Democracia líquida

Os compromissos de Bolsonaro ao se candidatar presidente eram bem claros: recuperar a economia por meio de políticas liberais, combater a corrupção, apoiando a operação Lava-Jato, e rejeitar a velha política. Sua eleição foi um voto de negação à hegemonia petista, à corrupção, à recessão e ao desemprego.

 Mas nada se sustentou, o liberalismo foi apenas uma vã promessa eleitoral, a operação Lava-Jato sucumbiu enterrada juntamente com seu ex-juiz Moro, e o presidente se abraçou aos políticos que, antes, havia condenado, visando, sem pudor, barrar os pedidos de impeachment e turbinar sua reeleição em 2022.  Na pandemia, Bolsonaro tenciona as relações federativas e as relações entre os poderes.

Os eventos desta semana repuseram o ex-detento Lula no centro do jogo político. Nada mais está sólido como antes parecia. As relações políticas ficaram líquidas.  As incertezas, que já eram grandes, ficaram ainda maiores. Enfim, a crise da democracia é o colapso da confiança.

O sociólogo judeu, nascido na Polônia, Zygmunt Bauman incorporou-se ao exército de seu país que se aliou às forças soviéticas, na resistência à invasão nazista, e filiou-se ao partido comunista polonês. Conheceu, resistiu e enfrentou as atrocidades tanto da invasão alemã à Polônia quanto da dominação stalinista, no pós-guerra. Expulso da Polônia e do partido comunista, continuou sua carreira acadêmica na Universidade de Leeds, na Inglaterra.

Em oposição ao que chamou de modernidade sólida - uma visão de que as relações sociais, econômicas e pessoais eram estáveis e previsíveis -, Bauman desenvolveu a teoria da modernidade líquida, uma crítica à pós-modernidade e à globalização. Em sua concepção, as relações sociais, econômicas e políticas perderam sua estabilidade, tornando-se fluídas, fugazes, e passageiras.

Nesses tempos estranhos, a visão de Bauman parece fazer sentido. A democracia representativa tem sido corroída por dentro, mundo afora. Aqui, as instituições estão sendo abaladas há algum tempo. A introdução do estatuto da reeleição, no primeiro governo FHC, a corrupção sistêmica no governo Lula, expondo as vísceras do poder submetido a interesses privados, e o final antecipado pelo impeachment do malsucedido governo de Dilma, fiscalmente irresponsável, que jogou o país na recessão, culminaram na imprevisível eleição de Bolsonaro.

Bauman nos alertou que em uma democracia líquida não há laços permanentes, mas amarrados frouxamente para que possam ser desatados, tão rápido e tão facilmente quanto possível, quando as circunstâncias mudarem. Assim, no contexto dessa modernidade líquida, os acordos são temporários, passageiros, válidos até novo aviso, ou por seu rompimento sem nem sequer um aviso.

Os fatos mostram que o que aparentava solidez, como a ética, as instituições democráticas, a política e até a hermenêutica, tornou-se líquido. Restam para o futuro insegurança e medo.


Texto brilhante Paulo! Infelizmente, verdadeiro

Fredjoger B. Mendes, MSc

Gerente Operações | Gerente Industrial | Gerente Supply Chain | Gerente Suporte Técnico | Gerente de Produção | Gerente de Serviços | Engenheiro Senior | Gerente Senior | Gerente da Qualidade | Processos e Projetos

3 a

Excelente texto Paulo Paiva ! O temor maior que tenho é a possível incapacidade da sociedade brasileira em aprender com todos estes eventos. Esta incompetência coletiva impedirá o discernimento tão necessário no momento em tivermos, supostamente, a oportunidade de mudar as coisas através das eleições. Tomara que eu esteja errado.

Danielle Morreale Diniz

Cofundadora da Shefa USA, Mestre em Educação e Inovações Sociais, Publicitária, Pós Psicanálise e Especialista em Empreendedorismo Consciente. Autora do Livro Empreenda em Si: o propósito de uma vida mais signficativa.

3 a

Volátil, incerto, complexo e ambíguo!

Entre para ver ou adicionar um comentário

Outros artigos de Paulo Paiva

  • Macunaíma mutante

    Macunaíma mutante

    Nesses primeiros dias do ano, tive o privilégio de ler o texto de Edmar Bacha escrito para integrar o livro, que está…

    3 comentários
  • O que restou de 2024?

    O que restou de 2024?

    O principal indicador para medir a pujança da economia, o velho e bom índice da renda per capita, está mostrando que…

    8 comentários
  • Tímidos ajustes

    Tímidos ajustes

    Governantes não gostam de tomar medidas consideradas impopulares, mesmo quando necessárias, cujos resultados positivos…

    8 comentários
  • Viver mais e melhor

    Viver mais e melhor

    Como sentenciou Garcia Marques em “Cem anos de solidão” “nascemos para morrer”. Conquistas das pesquisas científicas…

    3 comentários
  • Pombos batem em retirada

    Pombos batem em retirada

    As regras estabelecidas no Brasil dão autonomia ao BC para definir as políticas monetária e cambial, cujos objetivos e…

    3 comentários
  • Realismo Fantástico

    Realismo Fantástico

    Não assisti ao pronunciamento do ministro Haddad explicando o novo ajuste fiscal. Naquela hora eu estava perdido no…

    4 comentários
  • O prêmio Nobel e o Orçamento

    O prêmio Nobel e o Orçamento

    Entre as contribuições que valeram o prêmio Nobel aos professores Daron Acemoglu, James Robinson e Simon Johnson, estão…

    6 comentários
  • Cadê o bom senso?

    Cadê o bom senso?

    Desde a Revolução Industrial, a jornada de trabalho sempre esteve no centro das discussões nas relações entre capital e…

    9 comentários
  • Torre de Babel

    Torre de Babel

    Economia crescendo. Emprego aumentando, consumo das famílias bombando, por que se preocupar agora com déficit fiscal?…

    15 comentários
  • E agora, America Latina?

    E agora, America Latina?

    Biden (democrata) ficou, mais uma vez, desacreditado, quando afirmou que “o caminho para manter Trump fora do Salão…

    6 comentários

Outras pessoas também visualizaram

Conferir tópicos