Digital Event Horizon: Arcos humanos, flechas tecnológicas
* Publicado originalmente na revita Época Negócios, em Outubro de 2020.
Samudaya é a palavra em sânscrito com a qual o Budismo explica a origem do sofrimento. É a Segunda Nobre Verdade registrada no Cânone Páli, o registro mais antigo dos ensinamentos budistas. Ali está escrito que o sofrimento se origina nos incontidos desejos pelos prazeres sensoriais, o desejo de ser desta ou daquela maneira, o desejo de não ser deste ou daquele modo, tudo acompanhado pela cobiça e pela luxúria.
Nada mais humano do que o fluxo ininterrupto dos desejos para satisfazer os nossos sentidos, de querer ser o que não somos, e de rechaçar o que nos incomoda. Porém, para um ocidental como eu, apoiado na interpretação fenomenológica do mundo, na perspectiva evolucionista dos comportamentos humanos e nos estudos sobre a sofisticação da inteligência artificial, há esta pergunta caprichosa: não seria este fluxo de desejos, antes, um destino, um horizonte para o qual vivemos sem poder nos desviar?
A revolução digital se dá como todas as outras transformações predecessoras da história. Assim como aconteceu com a revolução agrícola e as revoluções industriais, ela advém dos desejos que retesam o arco humano que, a cada instante, lança incansavelmente flechas tecnológicas na direção de alguma satisfação. É como se estivéssemos à mercê de um intenso centro gravitacional para o qual a luz de nossa consciência é curvada de tal modo que altera a própria dimensão existencial.
Mas o que é esta força gravitacional que nos habita, que obscurece nossa lucidez e nos impede de notar que os efeitos da revolução digital vão além do que se vê perifericamente? E como poderíamos usar tal centro de gravidade para revolucionar a própria essência transformadora das tecnologias digitais, visando o bem comum para a sociedade, para os mercados, para os negócios e para os indivíduos?
Buracos Negros
Em setembro deste ano, a equipe de cientistas do Event Horizon Telescope (que em 2019 revelou a primeira imagem real de um buraco negro) divulgou um filme em que as mudanças sofridas por aquele corpo celeste, devido a sua atração gravitacional, são observáveis de maneira singular. As imagens impressionam, pois, um dos efeitos do objeto supermassivo sobre o fluxo de matéria que continuamente é engolido é a emissão de um gigantesco jato relativístico de 1.500 anos-luz. É como se o arco do buraco negro fosse tensionado pelo ininterrupto fluxo de matéria atraído para a sua órbita para então lançar suas flechas de plasma no universo.
O aspecto a pensar aqui é o paralelo (metafórico) entre os buracos negros e o que se observa pelas vias da revolução digital. Enquanto no caso destes objetos astronômicos todo o fluxo de matéria e a própria luz são irrefreavelmente “engolidos”, no caso da transformação digital o alimento são os nossos desejos de satisfação plena, de parecermos melhores e de rechaçar o que não nos interessa.
A transformação digital, que ora é improrrogável para os negócios e para a reconsideração de uma constituição social compatível com as tendências tecnológicas futuras, nutre-se desses desejos humanos que são declarados, na dimensão digital, em forma de centenas de milhares de dados. Recolhidos dos registros digitais, esses dados revigoram os sofisticados algoritmos de IA que visam oferecer novos dados que possam estimular de alguma maneira os nossos desejos mais urgentes. Ou seja, são os nossos próprios desejos que fomentam a tecnologia para que ela os estimulem a satisfazê-los. De certo modo, nosso arco lança as flechas da tecnologia em nossa própria direção.
O eterno retorno do mesmo
Não posso evitar de associar tal fenômeno com o conceito nietzschiano do Eterno Retorno. Há um paralelo interessante.
Segundo a Teoria do Big Bang, a energia resultante da explosão inicial inundou o Universo de matéria. Esta mesma matéria é o alimento de buracos negros cuja o poder gravitacional é capaz de dobrar a luz, enquanto devolve uma quantidade impressionante de radiação gama, ou seja, energia.
Não muito diferente são as reflexões recentes dos cientistas Hugo Mercier e Dan Sperber, na obra O enigma da Razão: a new theory of human understanding. De certo modo, eles aludem à ideia de um centro gravitacional capaz de curvar a luz da razão, distorcendo a compreensão essencial de como a razão funciona. Como bem teorizam estes autores, em comentário reduzido: “A principal função das razões não é nos motivar ou nos guiar para que alcancemos conclusões, mas sim nos oferecer meios para explicar e justificar os fatos que levamos em consideração para concluir o que concluímos”.
O fato é que o arco humano dos desejos só é tensionado quando encontra razões que os justifique. No caso das revoluções tecnológicas (dardos que nós, arqueiros, arremessamos), a razão justifica tudo com a urgente incontinência de sermos atendidos de novo e mais além.
É com a razão em punho que observamos a luz curvada pelo gigantesco campo gravitacional dos buracos negros; é com ela que curvamos a luz da compreensão diante do gigantesco campo gravitacional dos desejos; é com ela que curvamos a luz da interpretação dos dados que alimentam os nossos algoritmos de inteligência artificial. É assim que a razão satisfaz a nosso desejo de compreender os desejos e os satisfazer. É o nosso destino. Ou como diria Buda, a nossa samudaya.
Horizonte de eventos
Os buracos negros, com suas turbulências e deformação do espaço-tempo, dobram a luz e colapsam toda a matéria perto de si; a razão filosófica, que almeja a sabedoria essencial, reluta com violência ao uso da lógica comum; e os milhões investidos para monetizar os dados coletados a partir da IA duelam com os vieses interpretativos.
Todos estes processos flertam com a ideia de um horizonte de eventos onde quem se dedica a chegar mais perto e compreender o fenômeno, sofre com brutal intensidade de ser impedido de chegar; quanto mais se esforça para chegar perto, mais o que observa é apenas uma desaceleração crescente, nunca chegando no ponto almejado.
Esta é a razão que sustenta o conceito de horizonte. O horizonte é algo que está ali e, mesmo ao nos aproximarmos, ele ainda parece estar ali, no mesmo lugar, como se estivéssemos praticando o eterno retorno do mesmo nietzscheniano (neste caso é o mesmo horizonte). A interpretação de Buda para o samudayaparece fazer sentido afinal. De fato, desejamos alcançar o horizonte, mas como nunca o alcançamos, sofremos. É o nosso indelével destino.
O que isso implica para os negócios?
No processo de transformação digital, penso que muitas empresas e governos cometem o erro de crer que o horizonte de eventos reside no processo em si, como se fosse algo além do humano, uma dimensão distinta, um espaço meramente digital. E por esta razão, o tema sugere incompatibilidade com argumentos humanistas.
Mas o horizonte de eventos da transformação digital é humano, pois nasce de nós, nasce destinado a ser assim, um destino mesmo. E é aqui, nesta aparente irrelevância do tema, que reside a melhor oportunidade para o futuro do mundo.
É preciso abraçar o nosso destino não como sofrimento, mas como abertura única por onde a luz de nossa consciência coletiva reinaugure o nosso humanismo. Diante dos avanços das tecnologias digitais, da evolução da IA, e dos faraônicos repositórios de dados, a via dos debates, das reflexões e das conclusões possíveis é aquela iluminada pelo humanismo digital (para ler mais sobre o assunto, acesse o artigo Humanismo Digital e Inteligência Artificial).
Dispomos deste arco magnífico em nossas mãos. Arco que há milhares de anos lança suas flechas em direção ao nosso destino. Lascamos e polimos pedras, fundimos bronze e ferro, inventamos a agricultura, movimentamos máquinas à vapor, máquinas movidas à combustível, incandescemos filamentos, criamos a indústria, cindimos o núcleo dos átomos, inventamos os computadores, as máquinas de calcular, a internet, as redes sociais, a inteligência artificial, os robôs e muito mais.
Estamos mais preparados do que nunca para redescobrir o humanismo e, com ele, o bem comum. Isto reside exatamente ali, onde o horizonte de eventos é digital; ali, onde sempre esteve o nosso destino: ser humano.
By Cassio Pantaleoni, M.A. Philosophy, All rights reserved, 2020
Diretora Social do Clube dos 21 Irmãos Amigos de Santos , Diretora de Relações Públicas do MAF - Movimento de Arregimentação Feminina e Diretora Social do Instituto Histórico e Geográfico de São Vicente.
3 aExcelente !!!!!!!