Desafios da gestão de marca e reputação: uma releitura do artigo clássico sobre miopia de marketing dentro de um contexto de hiperconexão
O autor Theodore Levitt, no clássico artigo Miopia em marketing (*), trouxe muito anos atrás para o debate um importante ponto de reflexão: a forma de se pensar o marketing nas organizações, considerando o sucesso do produto ou serviço como foco organizacional. Embora o texto tenha sido escrito na década de 60, com viés voltado para as técnicas de comunicação da época, o conteúdo apresentado se aplica de forma bem consistente nos dias de hoje. Seus argumentos têm aplicabilidade para pensarmos questões relacionadas aos estudos de marca e reputação nos dias atuais.
Para quem não está familiarizado com o artigo, ele tem por objetivo alertar sobre os perigos que as organizações se expõem quando focam prioritariamente em seu produto - e ignoram as percepções e expectativas do mercado, consumidores, clientes e demais públicos estratégicos. O autor utiliza como base argumentativa a exemplificação: durante todo o texto são apresentados exemplos de organizações que por falta de entendimento geral de administração e planejamento de marca, acabaram concentrando seus esforços em fortalecer e vender o seu produto, sem levar em consideração quais eram as reais necessidade do mercado e dos consumidores dentro do seu segmento.
Reafirmando a necessidade de análise do contexto geral e do código cultural estabelecido naquele momento, já que, muitas vezes, as organizações focam os esforços apenas na produção do produto e/ou no serviço prestado e esquecem que é fundamental entender o código cultural do seu “ecossistema” organizacional para construção de vínculos e laços de confiança com seus diversos públicos.
Para definir esse padrão de comportamento das empresas Levitt utilizou o termo “ciclo auto ilusório”, que pode ser determinado por quatro principais condições:
· a crença de que o crescimento organizacional é assegurado por uma população em expansão;
· a crença de que não existe um substituto competitivo para o principal produto da empresa;
· a certeza na produção em massa e nas vantagens do rápido declínio do custo unitário com o aumento da produção;
· um foco exacerbado no produto, no seu aperfeiçoamento e redução dos seus custos de produção em detrimento das reais necessidades de seus clientes.
Em seu artigo, Levitt exemplifica esse conceito relatando os cases das ferrovias e de Hollywood. O autor afirma que o declínio dessas organizações teve relação direta com o posicionamento, a definição do segmento de mercado e a dificuldade dos gestores em identificar as ameaças, oportunidades do mercado e os interesses dos consumidores. Eles direcionavam prioritariamente suas estratégias para a consolidação e aprimoramento do produto – acreditando que não haveria um possível substituto para o seu produto - sem levar em consideração os desejos e necessidades do cliente, o que estava acontecendo no mundo, a mudança acelerada de tecnologia e do código cultural dos seus públicos estratégicos. Uma pergunta era importante: afinal, quais as leituras seus públicos estavam fazendo sobre seus produtos? As percepções sobre o produto atuação da empresa estão se modificando?
Essa releitura do conceito do ciclo auto ilusório se faz necessária também nos dias de hoje, pois entendemos que esse é um dos principais motivos para o declínio e crise de reputação de muitas empresas hoje em dia.
Levitt segue com exemplos de erros de análise por parte de grandes organizações, como no caso da indústria petrolífera, que manteve uma visão restrita de negócios, considerando seu produto como insubstituível e imprescindível, sem avaliar as novas possibilidades de mercado e de consumo.
No momento em que o artigo foi escrito ele se debruçou sobre questões que, hoje, podemos relacionar diretamente com temas como gestão de marca e reputação, a sociedade nem sonhava com a possibilidade de se comunicar da forma instantânea, multidirecional e assíncrona como fazemos nos dias atuais.
A internet e, posteriormente, as mídias digitais, chegaram para criar, novos códigos e formas de comunicação, novas profissões, novos debates e desafios para todas as organizações.
Nesse momento presenciamos com muita frequência crises de marca e reputação, que são intensificadas a partir do engajamento e compartilhamento das mídias sociais – e os motivos para tal são variados, vão desde o surgimento das fake news, levantamento de escândalos, falhas operacionais ou desastres ambientais. E principalmente deixar de entregar produtos e serviços alinhados com as expectativas atuais dos seus stakeholders. Se em um primeiro momento isso foi muito benéfico dada a facilidade e encurtamento das distâncias entre a marca e seus públicos, por outro lado, logo foi visto que nem tudo seria tão simples: os públicos ganharam voz e força de mobilização. Portanto conclui-se que são inúmeros os desafios desde o advento das mídias sociais. As marcas precisam se reorganizar e aprender a se comunicar com seus públicos em uma outra escala de tempo e responsividade.
Nesse contexto, fica notório que é preciso muito mais que um Comitê de Crise preparado para condução de ações necessárias para um problema já posto. É necessário o monitoramento contínuo sobre as expectativas e percepções dos seus públicos, mapeando como a sociedade percebe atualmente a atuação da marca e como mudanças do código cultural e acontecimentos pontuais podem afetar diretamente a imagem da sua empresa.
Sendo assim, em paralelo com os conceitos trabalhados por Levitt, entendemos que o nosso contexto atual, altamente midiático, pode estar levando muitas empresas a conviver com o que podemos chamar da “nova miopia de marketing”. Ao fechar os olhos para o que está acontecendo ao seu redor e não monitorar as percepções e expectativas dos seus públicos em tempo real, por considerar esse um investimento desnecessário - frente a todo o gasto operacional existente na empresa - não há como se preparar para o que está por vir, retomamos aqui o conceito de “ciclo auto ilusório”.
A partir do entendimento desse contexto, a miopia de marketing se refere a um planejamento equivocado, no qual a empresa acredita ter uma visão concreta do mercado ao qual faz parte, mas não consegue se adaptar às realidades desse mercado, ou seja, a organização vive num ciclo de auto ilusão. Por isso, se faz necessário a aproximação com o seu cliente, por meio de pesquisas de mercado e de padrões de consumo, a diferenciação de seus produtos e a fidelização dos seus clientes, fazendo com que a marca se mantenha presente na mente do consumidor.
O investimento em monitoramento e pesquisas para subsidiar o planejamento de comunicação é fundamental, a fim de que a organização consiga se manter sempre alinhada com as mudanças de mercado e que seu produto/serviço não se torne obsoleto. É fundamental despertar nas organizações o interesse nas avaliações contínuas de marca e reputação, se apropriando de métricas e indicadores para uma gestão mais fidedigna sobre seu negócio. Esse controle constante das informações e dados ajuda as empresas a compreenderem o que está sendo dito e como seus públicos estão se relacionando com a marca. Assim, em um cenário de crise, a gestão e tomada de decisões serão feitas com maior agilidade e assertividade.
Por fim, as organizações precisam tratar com maior relevância as questões de gestão de marca e reputação. Tendo em vista o contexto midiático a que estamos inseridos, onde as notícias repercutem com uma velocidade nunca vista e que a sociedade está cada vez mais engajada, se posicionando, levantando e defendendo suas bandeiras. É preciso estar preparado para administrar crises e se antever às mudanças de perfil do seu público faz toda a diferença para a imagem, reputação, manutenção e sobrevivência da marca.
(*) Eleito em 2013 pela Harvard Business Review o conceito de Marketing mais importante dos últimos 50 anos.
Este artigo é uma iniciativa do Projeto Constelação, que tem o objetivo de descobrir novos olhares, formatos e linguagens sobre temas relacionados com marca, reputação e engajamento de stakeholders.
Daniele Ornelas é relações públicas e Analista de Comunicação do Departamento Nacional do Sesc e pós-graduanda em Comunicação Organizacional Integrada.
Dario Menezes é professor da FGV e da ESPM e Diretor do GroupCaliber, consultoria empresarial focada em gestão da marca e da reputação (www.groupcaliber.com.br)