Do Dever do Estado X Sociedade
Imagem: Discurso Fúnebre de Péricles, por Philipp Foltz (1852)

Do Dever do Estado X Sociedade

O isolamento horizontal não irá acabar com a pandemia. Não é esse o seu propósito. Ele é um sacrifício (consciente ou não) que fazemos para dar aos profissionais de saúde e à comunidade científica o máximo de tempo possível para que seja produzida uma vacina ou remédio capaz de combater os efeitos do Covid-19. E mesmo assim não será tempo o suficiente, pois o sistema de saúde global simplesmente não está apto a lidar com uma pandemia (vide Itália, EUA, Espanha, França e, em menor grau, Reino Unido).

Ademais, o custo econômico para as inúmeras famílias que dependem de pequenas atividades comerciais para tirar seu sustento (domésticas, cabeleireiros, pedreiros, engraxates, feirantes, etc) é imenso, e o trade-off entre vidas na saúde e vidas na economia é pesado demais para qualquer um avaliar. Para conter esses efeitos e mitigar os seus impactos em ambas as frentes, cabe aos governantes realizarem a migração do isolamento horizontal para o vertical em duas etapas:

1)    Aumentar expressivamente a capacidade de testar as pessoas para a doença, fazendo isso em amostras aleatórias e representativas da demografia geográfica dos Estados e municípios. Isso nos permitirá estimar efetivamente áreas/regiões de risco e áreas/regiões livres/imunizadas.

2)    Realizar o isolamento vertical dos casos que forem confirmados positivos, liberando do lockdown as cidades e regiões que estiverem abaixo de determinada barreira de contaminação (i.e: taxa de reprodução da doença abaixo de 0,5)[1] ou consideradas livres/imunizadas. Desse modo, poderemos gradualmente retornar à vida normal e simultaneamente conter a propagação do coronavírus.

O estabelecido acima é dever do Estado. E nós? Qual nosso papel enquanto sociedade livre e democrática?

Para responder a essa questão, recorramos à história, mais especificamente à Guerra Peloponesa (431 – 404 A.C), travada entre as duas maiores potências do mundo ocidental à época, Atenas e Sparta.

Em 430 A.C, durante a Guerra Peloponesa, uma praga devastadora, similar à febre tifoide, originou-se na Etiópia e se expandiu pelo Líbano e Egito, alcançando a cidade de Atenas.

Em meio ao conflito, caos, e confusão causados pelo esforço de guerra; pelos refugiados e pela doença, a cidade de Atenas, berço dos valores democráticos que usamos até hoje, descendeu à condição de quase anarquia. Em meio ao desespero, Péricles, general em comando das forças atenienses, chamou uma assembleia para motivar seus compatriotas a se manterem no caminho traçado. Acredito que alguns trechos do discurso de Péricles sejam relevantes para o momento atual, e me faço valer do relato de Thucydides em sua lendária “História da Guerra Peloponesa”, para transcrevê-los aqui, em tradução livre:

“(...) Porque vocês experienciaram uma enorme reversão de sorte em um curtíssimo espaço de tempo, vocês se encontram muito desacreditados para manterem o curso que escolheram. O espírito das pessoas cai vítima de tudo aquilo que é repentino, inesperado, e completamente imprevisível, o que é precisamente o que ocorre agora a vocês em vários aspectos – não menor no tocante à praga.

No entanto, vocês moram em uma grande cidade e cresceram em valores igualmente grandes. Isso significa que vocês precisam estar dispostos a suportar a mais desafiadora das circunstâncias se isso significa preservar seu lugar no mundo (...) Agora vocês precisam por de lado todos os pensamentos de suas lamentações pessoais e pensar somente no que você pode fazer para salvar o todo (...) Em face a circunstâncias drásticas, aqueles cujos corações se afligem menos são os mais capazes de tomar ações que os empoderem a suportar (o momento). Eles são os tipos mais fortes de cidades e pessoas.”

Faça sua parte. Fique em casa!

[1] A taxa de reprodução é o número de pessoas que uma pessoa infectada pela doença tende a contaminar. No caso do Covid-19 sem isolamento social, ela fica entre 2 – 3. Taxas menores que 1 indicam contenção da doença. A escolha do 0,5 como barreira foi arbitrária, a ideia é apenas dar uma margem de segurança para que a taxa de reprodução não exploda após a liberação do lockdown


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