Dona Izartina e o Mascate que relatava as guerras
Dona Izartina colheu as "bage" que plantara, cuidadosamente, dia após dia, um tantico de cada vez. Cada cumbuquinha que enchia, selecionava e já deixava mentalmente marcadas as que colheria no dia seguinte, e assim, dia por dia, lavava e tirava os fiapinhos das vagens, cozinhando-as, e enchendo os virdos "veck" com vagens, cebolas, e especiarias (ela não chamava assim. Dizia apenas: temperinhos), e colocava numa velha partelêrinha de táuba que tinha sobre a mesa ruída, no cantinho da cozinha.
O casebre de Dona Izartina tinha até um luxo de ter mais que dois cômodos, pois além da cozinha, feita em um puxadinho mais rebaixado, cujo jirau acompanhava o telhado antigo, que caía na direção do poente, e tinha uma janela de madeira, sem vidro, entre o fogão de chapa (de tijolos e barro, com uma chapa de ferro rachada, muito bem areada), e uma caixa de lenha, que servia de banco, ao lado. Pela janela, Dona Izartina apinchava fora a erva da cuia, a borra do saco de café, e as cascas de verduras da bóia que apreparava.
Do lado de fora, havia uma pequena horta, cercada por ripas de taquaras, para evitar que os alimar invadissem, pois ali plantava as verdurinhas, suas couves, ervilhas, chá de funcho e mistruis, massanilha, catinga-de-mulata, pra fumentar as dôri nas canela, e temperinhos do dia a dia, além de outros legumes entreverados com ervas e flores, aqui e ali.
Os outros cômodos da choupana, eram o quartinho, adonde estava seu catre forrado com uns mijados, um corchão de páia, uma mesinha com gavetinha, adonde guardava seus pertences menores, dicomentos, e um lencinho branco enrolado, contendo umas cédulas de dinheiro, enroladinhas, bem guardadinhas. Sobre a mesinha, um candeeiro de corosena, e uma velha bíblia, que estava lá, mais por uma pruteçã, pois Dona Izartina não sabia ler. Sabia orar, isso sabia, e era devota do Senhor Jesus, com muita afeição. Sabia dos Mandamentos de não tratar mal os alimar, de dividir o pão e qualquer coisa que atendesse às necessidades dos necessitados, de não falar nome feio, nem praguejar, e de ser originalmente, omirde com todos. Esta era a sua fé, dizia, e o resto era só rilijão, e que sabia de rilijão era padre e pastor, pois estes sabiam ler e assinar o nome. Ela não!
E por úrtimo, no ranchinho de Dona Izartina, havia uma salinha, com três cadeiras bem velhinhas, caiadas à mão de azul e branco., e uma msinha baixinha, com umas frôzinha de prástico, e um quadrinho, de pé, com retrato de sua mãezinha que já dormiu no Senhor há muitos anos. Na parede, dois quadros de retratos em molduras, daqueles retratos em preto e branco, colorizados por artistas retratistas. Um dos quadros retratava a própria Dona Izartina, quando ainda era só a minina Izartina do Acácio, seu pai, o sujeito magricelo, semi calvo, de bigodinho demodê, aquele da moda quando Izartina era mocinha.
Os anos abraçaram Izartina, até que viu-se enredada pela solitude, em sua faina entre cuidados dos alimar e e sua lavourinha. Um gato zarôio, um cusco magro, e duas vaquinhas de leite, de onde Dona Izartina (agora "Dona") fazia seus queijinhos, e interava uns ganhos à minguada pensão de morte do falecido. Dona Izartina não enriqueceu, e nem empobreceu.
Apenas viveu, e como dizia: "Nóis véve, fiu!" Viveu como uma subida de escadaria, um degrau depois do outro. Apenas não sabia a que altura havia chegado, pois esse negócio de saber do mundo, era coisa dos estudados, os que viviam correndo de um lado a outro ansiosos pela finitude da vida, e a angústia pelo fim do mundo. Dona Izartina tinha como única gastura, os pulgões das couves, e os caramujinhos das arfaces, cujos, eliminava com água de fumo, e sal com sabão. Fora isso, Dona Izartina tinha na sua repetida faina, a graça de viver com saúde, o tanto de saúde que os velhos conseguem ter.
Lá longe, num lugar muito distante, haviam guerras: Os ruço se batendo de adaga com os vizinhos; os israelitas se atracando com os filisteo lá no outro lado do mundo; os americano se inticando com os espanhol da Venezuela, e assim ouvia, aqui e ali, das nuticia, quando visitava o bolicho da vila. Por lá andava, volta e meia, os caixeiros viajantes, alguns mascates, que passavam pelo rancho, vendendo linimentos, banha de jibóia, e umas loção de besuntar as cadêra. Eram estes que traziam mais nutiça, e era no rancho de Dona Izartina, que se assentavam num cepo, do lado de fora da porta, enquanto a macróbia fritava uns bolinhos, pra servir com café coado, e ao mesmo tempo em que fritava e aquentava a água da chaleira preta, ouvia os causos e as novidades, de olho arregalado, e com repetidas exaltações de espanto.
Dois quartos de hora, uns mirréis pagos pelo linimento e a banha de jibóia, dos caraminguás retirados do lencinho branco amarrado na gaveta, era o tempo que durava a prosa. Lá se ia o caixeiro, e lá estava Dona Izartina, na porta, sorrindo com seus três dentes amarelados, e um pito no canto da boca, dando adeus pro moço, seguido de um olhar pro cusco que mijava no canto da porta, já ralhando com o pulguento, enquanto examinava a pomada, pra fumentar as cadêra logo dispois. Dona Izartina nem lembrava mais das guerras, nem da ameaça do fim do mundo. Pensava só em beber um caneco de café, acompanhado dos bolinhos que sobraram.
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O fim do mundo podia esperar. Não era pra ela, que não tinha luxo de se importar com peleia dos outros.
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