DEPOIS DO NEOLÍTICO O APELO A UMA NOVA REVOLUÇÃO FEITO POR UMA MALA CHEIA DE HISTÓRIAS
Não há melhor mala de viagem que o nosso corpo. É com ele que entramos neste nosso admirável mundo, nu, despido de tudo, e é também com ele que regressamos ao pó da terra, ornado, na maioria dos casos, de roupa, noutros, de pura nudez. Com o corpo desenhamos os mais variados projetos de vida, e é também com ele que os realizamos, através das mais curtas ou longas viagens. O corpo será sempre a nossa mala de viagem por excelência, a que sempre nos acompanha, e a única que nasce e morre connosco.
Uma mala, que não é esta, encontra-se há já alguns meses a percorrer estradas e localidades do nosso país. A Caritas Portuguesa deu-lhe o nome de Mala da Partilha - Histórias de Vida, pois é seu propósito fazer nascer ou vir a conter dentro de si, milhares de histórias de vida, de viagens feitas, impelidas e empedradas pelo único desejo de ser feliz e de fazer outros felizes - família, amigos e desconhecidos.
Esta não é o corpo de cada um, mas a sua ligação a este está precisamente nas histórias que só os corpos viveram, experimentam e são capazes de narrar. Sem que alguma vez o conseguisse ser ou substitui-lo, a Mala da Partilha apresenta-se, mesmo assim, como uma grande metáfora, como o corpo dos corpos, como a arca que faz depósito e transporta dentro de si, as alegrias, as dores, os sonhos, as ilusões, as conquistas e tragédias por que tantos corpos passaram e passam nos nossos dias.
Indo bem além da instabilidade politico-económico-social e ambiental em que se encontram tantos países de origem, parece-me fazer sentido referir, ao tentarmos, por vezes, perceber as razões por detrás das histórias vividas por migrantes e refugiados, o que filósofo francês, Alain Badiou, sintetiza num seu recente trabalho, dirigido sobretudo aos jovens[1]: “hoje, uma bem-pequena e global oligarquia priva praticamente biliões de seres humanos da chance de simplesmente sobreviverem, obrigando-os a deambularem pelo mundo à procura de um lugar onde trabalhar, e prover para as suas famílias…”
Ao falar do “outro”, Badiou explica, por um lado, como a “organização social dominante” de uma humanidade que ele mesmo considera estar no seu princípio, no seu neolítico, é “extremamente frágil” nas suas “relações sociais”, enquanto “humanidade prática” e “real”. Por outro, Badiou não tem dúvidas que, apesar da humanidade não conseguir fazer coincidir com a sua “fundamental unidade” o que “produz, cria e organiza”, a sua verdadeira missão está na produção de uma “organização social que seja merecedora da sua básica unidade”. Hoje, para Badiou, a humanidade, através de uma nova revolução, vai ter de saber deixar para trás a revolução do neolítico, precisamente aquela a que a par dos “meios de comunicação e de subsistência”, dos “conflitos e do conhecimento”, também tem sido geradora das mais “monstruosas desigualdades”, “hierarquias, e figuras de violência e poder”.
Ao recolher por diversas regiões de Portugal instantes vividos e contados por milhares de corpos, a Mala da Partilha faz de facto apelo à criação de um organizado e comum uso das coisas, com base no que a humanidade tem de semelhante: o seu recente aparecimento na terra, a sua recente história, a sua biologia, a sua morte. Uma unidade que não pode ser em tempo algum esquecida e que a vida em sociedade terá de saber honrar; a que desmonta racismos, xenofobias, facismos, populismos, ditaduras, e qualquer pessoa rotulada injustamente de “ilegal” ou de “indocumentada”.
[1] Alain Badiou (2019), I Know There Are Many of You, Polity Press
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5 aPois é essa mala que transforma o sentido da vida.