Diário de um imigrante- cap 9
Irlanda: para chegar à "Ilha da Esmeralda", em 2008, tive que percorrer uma longa estrada de descobertas e novos caminhos

Diário de um imigrante- cap 9

No episódio anterior da série “Diário de um imigrante”, eu interrompi o relato exatamente no clímax da história, ou seja, no momento mais importante do capítulo onde as pessoas se perguntam: “O que acontecerá agora?”. Sem querer dar muito spoiler antes que cheguem ao final deste capítulo, lhes posso assegurar uma coisa com convicção: com certeza esse será o segundo capítulos mais difícil de escrever- o pior de toda minha vida será quando eu tiver que relembrar o dia 3 de agosto de 2015-. Esse sim nunca ninguém lhe roubará o posto de antagonista do pior dia de minha vida e que nunca sairá da minha cabeça.

Mas retomando a narrativa linear, era meu retorno oficial ao Brasil, à minha família e à convivência com meus amigos. No entanto, agora, eu ostentava um novo visual (já sem o pesadelo das próteses e que havia sido o motivo da mudança repentina à Portugal). Eu estampava um sorriso no rosto que há muitos anos não se via. O meu coração estava totalmente dominado pelo amor. Déa estava de volta à minha vida depois de longos sete anos de ausência, e não vinha sozinha, mas acompanhada de dois filhos.

Era madrugada do dia 1 de janeiro de 2002. Eu apertava forte em uma de suas mãos para lhe dar segurança e na outra apoiava Leonardo no meu ombro. Léo era o seu filho caçula de três anos. Já que era para assumir que fosse tudo de uma vez e sem rodeios. Eu queria mostrar a todos que não era um romance de verão passageiro e que os seus filhos seriam os meus enteados. Sempre tive um instinto paternal muito forte.

Eu tinha muito amor para dar e queria ser amado por eles. Talvez o romance de Jade e Lucas em “O Clone” e que havia embalado nossa relação até ali era a vitamina que necessitávamos para nos sentir mais fortes para os desafios que a vida nos preparava. Mas será que dessa vez o destino nos deixaria viver nossa história sem nenhuma surpresa ou percalço pelo caminho?

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O amor proibido de Lucas e Jade em "O Clone" serviu como inspiração para viver nossa história da vida real

Posso dizer que a recepção que tivemos foi bastante calorosa por parte da minha família e de meus amigos. De verdade, eu não esperava outra reação deles. Eu os amava muito e sabia que estariam felizes se eu estivesse feliz, e naquele momento ninguém no mundo ousaria dizer que eu não exalava felicidade. Até meu semblante havia mudado. O corpo que antes andava sempre curvado com medo que alguém se aproximasse e tocasse na prótese havia ganhado segurança. Eu passava isso no olhar e nas ações. Depois de tantos anos aquele sem dúvida estava sendo o melhor Réveillon de minha vida por duas razões: primeiro porque eu estava livre do problema e do trauma que havia me aprisionado por tantos anos seguidos; segundo, porque a vida havia me presenteado com o grande amor de minha vida. Dizem que o primeiro amor é o mais forte. Será mesmo??? Há muitas controvérsias nesta teoria e eu fui testemunha disso mais adiante.

Com o desenrolar dos meses, minha relação com Déa foi crescendo e ficando mais forte a cada dia. Estávamos realmente apaixonados (eu com certeza), fazíamos planos para o futuro, e o principal deles era que eu conseguisse um trabalho e pudesse alugar um espaço para recomeçar nossas vidas em um cantinho só nosso. Eu também não abria mão de ter o meu Pedro, filho que eu sonhava há tantos anos em ter com ela e que havia sido prometido no nosso primeiro namoro na adolescência.

Como amante de teledramaturgia há muitos anos e estudante de roteiro, minha trajetória sempre esteve ligada às novelas. Na infância já era um assíduo fã do gênero e trocava tudo que estava fazendo para vê-las. Aos 14 anos decidi que seria um roteirista após ver “Vale Tud”, e muitos anos depois, no meu retorno de Portugal para o Brasil, a história proibida de amor de “O Clone” motivou minha própria história com Déa.

Só que, coincidentemente, outra trama também invadiu nosso romance. Às 18 horas, a TV Globo passava uma novela muito leve: “Coração de Estudante” (foto abaixo), protagonizada por dois atores que eu já admirava muito: Fábio Assunção e Helena Ranaldi (que virou minha atriz mais cobiçada para trabalhos como roteirista). Era inegável a química e a beleza que eles transmitiam pela tela, mas uma das coisas que mais me chamava a atenção e que virou o meu tema de namoro foi a canção internacional “Wherever will go    m” do The Calling, tema do casal. Em minhas fantasias, essa seria a música que tocaria na nossa cerimônia de casamento.

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Helena Ranaldi e Fábio Assunção viviam uma linda história de amor na novela das 6 e o tema internaciinal deles nos inspirava. Era a música escolhida para a cerimônia de casamento


Planos, sonhos, ilusão... Como era bom sonhar!!


A BRUXA DO ESPELHO VOLTA A ATACAR

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O espelho da vida real me mostrou uma verdade que eu não estava preparado para ouvir

Poderia passar capítulos e capítulos escrevendo sobre os meses de amor incondicional que tive por aquela garota, de como me doei por aquela relação e como sonhava com um futuro feliz ao seu lado. Mas há coisas que acontecem nas nossas vidas para nos mostrar que talvez o que pensávamos ser o caminho da felicidade é apenas uma armadilha do destino. E que o que aconteceu em seguida me ajudou a moldar a pessoa que sou hoje. Ela foi responsável direta e indiretamente por toda revolução de minha trajetória, e ao menos por isso, somente por isso, devo agradecê-la e dizer: “Obrigado”.

E foi ele, o velho e traiçoeiro destino quem me pregou uma grande rasteira meses depois. Eu fui literalmente pego de surpresa por um distanciamento repentino de Déa, seguido por uma frieza absurda. A pessoa doce, amorosa e que me fazia juras de amor subitamente se transformou na bruxa má do espelho, que não pensava em dizer coisas ruins ou se me machucaria com suas ações. Isso me fez reviver traumas do passado e a remexer em feridas que eu pensava que estavam cicatrizadas. Doce ilusão. As cicatrizes nunca estão curadas. Elas permanecem ali para sempre.

Pois bem, em 23 de fevereiro de 2002, faltando poucos dias para completar um ano de relação Dea me disse friamente, por telefone, que não queria mais que eu a procurasse. A justificativa foi que seus filhos necessitavam mais de sua atenção, e que ela havia feito tudo muito rapidamente e precisava ficar um tempo sozinha. Essa era a mesma pessoa que me havia feito voltar de Portugal, que havia jurado mil e uma coisas.

(Aqui abro um parêntese importante porque muitos podem se perguntar o que minha vida pessoal tem a ver com minha trajetória de imigrante? Eu diria que tudo! Porque foram os acontecimentos pessoais que me fizeram tomar decisões futuras em cada um dos outros quatro países que eu mudei, e como eles envolvem temas importantes, como bullying, rejeição e depressão, acho que são pertinentes para a trajetória deste diário porque creio que meus relatos pessoais podem ajudar outras pessoas que passaram ou passam pelos mesmos problemas e por isso decidi escrevê-los porque não teria como contar minha história sem explicar o que motivou minhas viagens. Ficaria fake e eu sou muito transparente e real para flertar com a mentira. Aqui não está o André roteirista, mas sim o jornalista, que tem um compromisso ético com a verdade).

Dito isso creio que é hora de encerrar a minha história de amor com Déa por aqui. Ao contrário das novelas “O Clone” e “Coração de Estudante”, a minha história de amor da vida real não teve um final feliz. Em nosso último encontro, na antevéspera do Natal, ela me tratou muito mal. Era como se eu lhe causasse repulsa. Ela já não me olhava mais nos olhos, evitava o meu toque e em nenhum momento se comoveu com minhas lágrimas. Eu custava acreditar que aquilo estava acontecendo.

Era um pesadelo. Doía muito e eu chorava copiosamente como uma criança e nunca vi uma pessoa agir tão friamente como ela reagia ao ver meu sofrimento. Uma vilã de novela não teria sido tão cruel. Naquele final de tarde, era um sábado, a levei de volta para sua casa de carro e ela não abriu a boca e nem se despediu ao sair. Eu estava transtornado, nervoso e ela foi incapaz de pegar o telefone e perguntar se eu havia chegado bem em casa. Podia ter sofrido um acidente, mas creio que para ela isso não lhe faria diferença ao menos naquele instante. Hoje já não posso dizer o mesmo porque nunca mais a vi.

Esse foi o meu último contato com ela e dias depois descobri que Déa estava namorando o instrutor de sua academia de ginástica e que ele havia se mudado para sua casa. Eu fui apenas usado para que ela se libertasse do ex-marido. Creio que foi uma fuga e hoje vejo que nunca foi amor. Nem sempre as histórias de amor têm final feliz, e eu me recordava de algumas, como “Roda de Fogo” onde o protagonista Tarcísio Meira morria no colo de sua amada Bruna Lombardi.  Sim, coisas da ficção que acontecem na vida real.


DEPRESSÃO, DESCOBERTA, LIBERDADE E RENASCIMENTO

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Quando você está deprimido luta para voltar ao normal, mas a doença é uma das doenças mais traiçoeiras do mundo


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Se você não busca ajuda a depressão pode te levar á morte, por isso, é tão importante buscar ajuda profissional com especialistas que te indicarão o melhor tratamento


Depois de tantos acontecimentos tristes seguidos não seria difícil imaginar que um coração machucado entraria facilmente em depressão não é mesmo? Eu que já havia tido alguns indícios dessa doença na época das próteses, fui totalmente envolvido por essa enfermidade. Ela chegou de mansinho e quando vi já havia me dominado completamente.

Eu não tinha vontade de fazer nada. Nos meses que estive com Déa estava feliz porque havia conseguido um trabalho importante na minha área de comunicação. Era um trabalho de projeção, mas temporário. Acabou o contrato e não houve renovação porque era assessoria política e o candidato havia perdido as eleições. Então, fiquei novamente desempregado e sem a pessoa que eu amava. Foram meses muito complicados onde me anulei totalmente. Deixei de sair de casa de novo, de procurar meus amigos e me anulei. Isso durou mais de um ano. Não busquei ajuda médica.

Com certeza se nessa época da depressão tivesse conhecido a terapia ela teria me ajudado muito, mas muito mesmo. Eu sofria sozinho, e minha família também não sabia como me ajudar (minha mãe já tinha problemas demais e ao mesmo tempo ela também precisava de terapia, mas preferia se fazer de forte para todos nós).

A situação só começou a mudar quando consegui empregos seguidos na minha área como repórter de jornal impresso. Sair às ruas e cada dia conhecer histórias diferentes e contá-las para meus leitores me enchia de alegria de novo e ocupava minha cabeça. Isso me fazia lembrar de tantas novelas que tinham redações de jornais e revistas, como a própria “Vale Tudo” com a revista Tomorrow e “Andando nas Nuvens” que o casal de protagonistas era jornalista.

Acima, cena icônica de Vale Tudo na redação da revista Tomorrow. Trabalhar em redação me enchia de vida de novo

Em 2005 consegui trabalho num jornal que eu almejava desde a época da faculdade e que me ajudou a crescer profissionalmente, e nesse período tive oportunidade de conhecer vários amigos que eram gays e que conviviam abertamente com isso. Não havia nenhum medo de rejeição por parte deles. E foi assim que tudo começou a mudar...

(Aqui vale a pena contextualizar coisas mais íntimas para não pegar o leitor totalmente de surpresa e parecer incoerente em muitas coisas que virão em seguida. É preciso que saibam de coisas do meu passado para entender muitas ações do presente).


A CRONOLOGIA DE UM BULLYING

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Foto de campanha alertando sobre a problemática do bullying e de como isso afeta a vida das pessoas

7 anos: levei uma surra de minha mãe porque uma tia minha contou a ela que sua filha sofria na escola porque as amiguinhas riam de mim pelas costas por eu ser “mariquinha”. Eu não tinha a mínima ideia o que isso significava. Era uma criança tímida e sozinha. Não tinha contato com outras crianças e vivia cercado de cuidados numa chácara sendo reprimido de muitas brincadeiras pelo meu avô paterno que temia que eu me machucasse.


7 aos 12 anos: ia à escola e ficava totalmente sozinho no intervalo. Ninguém se aproximava de mim ou tentava ser meu amigo. Isso me fechava mais ainda. Nas excursões da escola eu ficava isolado.

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Minha timidez me impedia de fazer amigos e eu me refugiava na escola e nessa época já começavam os primeiros ataques


12 aos 14 anos: sem dúvida, uma das piores fases da minha vida. Era muito tímido e fechado. Não tinha amigos e tão pouco malicia. Com isso, virei alvo fácil da “turma do fundão” que praticava todo tipo de bullying comigo por eu ser indefeso. Na educação física era humilhado pelos meninos porque não sabia jogar futebol. Muitas vezes, sem que o professor visse me atiravam pedras e me chutavam. Eu sofria calado, e foi nessa época que me apelidaram com o único intuito de me ofender. Eu passava pelos corredores e ouvia palmas, risadas e dois nomes: “Florisvaldo” e “Florisbela”. Diziam que eu era a flor daquela escola. Eu chorava no banheiro. Então, comecei a “enforcar” as aulas de educação física porque nunca tive coragem de contar as razões para minha mãe de eu não querer ir às classes. Ela descobria as minhas faltas e me batia de cinto. Apanhei muitas vezes e nunca contei a verdade. Aquilo me feria profundamente.

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Sem dúvida, dos 12 aos 14 anos foi quando mais sofri rejeição e bullying na escola e isso me deixou cicatrizes profundas e traumas


15 aos 17 anos: LIBERTAÇÃO. Entrei para o antigo colegial e na escola havia um grupo de teatro. Ter entrado para aquele grupo foi a melhor coisa que podia acontecer na minha vida. Entre idas e vindas fiquei com eles 10 anos, e graças à essa convivência e a muitos trabalhos ganhei meu DRT (registro profissional de ator). Muito do que sou hoje devo à liberdade que esse grupo me fez sentir. Fui aprendendo com eles que “ser diferente era ser normal”, e foi nessa fase que comecei a viver conflitos. Havia conhecido a Déa aos 15 anos. Era um amor infanto- juvenil e puro que não foi pra frente pela minha total timidez (só voltamos a namorar mais sério quando fiz 18 anos). No entanto, nesse meio tempo me permiti a viver experiências com outros meninos e tive os primeiros beijos. Era muito difícil controlar tudo aquilo. Dentro de mim havia um turbilhão de desejos reprimidos, vontade de experimentar o meu corpo, mas eu me culpava após cada beijo.

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O teatro foi minha libertação para um mundo de descobertas novas e foi onde comecei a renascer. Acima, uma cena clássica de uma montagem de Romeu e Juieta.


NOTA IMPORTANTE : Todo esse bullying sofrido na infância e adolescência ao menos serviu para uma coisa boa: o surgimento da minha série autoral "O Talismã". Nela, eu conto como o bullying afetou a vida de cinco amigos de infância e como as cicatrizes desse passado os levou a acertar contas com esse destino traiçoeiro. Muito do que vivi e senti na pele está expresso neste trabalh. É um dos meus projetos como roteirista mais importante e que sonho em tirar do papel porque creio que esse é um tema que precisa ser debatido em sociedade. Só quem passa por esse problema sabe o quanto ele machuca e provoca danos irreversíveis. Por isso, aqui abro um parêntese para produtores interessados em conhecer essa minha história. Posso lhes afirmar que é impactante.


18 anos: REENCONTRO: nessa fase tive um reencontro com Déa e todo aquele amor do passado voltou a nascer. Com ela eu me sentia forte. Ela me fazia bem e eu me sentia amado. Era complexo porque durante toda infância e adolescência eu me sentia muito sozinho, mas ela supria toda essa carência. Tivemos uma relação muito forte, mas tumultuada desde o princípio. Nossas famílias por razões diferentes não aceitavam nosso namoro e acabaram se unindo para nos separar. Revoltada, ela engravidou do primeiro cara que apareceu para decretar o fim da nossa história.

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O Talismã é meu projeto de série onde conto como o bullying afetou a vida de cinco amigos de infância que voltam a se unir no presente para acertar contas com esse passado


2005- ANO DE VIRADA RADICAL

DEZEMBRO DE 2005: depois de tantos golpes que eu havia sofrido no passado, principalmente de muito bullying, de agressões físicas, assédio moral, traições, rejeições, medo, inseguranças, traumas e decepções eu me sentia mais forte e preparado para viver tudo o que tivesse que viver sem medo de sentir o que eu estava sentindo.

Minha cabeça estava diferente. Todo medo e rejeição que eu havia sentido no passado eu já não deixava que me afetasse mais. O teatro tinha me ajudado neste processo de libertação, mas principalmente os novos amigos que a vida foi me dando e que dia após dia me mostravam que sentir-se atraído por uma pessoa do mesmo sexo não era um crime e que eu deveria me abrir a novas experiências se era aquilo que eu estava sentindo no momento.

Eu não era nenhum adolescente mais.  Já era um homem de 30 anos, mas ainda muito reprimido sexualmente. Novamente por temer rejeição da família e do círculo de amigos que eu havia conquistado- todos héteros machistas-, acabei me fechando. Tudo isso começou a mudar quando fui pela primeira vez à uma festa gay e assisti ao meu primeiro espetáculo gay: “O 3 travesseiro”, baseado no romance homônimo de Nelson Luiz de Carvalho.

Ali eu já não tinha mais nenhuma dúvida sobre os meus sentimentos. Eu era gay! Talvez nunca havia aceitado essa condição por já ter sofrido muita rejeição. Talvez tanto bullying sem ter o direito de defender-me e justamente num momento que eu não sabia nada sobre a vida me fez despertar curiosidade.

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Demorei por medo e por rejeição a aceitar minha condição sexual, mas ao assumir isso me fez mais forte

Mas nesse meio tempo EU AMEI UMA MULHER E NÃO FOI FUGA. As três vezes que me apaixonei por Déa, eu realmente estava apaixonado e nunca desejei estar com outro homem, por isso, costumo dizer que os rótulos são um perigo. Não há nada que te impeça de amar uma pessoa, se apaixonar por alguém em épocas diferentes de sua vida independente da sexualidade dessa pessoa. Hoje, isso poderia ser chamado de polissexual, ou seja, o direito que tenho de me apaixonar e me relacionar com a pessoa independente da sua sexualidade.

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Cores da bandeira polissexual em uma montagem na floresta. Se no passado eu tivesse buscado ajuda teria me aceitado muito mais facilmente e sofrido menos

Déa foi uma das pessoas que mais amei na vida, mas era um amor puro, sem malícia, uma coisa de criança que levei para a vida adulta e o fim brutal em 2002 me ajudou a descobrir um novo André. Acabei aprendendo com ela que são nas dificuldades que a vida nos ensina a ser mais fortes.


DEIXEI O ORKUT ABERTO E O MEU CLOSET FOI LITERALMENTE ABERTO

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O Orkut apareceu e provocou uma revolução na época. As pessoas ficaram dependentes dessa mídia social. O Brasil foi um dos líderes mundiais dessa rede e graças ao orkut minha sexualidade foi revelada


Três meses antes de dezembro de 2005, eu, como muitas pessoas no Brasil, vivia a febre da primeira rede social: o extinto ORKUT. Não se falava em outra coisa. Era algo viciante. Eu me apaixonei por tudo aquilo. Como uma ferramenta podia me dar a oportunidade de falar com pessoas de outros lugares e até países? Era tudo muito moderno.

E foi justamente essa rede social a responsável por escancarar a minha “nova realidade” à minha família. Há quase três meses eu vinha falando por horas seguidas durante a madrugada com uma mesma pessoa. Voltava do trabalho à noite, e às 21h30 já estava sentado ali diante da tela. Ficava até o dia amanhecer. Era um menino. Se chamava LEANDRO, vivia no estado de Santa Catarina. Ele apareceu no meu Orkut misteriosamente. Até hoje não sei como me encontrou porque eu nunca havia estado em Santa Catarina e não conhecia absolutamente ninguém de lá. Mas seu convite havia chegado, a foto me chamado atenção e quando vi já estava envolvido.

Creio que a carência, a vontade de viver novas experiências depois de tanta repressão, tudo fez com que eu quisesse me envolver. Falávamos todos os dias, e por ironia do destino em uma das noites deixei aberto a tela de conversação e minha irmã leu tudo. Ela acabou descobrindo que a viagem que eu havia inventado de última hora para Joinville era, na verdade, para conhecer um rapaz.

 Não preciso dizer que literalmente a casa pegou fogo naquela noite. Por sorte, minha viagem seria no outro dia, e mesmo que eu não tivesse comprado os bilhetes fugiria para qualquer outro lugar do mundo. Eu não poderia suportar aquela pressão na minha casa.

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Após ter minha sexualidade revelada mais do que nunca eu precisava sair de casa e aproveitei a passagem para Joinville para dar uma guinada em minha vida

Eu nunca imaginei que em pleno 2005 pudesse sofrer tanta rejeição por descobrirem que eu era gay. Minha irmã e minha mãe não aceitavam de forma alguma, gritavam, choravam, diziam que tinham vergonha e que aquilo era pecado. Mas elas não falavam isso por não me amarem, pelo contrário. Era justamente por medo do que eu fosse sofrer. O mundo era e continua sendo muito cruel com “pessoas diferentes” e que fogem do padrão (?) imposto pela sociedade.  Elas haviam sido educadas assim. Não tiveram oportunidade de conhecer o outro lado e pensavam que me reprimindo estariam me protegendo das maldades do mundo, por isso, hoje entendo o comportamento agressivo e as palavras duras ditas na hora que descobriram minha sexualidade.

Foi uma noite traumatizante, horrível e que nunca mais me esqueci. No outro dia viajei quase dez horas seguidas para um estado diferente para conhecer um estranho que eu havia me apaixonado pela internet.  Loucura? Talvez sim, mas ao mesmo tempo era um grito de liberdade. Bastava de tanta repressão.

(Como essa é outra história que prefiro ocultar alguns pontos vou resumi-la porque não quero expor fatos que não merecem ser mencionados porque são muito tristes e fortes, e que envolvem outras pessoas e por isso prefiro apenas dar o desfecho desta outra história triste).

Duas semanas depois de conhecer Leandro, eu decidi voltar para minha cidade, pegar as minhas coisas e me mudar para Joinville. Minha jornada de aventureiro começava exatamente naquele ponto. Vivi nove meses ali e praticamente sozinho. Fiz tudo por aquela pessoa a ponto de esquecer de mim mesmo, de me anular, me humilhar por aquele amor e mais uma vez fui traído da pior forma possível. Graças a mim, ele havia conseguido um novo trabalho e justamente numa viagem de treinamento a São Paulo eu descobri a traição.  

Um segundo golpe certeiro. No boxe seria chamado de nocaute, mas foi exatamente isso que aconteceu. Fui nocauteado mais uma vez pelo amor, e desta vez, por uma pessoa que eu havia saído de minha casa e que havia ido até o limite de minhas forças por ela. Hoje vejo que a paixão por Leandro acabou sendo uma fuga para que eu me assumisse longe de casa. O amei, mas era um amor doentio e tóxico. Nunca tive paz ou felicidade com aquele amor porque ele nunca quis me amar. Era uma pessoa também machucada pelo passado e que não acreditava no amor. Dizia que havia se transformado em pedra e que era incapaz de se abrir para o amor.  Seria ótimo como amigo, mas NUNCA como namorado. Novamente eu havia caído em uma nova cilada, mas essa armadilha serviu para que eu me libertasse sexualmente. Já não havia mais segredos. Aquela era minha verdade e doesse a quem fosse eu viveria minha vida como eu quisesse porque só se vive uma vez.

FINALMENTE UM PRESENTE DO DESTINO E DESSA VEZ SEM DATA DE VALIDADE

Justamente no final de semana que descobri a traição de Leandro pedi dispensa do jornal onde trabalhava como repórter e voltei para minha casa. Era importante ter o colo da minha família. Eu me sentia muito frágil, carente e triste, mas ao mesmo tempo via que aquilo podia ser uma libertação.

Leandro me aprisionava num falso amor e depois de tanto sofrimento com Déa eu queria um amor de verdade. Era sexta-feira e decidi ir à uma cidade vizinha numa disco gay. O local chamava-se 9. Fui sozinho porque naquele fim de semana meus amigos não puderam ir.

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Foi nessa antiga boate em Piracicaba que o destino que havia sido tão cruel comigo me deu uma trégua e trouxe Fabricio.

Dancei sozinho, bebi até cerveja que eu odeio e quando era próximo das quatro da manhã, percebi que um garoto com uma camisa parecendo um time de futebol me dava um sinal. Olhei para trás para me certificar que era comigo mesmo e fui até ele. Nos apresentamos e partiu dele o primeiro beijo.

Era a pessoa com o sorriso mais lindo que eu já havia visto em toda minha vida. Ele era moreno, cabelos negros e muito volumosos cortados num corte moderno. Me disse que se chamava FABRICIO. Saímos da boate, fomos para meu carro e com minha mania de sinceridade contei minha vida pra ele em 10 minutos. Não dei nem tempo para ele respirar. Melhor assim, pois não queria criar falsas expectativas porque dentro de três dias voltaria para Joinville. Creio que o usei como terapeuta porque por ele ser gay talvez conseguisse me explicar o inexplicável: por quê as pessoas traem? Eu pensava que no mundo gay seria diferente, mas o tempo me mostrou que as fragilidades não tem nada a ver com a sexualidade. Seres humanos são seres humanos. São passíveis de erros e acertos.

Para minha surpresa, Fabricio não só me ligou no outro dia, mas como me apresentou para sua mãe. Por coincidência, ele também era da minha cidade. Passamos um final de semana dos sonhos e ele me fez esquecer completamente qualquer tristeza. Me prometeu que ia me visitar o mais rápido possível. Eu nunca acreditei naquela promessa, mas para meu espanto 15 dias depois, ele estava chegando à Joinville. Havia conseguido um atestado falso em seu trabalho para ficar comigo. Vivemos um final de semana maravilhoso. Ele me trazia uma alegria de viver contagiante. Era alto astral, animado, lindo por fora e por dentro, e pra melhorar: um canceriano romântico, assim como eu. Era bom demais para ser verdade. Será que viria um novo golpe?? Até quando aquele medo ia me perseguir?

Fabricio ficou comigo 15 dias, voltou para Americana, pediu demissão do trabalho e se mudou para Joinville comigo. Sim, minha vida era uma roda gigante de emoções. Tudo o que eu havia feito por Leandro no passado, Fabricio fazia por mim agora no presente. Estávamos apaixonados e felizes. Fá, como eu o chamava, conseguiu um trabalho no “O Boticário” e em pouco tempo virou maquiador. Ele era muitooo inteligente, carismático, sedutor, eu diria, e conseguia tudo o que queria com seu carisma e seu charme. Felizes, faltava algo para completar nossa felicidade: Mel, uma cachorrinha de estimação que mudou minha vida.  Testei o meu lado paternal com ela e Mel se transformou numa filha. Era um cisco, menos de um quilo. Era muito pequenina, mas super esperta e carinhosa e facilmente se apegou a mim.

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Mel era adorada por todos, e virou companheira fiel de minha mãe quando fui para a Irlanda.

Meses depois de chegar à Joinville, Fá recebeu uma proposta para se mudar para Florianópolis e implantar cursos de auto maquiagem ali. Eu adorava praia, já havia escutado coisas maravilhosas de Floripa. Consegui uma transferência do meu trabalho para a sucursal de Floripa e embarcamos para uma nova aventura.

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Florianópolis, capital de Santa Catarina, foi onde tive paz e amor depois de tantas tempestades


Foi sem dúvida um dos melhores períodos da minha vida. Fiz muitos amigos, meu trabalho ia muito bem (já havia sido indicado como um dos melhores repórteres do Estado num prêmio estadual). Estávamos felizes, radiantes e quando íamos fechar o aluguel de um apartamento uma notícia caiu como uma bomba: a sucursal de Floripa seria fechada e eu estava demitido.

Sem trabalho bateu o desânimo, mas, por outro lado, surgiu uma esperança de resgatar um sonho do passado: fazer um intercâmbio de idiomas em outro país. Anos antes eu havia passado em todas as seleções de um programa do Rotary em Paris e desisti na última fase, mas agora era diferente. Fá era aventureiro como eu e nos amávamos. Juntos não haveria limites para a gente.

Comecei a pesquisar os melhores destinos de intercâmbio e cheguei até Cape Town, na África. Seria o melhor destino para se aprender inglês porque haviam poucos brasileiros ali. O único problema é que não podia trabalhar e estudar e eu não era rico, muito menos Fá.

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Cape own , na África foi o nosso primeiro destino de intercâmbio e chegamos a tomar a vacina da febre amarela, exigência para morar no país, mas de última hora mudamos os planos para Dublin


Com baixo recurso financeiro e a impossibilidade de trabalhar no país, a moça da agência de intercâmbio de Floripa nos mostrou pela primeira vez as fotos de Dublin, capital da Irlanda, e nos disse que seria o destino ideal porque lá haviam muitas escolas com bons preços e o visto de estudante nos permitia trabalhar legalmente no país nas horas vagas. Era bom demais para ser verdade. Na mesma semana mudamos totalmente a rota e o nosso destino.

Em setembro de 2008, Fá e eu desembarcávamos em Dublin com o coração totalmente livre para as aventuras que aquele país nos daria. E que aventuras! Parece que vivemos anos seguidos ali diante da avalanche de acontecimentos que fomos submetidos. Mais do que nunca eu provava uma velha tônica: “viver é arriscar-se”. E num trocadilho certeiro com Dublin eu poderia dizer: “se está na chuva é pra se molhar”, pois quase todos os dias do ano chove em Dublin em algum momento.  E já que estava naquela chuva que viesse muita tempestade, pois era hora de viver plenamente aquela experiência.

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Temple Bar, um dos pontos mais emblemáticos de Dublin. Foi nessa cidade que realmente o meu lado cigano aflorou mais forte e eu quis viver outras experiências. A Irlanda era uma escala para novas aventuras que viriam em seguida

OBERVAÇÃO IMPORTANTE: Para preservar a identidade de algumas pessoas de minha série eu optei em trocar o nome de alguns personagens porque o intuito não era expor a figura de nenhum deles, pelo contrário, mas não teria como contar minha trajetória de imigrante sem citá-los, por isso, em nenhum momento, essa identidade real deles será revelada.

VEM AÍ

No próximo capítulo de "Diário de um imigrante" já começam os perrengues no aeroporto quando sou barrado pela imigração e sem falar nada de inglês penso que serei preso, rs. Esse é apenas um aperitivo de muita história que vem por aí. A Irlanda entrou definitivamente no meu caminho para ficar.

Cláudia Teixeira

Buyer | Customer Experience | International Business | Export and Import | Content Moderator

1 a

Que lindo! Que lindo! De uma tragédia à esse amor que tive o prazer de acompanhar. Ah, Dublin! Quanta chuva, mas quanta história. Amando amigo!

André Luis Cia🏳️🌈

| Jornalista | Roteirista | Ghostwriter| Redator | Autor do blog "Desejo de viver". Escrevo sobre turismo, vida no exterior, dramaturgia e diversidade.

1 a

Gustavo Arger esse é o post.

Giseli Cabrini

Professora de português | Portuguese for foreigners | Celpe-Bras | Revisora | Ghost writer | Jornalista

1 a

Oi, André Luis Cia. Agora, sim. Li todo o texto. Como mencionei antes, acho muito corajosa a forma como você relata a sua trajetória pessoal. Eu me identifiquei com algumas situações, como o bullying e o fato de transportar situações e cenas da minha vida para novelas, filmes e séries. Numa época até pensei em escrever um roteiro para uma série sobre as minhas idas e vindas amorosas aos 30, mas Sex And The City já era sucesso. Então, desisti. Uma dúvida: você tem Peixes em algum lugar do seu mapa astral? Mas seus textos, me fazem lembrar de um dos meus autores favoritos: Dickens.

Teresa Macedo

Psicóloga | Psicoterapeuta | Especialista em Saúde mental e Bem-estar

1 a

Amando conhecer sua história!

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