#4 Distância psicológica, afetos e novas tecnologias

#4 Distância psicológica, afetos e novas tecnologias

Em 2020, morando em um apartamento em SP no meio da pandemia e grávida, decidi que precisava me mudar. Depois de conhecer algumas regiões, encontrei um bairro na zona sul que não parecia São Paulo. Quando entrei pela primeira vez, já senti aquele cheiro de eucalipto, um frescor que vem de terra um pouco úmida e aquele zumbido de cigarra misturado com piado de passarinho. Parece contraditório, mas morar em São Paulo sem parecer que eu estava nessa cidade era tudo que eu queria.

Todos os sábados pela manhã, um grupo de moradores se reunia em um parque para um ritual de compostagem. Os moradores do bairro deixavam um balde na porta do parque com o nome da tampa, escrito de canetinha, e iam embora. No sábado cedinho, o grupo de voluntários pegava os baldinhos, abriam as leiras e iniciavam a preparação. Era uma animação e uma disposição às 9h da manhã de sábado que me intrigava. Alguns baldinhos vinham errado, com saco plástico dentro ou com alguma mistura inapropriada. Nesse momento a harmonia do grupo se abalava e as reclamações vinham… mas ainda assim eles iam lá, ajeitavam, e incluam aquele resíduo na compostagem. Aquele gesto de cuidar do lixo do vizinho, sem nem saber quem era e sem ganhar nada por isso, me fez ter certeza que era ali que eu queria morar.

De onde nasce uma pesquisa?

Nessa mesma época eu começava o meu mestrado em politicas públicas com uma página quase em branco pra construir. Havia a influência do programa, das disciplinas que eu cursava, do meu sábio orientador, mas era importante incluir as minhas próprias expectativas. Eu esperava ter um olhar mais inovador, ao mesmo tempo em que tentava buscar inspiração em algo que fizesse parte da minha vida.. e assim começou a nascer uma pesquisa que buscava responder como cidadãos comuns se engajavam em questões ambientais da sua comunidade. Parece uma pergunta simples, mas existem muitos ângulos para abordar esse assunto. E eu escolhi abordar pelas lentes da inovação, discutindo um cenário onde tecnologias imersivas eram inseridas em ambientes democráticos para mediar a participação cidadã em decisões da comunidade.

Por que nos afetamos pouco com coisas que importam muito?

Eu imagino que você também se importe muito com a degeneração do nosso planeta, afinal de contas é o lugar onde vivemos. Não encontramos uma solução para lidar com resíduos, por exemplo: geramos muito lixo, reutilizamos muito pouco, a disposição final é muitas vezes inadequada, o que gera contaminação, e o ciclo continua. Isso provavelmente nos preocupa, mas nem sempre o suficiente para que adotemos uma vida mais minimalista ou para coletar e separar nossos resíduos para reciclagem. Também nos preocupamos com o aquecimento global, sofremos com as catástrofes ambientais que acontecem cada vez mais, com os dias super quentes ou gelados, com a péssima qualidade do ar, com o aumento do nível do mar. Mas de novo, talvez não o suficiente para trocarmos o carro pela bicicleta, para organizar uma carona no bairro, para reduzir o consumo de carne.

Eu já me senti insensível nas muitas vezes em que não consegui sustentar novos hábitos que pareciam mais justos e inteligentes. Já dei desculpas sobre o quão insignificante minha contribuição seria só pra que eu pudesse continuar nos meus velhos costumes. Estou em mais uma fase vegetariana, deve ser a terceira ou quarta. Separo o lixo há pouco mais de 3 anos. É pouco, muito pouco.

Mas é um processo de afeto… um lento processo de afetar e ser afetada.

Depois de ter crescido em um contexto que me fez acreditar que esse mundo sempre existiu para que a espécie humana pudesse viver, usufruir e ser feliz. Que a "categoria” humana era mais importante que os outros tipos de vida, e que essa supremacia justificava a degradação das outras espécies. É difícil sair dessa lógica, ainda que ela seja absurda e egoísta. Ela foi muito conveniente para o nosso desenvolvimento, até que deixou de ser sustentável.

Distância psicológica

A gente se afeta muito pouco com as questões ambientais porque, na maioria dos casos, existe uma distância muito grande sobre os impactos que esses problemas realmente trazem. Não sabemos ainda o que é viver em um planeta com 1,5 graus a mais: não conseguimos perceber que mudanças isso irá trazer na forma como comemos, nos locomovemos, trabalhamos e aproveitamos as férias.

Não temos muita noção do que significa 1 cm a mais no nível do mar, ou nem mesmo enxergamos quanto emitimos diariamente de gás carbônico. Na maior parte das vezes, a contaminação que nosso resíduo faz acontece bem longe da gente, em containers no oceano ou nos aterros de comunidades em situação de vulnerabilidade. Conhecemos pouco sobre o sofrimento animal, e naturalizamos o fato que morrer encurralado em cubículo é aceitável.

Ainda que tenhamos experimentado cada vez mais catástrofes, como as enchentes e os incêndios, ainda percebemos eventos isolados. A distância psicológica é amplificada pelo tempo, local, percepção de valor e posição. O exercício de reduzir essa brecha é árduo. Mas a tecnologia pode ajudar.

Novas realidades

Provavelmente você ja ouviu falar de realidade aumentada, quando representamos no ambiente fisico um objeto digital. Ou em realidade virtual, quando recriamos um ambiente fisico de forma digital… essas são algumas tecnologias que estão no guarda chuva chamado tecnologias imersivas. Um continuo de possibilidades para criar novas camadas de realidade, paralela a essa que já conhecemos como física ou real. Além das aplicações em jogos, marketing e varejo, essas soluções também podem ser utilizadas para diminuir a distância psicológica e aumentar a nossa consciência e conhecimento sobre questões ambientais.

Eu mapeei mais de 40 casos de experimentação de aplicação de tecnologias para projetos de proteção florestal, decisões de uso e ocupação do solo, proteção animal, ciclos hídricos e até mesmo efeitos da poluição atmosférico nos corpos celestes. Nesses experimentos, as tecnologias imersivas eram utilizadas para aproximar as pessoas dos cenários futuros e permitir que elas tomassem decisões mais conscientes no presente.

Um exemplo é o projeto desenvolvido por pesquisadores que recriaram uma floresta no futuro e permitiram que as pessoas interagissem com dados e informações das espécies de uma forma muito mais simples. No Brasil, há outros exemplos fantásticos, como o Amazônia Viva, que recria uma experiência em 360° imersiva pela região do Rio Tapajós.

Que não nos falte tempo para apreciar as nossas realidades.

Patricia Costa Campos

Innovation Specialist| Engineer| Strategy Advisor | Leadership| Product manager | project management | OKR | SAFE PO PM

4 m

Excelente, Clarisse! Obrigada por essa reflexão incrível! A pesquisa muitas vezes vem do desconforto sobre o que podemos fazer de diferente no mundo e esse olhar pessoal que gera essa conexão entre as narrativas que conectam as pesquisas as ações adotadas. Muito bom!

Rafaela Bittencourt

Gerente de Engajamento e Experiência do Empregado na ArcelorMittal | Employee Experience e Cultura de Escuta

4 m

Ótima reflexão Clarisse! Desafiador desfrutar dos benefícios de uma cidade desenvolvida, equilibrar o convívio com a natureza e conexão com as emoções.

Douglas Vieira, PhD

CEO do Grupo Enacom - Digital Twin Powerhouse

4 m

Ótimas reflexões!

Thaís Fonte Santana

Senior Consultant @ Deloitte | Innovation, Change Management, Digital Transformation, Service Design, Design Thinking, Strategy

4 m

Sobre afetar e ser afetado: penso no desenvolvimento do pensamento coletivo e no papel da educação nesse processo, e do quanto temos sido impactados há anos pela lógica individualista (que influencia absolutamente nossos hábitos de consumo - logo, já inviabiliza o pensamento de reuso e reciclagem). Muito boa a reflexão!

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