A distopia da utopia

A distopia da utopia

Ainda estamos no setembro amarelo, né? O mês da prevenção ao suicídio. Já faz alguns anos que o mês ganhou a cor, mas parece que só agora têm ficado mais... amarelo! 

Todos os anos, mais de um milhão de pessoas tiram suas próprias vidas em todo o mundo. No Brasil, são 12 mil por ano. A questão é: quantos desses suicídios poderiam ser considerados homicídios? Refiro-me ao fato de que, em muitos casos, existe sim um assassino. E o pior: somos cúmplices!

Estamos em meio a um caos e não percebemos. A humanidade está doente! E não estou falando do Covid-19. Estamos vivenciando um tempo de superficialidade, polarização de ideias e ilusão da perfeição. E a base de tudo isso são as redes sociais, que nos envolvem cada vez mais em nossas "bolhas de filtro" (veja o vídeo de Eli Pariser, o autor do termo).

Superficialidade

Estamos vivendo um mundo superficial. É tanta informação, que acabamos "passeando" por tudo sem aprender nada. Antigos conceitos são levemente retrabalhados e revendidos sob um novo rótulo, mais "moderno", como se fosse um novo conceito.

Em seu livro "A Geração Superficial: O Que a Internet está Fazendo com os nossos Cérebros", lançado em 2011, o escritor norte-americano Nicholas Carr já alertava sobre o perigo da internet em nossa configuração cerebral. Em seus estudos, Carr afirma que a mente é plasticamente vulnerável ao uso da tecnologia, o que pode gerar a remodelagem da estrutura física e o funcionamento do cérebro. Vejo claramente esse comportamento quando me envolvo em grandes projetos. Aprendi, com as práticas ITIL (Information Technology Infrastructure Library), a fracionar projetos em quick-wins (ganhos rápidos) para manter as equipes motivadas a cada etapa. Mas parece que nem isso é suficiente. A dinâmica da "mente coletiva" mostra-se no mesmo caminho superficial, deixando estruturas amplamente pensadas "na gaveta". Optam pela operação sem tática e, quando muito, tática sem estratégia (mas chamam ações táticas de estratégicas, para não perder o glamour do termo).

Não obstante, o filme "O Dilema das Redes", da Netflix, mostra um alerta fundamentado na Neurociência: os algoritmos das plataformas digitais trabalham para que fiquemos cada vez mais dependentes da tecnologia. E cada fração de segundo que ficamos presos à tela, conta, e muito! A verdade é que estamos cada vez mais alienados e superficiais. A tecnologia, em termos de poder de processamento, cresceu um trilhão de vezes nos últimos setenta anos. E o nosso cérebro? Continua estruturalmente o mesmo há milhares (ou milhões?) de anos. Difícil vencer essa luta, não acha?

Polarização de Ideias

Em 2018 perdi alguns amigos para a política. Com alguns outros, ganhei um certo distanciamento. Minha ideologia não é extremista. Mas eu confesso que estava me deixando levar pelo impulso mais - digamos - radical, em alguns momentos. Por outro lado, rapidamente consegui ativar minha sensatez. E assim, com base no meu limitado - mas suficiente - conhecimento sobre algoritmos das plataformas digitais, cheguei à conclusão de que não era a política que estava dividindo as pessoas de forma tão extremada, mas sim nós mesmos, em nosso mergulho por aquilo que o Google, o Facebook e outras plataformas, deduzem ser relevantes para aparecer em nossa tela. Dessa forma, de modo geral (de modo geral!) quem gostava do Lula, há alguns anos, o idolatra agora. E quem gostava do Bolsonaro, agora o coloca num pedestal. É claro que outros muitos tomaram rumos diferentes desses dois extremos. Mas quem disse que a política só tem dois extremos?

No mesmo ano de 2018, o Facebook admitiu ter tido influência no que jornalistas chamaram de "limpeza étnica" em Myanmar, na Birmânia. O genocídio de muçulmanos rohingyas teve participação do exército birmanês, cujos soldados também são acusados de cometer estupros e outras formas de violência.

Hoje, o mundo assiste a diversas manifestações inflamadas pelos discursos propagados pelas redes sociais por extremistas políticos e religiosos. Em outros âmbitos, conspiracionistas atraem cada vez mais adeptos em seus grupos (desculpe se você se encaixa em algum) antivacinas, adeptos da teoria terraplanista, negacionistas do Holocausto, crentes da Nova Ordem Mundial, e por aí vai.

Ou seja: se você tem uma tendência a acreditar que existem elefantes voadores, em pouco tempo as plataformas digitais vão ajudar você a transformar sua tendência em convicção. E, ao se deparar com outras pessoas que não acreditam nisso, você vai se indagar: "Que absurdo! Como podem não acreditar em elefantes voadores? Está mais do que provado que existem!"...

Ilusão da Perfeição

O mundo está sendo forjado pelo modelo "ideal", cada vez mais longe do "real". Nas décadas de 80 e 90, nós - publicitários e "marketeiros" - éramos duramente criticados (e, até certo ponto, com razão!) por propagar o ideal de beleza feminina perfeita da época. No entanto, o que vejo hoje é um ideal de perfeição bem mais profundo - muito pior!

Atualmente, o modelo ideal não se restringe à beleza. Além de belo, você tem que ter o corpo sarado, sorrir o dia todo, falar coisas positivas, ter inteligência acima da média, falar inglês e espanhol e ter milhares de seguidores no Facebook, Instagram, LinkedIn, etc. O mundo acaba girando em torno de futilidades. E, se por um lado estamos cada vez mais superficiais, por outro, nos aprofundamos nas tolices.


Bem... Se você chegou até aqui na leitura, parabéns! Conseguiu vencer a superficialidade, pelo menos. Mas já se pegou pensando o quanto aquele seu amigo ou familiar passou a ficar mais distante de você em sua visão de mundo? E quanto ao ideal da perfeição? Já se sentiu mal ao ver que você (como eu) não corresponde à sequer uma fração daquilo que o mundo considera "ideal"?

Pois é... Agora, pense: notou que as plataformas digitais estão na base de tudo? Aí, voltamos ao tema inicial: o índice de suicídios tem crescido. Não seria um homicídio (ainda que culposo) "por tabela"? Quem é o assassino? E nós, não somos cúmplices?

Não estou negando a profunda utilidade e importância do mundo digital. Tenho perfeita noção do quanto facilita nossas vidas. Mas, como diriam nossos sábios avós: "Remédio demais é veneno!".

Estamos sempre buscando o melhor. Uma luta desenfreada para alcançar uma condição utópica. E é justamente isso que nos afasta cada vez mais da perfeição, enquanto humanos. É a distopia da utopia! Concorda?

ALINE BRAVO

Psicóloga & Mentora de Carreira para Líderes, Executivos e Empreendedores / Empregabilidade, Transição e Crescimento com foco em Felicidade Profissional / TCC - Terapia Cognitivo Comportamental / Método EESP

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Edson, obrigada por fazer a diferença aqui na rede! Sucesso com felicidade sempre! Abraço forte, Aline Bravo

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