A democracia não resolve tudo

A democracia não resolve tudo

O número de 13 milhões de desempregados no país é hoje o centro das preocupações nacionais, um problema maior que o da corrupção, à qual a crise econômica acabou sendo associada: ambos são resultado das formas variadas de malversação do dinheiro público. Porém, há no ar algo mais grave: a sensação, vinda das profundezas do solo, de que a democracia brasileira não deu certo.

O Brasil é um país que não consegue força para se manter na rota do desenvolvimento sustentável e que, contrariando sua própria base democrática, vive agora jogado de um lado a outro por projetos políticos cuja principal característica, paradoxalmente, é o autoritarismo.

Para sairmos disso, é preciso primeiro entender como chegamos até aqui.

Os políticos que desenharam a Nova República, fizeram a Constituição de 1988 e dirigiram o país ao longo dos últimos trinta anos confiavam na democracia como a solução para todos os problemas. Confiaram, talvez, demais.

Vista como panaceia dos problemas brasileiros por seguir-ao ao fracasso econômico e social da ditadura militar, que deixou um país estatizado como a União Soviética e estraçalhado pela hiperinflação, essa geração de políticos acreditava que as eleições, como fonte de renovação e do empoderamento da população para a solução de seus problemas, faria uma depuração progressiva da política brasileira. E que nosso caminho para o Primeiro Mundo, a partir daí, estava traçado.

Fernando Henrique, primeiro como ministro e depois presidente, acreditou que com a estabilidade econômica do Plano Real e a vigência democrática, as bases do progresso estavam implantadas. Porém, já mais político e presidente do que o sociólogo de formação não viu o que estava acontecendo na sociedade brasileira emergente.

A democracia deu o poder do voto, mas, por si, não deu cidadania à população. Apesar de uma rápida melhora com o fim da inflação, em especial a grande massa de deserdados, marginais e desempregados continuou sem saúde, sem educação e outros direitos elementares que permitem levar uma vida digna.

Acabou a febre, mas não a doença. O reformismo neo-republicano não mudou as bases sociais nem o capitalismo predatório brasileiro, em que o trabalhador não é um cidadão consumidor, e sim massa de manobra e mão de obra barata.

No tempo em que o Brasil permaneceu como país de base agrária, apesar da industrialização no começo do Século XX, outros países realizaram mudanças radicais na sua configuração social. Como a França, que fez uma revolução sangrenta após a queda da Bastilha até o povo ganhar a condição de cidadão.

A cidadania é a base da força dos países civilizados. O Brasil, porém, sofre com um descompasso. O brasileiro passou a ter voto, mas não teve o resto: direitos, respeito, condições para melhorar de vida.

Quem percebeu isso foram líderes religiosos, como Edir Macedo, cuja igreja cresceu como uma rede de solidariedade, que procura perspectiva de melhoria de vida para quem nunca teve.

Na política, foi Lula, ele mesmo vindo do mundo dos párias brasileiros: um homem para quem virar torneiro mecânico foi uma façanha maior que sair do chão de fábrica para a presidência da República.  

Passando à frente de Fernando Henrique, que mal desenhou uma política pública voltada para a cidadania, Lula investiu no brasileiro marginalizado. Porém, submergiu às forças de sempre, que detém os meios do poder, instaladas especialmente no Congresso.

Na democracia opiácea do Brasil, o cidadão vota, mas o poder fica sempre nas mesmas mãos. Como partido minoritário, e assim politicamente fraco no Congresso, o PT acabou sendo cooptado pela velha política para poder fazer alguma coisa. Em vez de prevalecer, submergia ao velho Brasil. As diferenças que Lula queria eliminar não apenas sobreviveram, como aumentaram exponencialmente.

O resultado disso é que a população brasileira é hoje uma horda faminta com uma arma na mão: o voto. Ela tem hoje os meios para fazer pressão política, escolhendo o presidente e os representantes, mas a necessidade - e a pressão - pela cidadania é cada vez maior. Agora, junto com a democracia, existem as redes sociais para transformar essa pressão em algo constante, pela mobilização virtual.

O Brasil hoje se move pelas redes sociais, mas permanece como Canudos, um país pobre em uma terra rica, que procura um messias como Antônio Conselheiro para tirá-lo da miséria. Com a diferença de que, em vez de paus e pedras, tem na mão o voto e o celular.

Assim como na religião, o povo exige desse líder que seja honesto e espartano. Mira, assim, figuras com esse perfil - em especial, o militar e o juiz. Está aí a volta do líder populista clássico, que se apoia não nos partidos, mas na fala direta com as massas. É o ponto em que o regime democrático representativo vai virando terreno fértil para a demagogia. E a demagogia sempre fracassa, porque se baseia em promessas impossíveis de realizar.

Para o Brasil, só existe uma saída. É preciso acertar o descompasso entre a política - a nossa democracia- e a sociedade. Ao mesmo tempo em que recebeu o voto, o brasileiro precisa ter o resto dos elementos da cidadania, que lhe permitem uma vida digna. Ou viveremos permanentemente sujeitos aos demagogos de ocasião, de crise em crise, uma pior que a outra.

Os primeiros a aceitar esse fato deveriam ser os líderes da elite empresarial brasileira, que hoje correm o sério risco de ver morrer para eles a galinha dos ovos de ouro. Mais que tudo, deviam compreender que a solução não é entregar ao povo mais um líder populista, mas adotar um sistema que possa ser sustentável e proteja o Brasil de ser engolido pelo outros predadores que vêm de fora.

A pressão pela cidadania, viabilizada pelos mecanismo democráticos e a tecnologia, existe não somente no Brasil, como no mundo. O capitalismo contemporâneo cada vez mais concentra a riqueza em algumas poucas corporações, ao mesmo tempo em que gera milhões de párias pelo mundo. É preciso o sucesso da reforma, e o fortalecimento do Brasil, ou a história da Humanidade continuará, como na Bastilha, sendo escrita com a miséria - e o sangue.

(Publicado originalmente em A República)

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