Direito e Arte: das Arcadas para os palcos
O Direito está na Arte, e não há por que imaginar que a Arte não esteja no Direito. Não se trata de mera inspiração temática, como quando o cinema exibe histórias de cunho judicial - há fartura desse tipo de filme, alguns excelentes, outros ruins. Trata-se de interseções práticas: a oratória inflamada do advogado no Tribunal do Júri estaria muito distante de um monólogo teatral?
Seriam as faculdades de Direito, além de formadoras de juristas, celeiros de atores e dramaturgos? No caso das Arcadas, a icônica Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco, pode se dizer que sim sem medo de errar.
Na trágica morte de Zé Celso Martinez Correia, em julho último, os obituários lembraram que o fundador do Teatro Oficina era formado nas Arcadas em 1960. A dramaturgia revolucionária de Zé Celso, fruto de seu inconformismo com qualquer regra imposta, pode ter brotado de seus aprendizados sobre liberdade e justiça nos bancos acadêmicos.
Atolado em litígios com o empresário e apresentador de TV Sílvio Santos acerca do terreno onde se situa o Teatro Oficina, obra magistral de Lina Bo Bardi, e disposto a criar sua Universidade Antropofágica, Zé Celso foi buscar seu diploma de Direito só em 2008. Então, declarou: “Acho que o teatro tem um sentido de justiça e eu advogo muito por isso. Nos últimos 50 anos, fui um excelente advogado”. Desconto para a ironia da segunda frase, marca do diretor.
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O encenador de “Roda Viva”, “O Rei da Vela” e “Bacantes”, um “tropicalista” do teatro, preso e torturado na ditadura, odiado por puritanos da vida e da arte, estudou Direito ao lado de Dalmo Dallari, Fábio Konder Comparato, Rubens Ricupero e Márcio Thomaz Bastos. Foi aluno de Goffredo da Silva Telles, Esther de Figueiredo Ferraz e Cesarino Junior, professores dos quais gostava muito. Sobre os demais docentes de sua época, disse: “O resto sentava lá naquela cátedra e ficava repetindo discursos que davam havia 20 ou 30 anos, sem nenhuma relação com os alunos”.
Das Arcadas não saltou para a dramaturgia apenas Zé Celso. Lá se formaram o também diretor e ator Renato Borghi, co-fundador do Oficina, os geniais atores Paulo Autran e Juca de Oliveira e o consagrado diretor, ator e professor de artes dramáticas Emílio Fontana, este inscrito na OAB de São Paulo. Os atores Marcos Caruso e Caio Blat, hoje presenças frequentes em novelas de televisão, também estudaram no Largo de São Francisco - Blat não chegou a se formar, mas Caruso bacharelou-se em 1976.
A seu modo polemista, figura endeusada por muitos e detestada por tantos outros, Zé Celso parecia ter a consciência de que lugares e tempos possuem o condão de modificar verdades não apenas sociológicas, mas jurídicas. Se o Direito constitui um poderoso instrumento de resistência contra violações dos direitos humanos e da democracia, a Arte também pode ser assim entendida.
Raphael Carneiro Arnaud Neto, mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, presidente da Comissão de Direito, Arte e Cultura da OAB da Paraíba, escreveu junto com Marianna Chaves num site de artigos jurídicos um texto inspirado sobre Direito e Arte, do qual se extrai o seguinte trecho:
O recurso à Arte pode oxigenar, descontruir e remodelar o pensamento rígido e inflexível que muitas vezes habita a mente do jurista, ainda pautado - não raras vezes - em uma lógica meramente positivista e exegética. A Arte nos possibilita uma nova maneira de pensar, onde Direito e criatividade não são excludentes. Seja como se dê esse encontro, uma coisa se pode ter como certa: a Arte possui um papel fulcral na construção de uma formação criteriosa e humanística de advogados e juristas em geral. A Arte pode contribuir para a instauração de uma nova cultura jurídica, pautada pelo pluralismo e pelo pensamento critico do Direito.