Dia de domingo, uma crônica.

Dia de domingo, uma crônica.

Por volta de 1980, o Tatuapé ainda era um bairro operário e de migrantes. Ainda não existia a classe média do Jardim Anália Franco, o Ceret e o metrô, ainda eram só placas de obras. Meu pai tinha um corcel vermelho, do quadradinho. Corcel GT, aquele que tinha duas faixas pretas que iam de ponta à ponta na lateral. Para pegar, no inverno, só puxando o afogador e muita paciência. Minha mãe ia na mercearia de bobs e lenço no cabelo, normal. Eu e minhas irmãs estudávamos no Congonhas ou no Othelo Franco. O uniforme era um jaleco branco. Maconheiro só tinha um por bairro e todo mundo sabia quem era.Gravidez precoce? Tinha também. Mas aí o assunto era bem, bem sério. Arma? Só estilingue e o famigerado chaco. Ô troço que deixava todo mundo com os braços roxos. Era um verdadeiro exercício de masoquismo. Nas brigas ninguém usava, mas ficava treinando a semana toda na frente do espelho do guarda roupa. Não tinha celular (Só com muita espera e dinheiro, depois de anos, você conseguia uma linha fixa da Telesp), internet. Caso contrario? Seu bolso, se não fosse furado, vivia cheio de fichas telefônicas. Torpedo já existia, mas era no papel que, um amigo, levava para a menina. Quase todas as ruas, de tão paradas, eram lugar para uma pelada ou uma rampa de skate. E o bairro era coalhado de bailinhos ou discotecas, pros mais puristas. Todo domingo era um dia muito, muito, mas muitão mesmo, especial. Porque todas discotecas faziam às suas domingueiras. Do Juventus ao Corinthians. Da Play House (Rua Tijuco Preto) à Toco (Vila Matilde). Passando pela Tabacow, o Azevedo ou o Vasquinho. Na Moóca íamos raramente. Na época tinha um teretete forte entre os dois bairros e você corria o risco de levar um cacete se descobrissem que era do Tatuapé. Até comer no rodizio de pizzas do Grupo Sergio, na Tobias Barreto, era arriscado.

Mas, como dizia, os domingos eram especiais. Todo mundo se preparava a semana toda para a domingueira. Serio. Era a semana toda mesmo, sem exagero. Como todo mundo era classe média baixa, bem baixa, diria mais, baixíssima de marré marré, tudo era uma odisseia. As meninas tinham que dar um jeito no cabelo, nas unhas, maquiagem etc. Batom e sombra corriam de mão em mão até acabar. Pra quem não tinha grana, tudo era na base do me empurra que eu te puxo. Lembro que as meninas se reuniam na casa de uma delas, para uma fazer unha e cabelo, uma da outra. Ah, o empréstimo de roupa era intenso. Um verdadeiro mercado do ver o preço. Com os meninos não era muito diferente. No guarda roupa, só duas calças US Top (que não desbotam ou perdem o vinco) no máximo. Starup, Calvin Clein, Gladson? Imagina! Só para os playboys do Itaim Bibi. Naquela época, praticamente, outra cidade. E tinha uma coisa que piorava muito o perrengue diário: a moda. Que angustia! Hora era o suspensório, ou sapato bico fino, camisa de florzinha, cabelo rockabilly, repicado ou mullets, à lá MacGyver, o profissão perigo. Baile do Havaí era um inferno. Ninguém, obviamente, tinha uma calça branca e uma camisa florida. Nessas ocasiões, valia de tudo. Tudo mesmo. De crediário no Mappin à roubo. Um dia conto a história de quando o Humbertinho roubou a calça branca do seu vizinho, o Roberval. De onde? Do varal, oras! Baile de formatura só com paletó emprestado que, logico, nunca combinava nada com nada. Parecíamos obras ambulantes do Dalí ou Kandinsky.

E com todos os obstáculos daquela verdadeira maratona semanal, daquela galera operária sofrida, mas impávida, vencedores, íamos para a domingueira, que começava cedo, sempre às 20h e ia até 24h, no máximo. Segunda-feira todo mundo trabalhava. Era comum acordar 5:30 da madruga. Onibus pra cidade? Só o elétrico. Éramos chão de fabrica, office boys, auxiliar de escritório, balconista, caixa e todo tipo de emprego relegado ao “proletariado”. Os amigos da elite trabalhavam em bancos e já tinham uma novidade: auxilio refeição. Uma versão anterior ao tiket restaurante. Um luxo de ostentação. Comigo ela na base da marmita de alumínio, presa com borracha preta bem grossa. Mesmo assim, o feijão sempre vazava. Bem, voltando à domingueira. Globo girando, vinil rolando na pick up, e era só hits: Donna Summer, Kool & The Gang, Gloria Gaynor, Bee Gees, Village People, ABBA, (Quem não lembra de Dancing Queen?). E, naquele momento, com o sapato bico fino brilhando e segurando uma cuba libre, a magia acontecia. Até hoje posso sentir a alegria e a felicidade que vibrava com as caixas acústicas gigantes (Hoje uma de 30 centímetros tem mais potencia). Alí todo mundo era igual. Tanto faz se você fosse da periferia ou dos bairros mais nobres. Diferente mesmo era dançar bem e saber cantar às musicas. Outro desafio da semana. Ensaiar os passos e ouvir às Top 10 da Excelsior Fm.

Final da domingueira e todo mundo ia pra casa andando. Já não tinha ônibus. Alguns mais alegres: estavam de mãos dadas com seus mais novos namorados ou namoradas. Outros, mais azarados, iam segurando a vela. Às ruas desertas, ora ou outra só o apito do guarda noturno, de bicicleta. Era de lei deixar a menina em casa. Mesmo que ela morasse longe! Depois, era chegar em casa, dormir e sonhar até o despertador ensandecido tocar, avisando que era hora do batente. Era segunda feira e tinha uma semana toda até a próxima domingueira. Tinha estreado o filme Grease. Onde conseguir calça e camiseta preta, Deus?!

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