba crescer. Um cadáver com quarenta e cinco balas não é asseado: tem muito esguicho de sangue. Comunista não morre fácil, a não ser quando quer, tem sete fôlegos o desgraçado. Já direitista é a vergonha da raça humana. O carcereiro não fala nada. Carcereiro, você não fala com torturado? O carcereiro perguntou se o comunismo vem mesmo? Porque você sabe — sei, sei — estou aqui, mas esse governo está de morte, se eu tivesse certeza, mas não vejo nada assim seguro. Você não é comunista não, é? Comunista toma os filhos da gente? Comunistas almoçam criancinhas? Se eu deixar a barba crescer, fica bem. Para completar, era só botar uma boina do Che Guevara. Menino, era escrito um guerrilheiro. Desgraça, meu sangue está fervilhando por baixo da pele. Uma comichão, aqui ainda tem pulgas e muriçocas. La puta que los pares! Sebastião gostava: la puta que los pares. Saio da história para entrar na vida. Não, seu burro: saio da vida para entrar na história. Sim, mas quem falou? Deixa-me ver… foi Prudente de Moraes? Getúlio Vargas, sua besta. Você que é sabido, diga então quem falou esta: se é para o bem da sua irmã, diga a ela que eu pego. La puta que los pares. Como? Língua mexicana. Tradução: a puta que o pariu. Gostei do muchacho. Como é mesmo, Aníbal? La puta que los pares, Sebastião. O ponto mais alto do mundo: fácil. A segunda queda do império romano, causa: o imperador era louco. Sócrates, o pai da sabedoria humana, morreu bebendo: cicuta. Morte pior do que crucificação: degolado com lâmina de barbear. Símbolo da vassourinha: Jânio Quadros. No Brasil agora tem: la puta que los pares. Só, sozinho, nem o carcereiro me dá ousadia. Minha alma de artista é assim, não é feliz quando desprovida de uma plateia que pulsa. Gosto de fazer discursos, dizer coisas. Que gratificante sensação! A plateia agradecida, aplaudindo. Eu, ó, eu, ó, falava de coisas simples, humanas que eles precisavam ouvir. Alimentava-os com o sedativo da esperança. Começava devagar, as palavras fugindo-me amiúde, o olhar pusilânime, incapaz de pousar no mais obscuro dos ouvintes, num discurso tímido, quase opaco. Depois, numa só lufada, num único encrespar de mares, a voz tremulante de emoção, o corpo empertigado, os olhos lançando farpas incandescentes, eletrizava de impacto a multidão. É justo que alguém possua tantas terras enquanto o irmão não tem sequer aonde cair morto? Nem um chão para se enterrar? O que se pode dizer do proceder desses políticos que, em vez de ajudar o pobre, só cuidam dos seus próprios interesses pessoais? Vocês não têm direito a uma vida digna? Não é justo que elejam seus próprios representantes? Por que só os pobres têm que sofrer na terra para ganhar o reino dos céus? Eram os homens, animais? Se não o eram, deviam lutar por melhores condições de emprego e vida. A vida, após a morte, interessa muito, entretanto, não podemos esquecer a vida material. Falava-lhes, ainda, do inferno: está no meio de nós, ali na frente vemos a estrada calçada de brasas de cascavéis. Minha alma de artista é assim, chora com o anonimato. Carcereiro, filho da mãe. Compro laquê por meu cabelo ser muito fino e saio com uma cabeleira generosa, encantando as garotas. É para dar um novo trato, uma novidade. Mudo sempre de cabeleireiro. Não sei… uma fé, uma esperança de encontrar alguém que faça um corte inédito. Por isso que fico calado, aguardando-os se apresentarem com algo especial. Os profissionais ficam perguntando. Se soubesse o que fazer, não teria vindo aqui. Droga! Estou molhado em algum lugar. Soltem as amarras, vejo o sol e vejo o mar. Sinto aqui dentro uma vontade de cantar. Dentro de mim, um viajante explode, ele pede luz ao sol, ele pede força ao mar. Por outro lado, como pode uma emoção… depois termino. Ouviu a música, carcereiro? Agora, assoviarei. Essa música que o carcereiro ouviu é minha, escrevi numa noite triste, noite desaba-coração. O sertanejo não é besta, não! O conselho, indicando com o braço: o senhor vai dereto, deretinho, sem dar ousadia a ninguém, depois quebra à direita e vai, vai, vai, vai, chegou. Cheguei mesmo, com Tenório, meu colega de campanha, vermelhíssimo, homem de maus-bofes estava ali. Chegamos! Ô de casa! Ô de casa! Seu Duzinho está? É de paz, gritou Tenório. Seu Duzinho estava e surgiu do chiqueiro, no fundo da casa. Baixo, mirrado, com um olhar fraco da peste. É verdade, é verdade, dizia constantemente. Eu dizia: — preciso das escrituras para entrar com ação. Eles vão ver se podem expulsar os outros assim! Marcaremos uma reunião com os interessados. Quantos são mesmo? Olhe, homem, por baixo, por baixo, são mais de cem viventes. Geraldo, do Lajedo. Antônio, da Comprida. Nezinho, do Urubu. Zeca, das Canoas. Com os filhos, genros e netos é muita gente. O demo foi chegando e cercando azedado, espiritado. No trote em que ele vai, está difícil de pegar. Temos que impedir, falei. Tenório dava sempre a mesma lição: –—Companheiros, isto aqui é o código civil brasileiro, instrumento da burguesia. No artigo 263, diz “desforço incontinenti”, ou seja, pode se defender e até matar. Então, companheiro, use a força, defenda o que é seu, isto aqui não é só para burguês. Mate e invoque a lei deles. É verdade, é verdade! Fiquem para uma roda de São Gonçalo mais tarde, disse seu Duzinho. Ficamos. Os caboclinhos iam chegando com a geografia da terra no rosto e no resto do corpo. Tez árida desprovida da untuosidade, da plástica, do polimento de uma compleição física atlética. Crescendo para dentro, desenvolviam singular autofagia e ficavam mirrados. Quem disse que isto poderia fazê-los firmes, eretos? Os caboclinhos eram desengonçados, abruptos e chegados a uma canseira, como o último deblaterar-se de um corpo que definha. Eram conscientes da sua falta de postura, da sua estrutura que se desenvolvia à revelia de normas simétricas e fazia um esteta menos avisado torcer o nariz de sua feiura característica dos fracos. O olhar condensava um pedido humilhante e deprimente. Obra de arte para ser apreciada com normas diferentes. Como é bonito um sertanejo! Caboclinhos iam chegando e a doutrinação começava. Caboclinhos assuntavam, assuntavam. Quando Tenório dava a sua clássica lição e elevava o Código Civil acima da cabeça, os caboclinhos olhavam para a cor do livro, displicentemente. Só os olhos faziam uma pequena viagem. Caboclinhos estavam cansados. Caboclinhos querem morrer de preguiça, querem?

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