Duas ideias disruptivas para democratizar o acesso ao Ensino Superior usando tecnologia
Maurício Garcia, 24/08/2019
O Brasil tem aproximadamente 8 milhões de alunos no Ensino Superior, deveria ter quase o dobro disso para ter uma taxa de escolarização parecida com Argentina, Uruguai e Chile, sem falar é claro de países como Coreia do Sul, Estados Unidos, Israel, Austrália e Japão (1).
O modelo atual de inclusão no Ensino Superior brasileiro, porém, está exaurido. A quantidade de matrículas parou de crescer nas taxas que vinham acontecendo e nesse ritmo não há como chegar nas metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação (PNE), conforme apontam vários estudos (2). É preciso sair da zona de conforto e buscar, na inovação e na tecnologia, saídas para ampliar o acesso ao Ensino Superior no Brasil.
Esse documento traz duas ideias que poderiam ser trabalhadas para ampliar o acesso e, de quebra, melhorar a qualidade, sem ônus aos cofres públicos.
Ideia 1: Criar a "portabilidade dos créditos" usando blockchain
É uma ideia parecida com o que foi feito na telefonia celular, que ajudou a melhorar a competitividade das empresas. A proposta consiste em utilizar a tecnologia do blockchain para certificar a migração de créditos de uma Instituição de Ensino Superior (IES) para outra. Para quem não conhece, blockchain é uma tecnologia que permite certificar transações de forma segura e praticamente inviolável. Ficou conhecida pelo seu uso em criptomoedas como o Bitcoin, mas pode ser usada em qualquer processo de necessite uma forma segura de certificar transações.
Para tanto, o Conselho Nacional de Educação (CNE) poderia vincular cadeias de blockchain às Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), documentos em que são estabelecidos, entre outros, os conteúdos que precisam ser ministrados nos principais cursos de graduação do Brasil. As instituições de ensino, por sua vez, vinculariam as disciplinas de seus cursos às mesmas cadeias, o que inclusive tornaria muito mais eficiente o controle do Ministério da Educação (MEC) quanto ao cumprimento das DCNs e também uma forma mais segura de combater fraudes em diplomas.
Os alunos, por sua vez, poderiam optar por obter seus créditos em uma ou várias instituições, tendo seu diploma emitido uma vez que todas as cadeias de blockchain vinculadas ao curso que escolheu tiverem sido cumpridas.
O modelo de negócio nas IES privadas poderia deixar de ser baseado em "mensalidades" e passaria a ser baseado em "créditos". Dessa forma, o aluno poderia escolher, por exemplo, investir mais em disciplinas que tem mais dificuldade ou maior interesse, investindo menos em disciplinas que tem mais domínio ou menor interesse, já que teria acesso a diferentes instituições e modalidades de ensino, seja online, seja presencial.
Pessoas que tivessem abandonado seu curso, poderiam retornar com mais facilidade, gerenciando elas mesmas seu tempo e seu orçamento, em função de uma oferta ampliada e da facilidade na validação dos créditos.
As IES, por fim, seriam estimuladas a aprimorar a qualidade de seus serviços, já que os alunos poderiam cursar disciplinas de várias instituições ao mesmo tempo, permitindo uma melhor comparação, fato que hoje é praticamente impossível.
Em termos regulatórios, não haveria nenhum impedimento, já que essa proposta seria apenas um mecanismo para facilitar a transferência e o aproveitamento de créditos entre instituições, o que já está previsto no marco legal existente.
Ideia 2: Criar o "ENAPP - Exame Nacional Pré-Profissionalizante"
Existe o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), aplicado pelo MEC ao final do Ensino Médio e existe também o ENADE (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes), aplicado ao final do Ensino Superior. Então, que tal criar o ENAPP (Exame Nacional Pré-Profissionalizante), aplicado entre o ENEM e o ENADE?
Esse exame seria aplicado versando sobre determinadas disciplinas básicas dos principais cursos de graduação, especialmente aquelas com mais conteúdos teóricos, tais como Teoria Geral da Administração, Fisiologia, Matemática Financeira, Cálculo, Bioquímica, Fundamentos de Economia, Histologia, Estatística, Ciência Política, Imunologia e Teoria da Comunicação.
A realização desse exame seria voluntária e qualquer pessoa que já tivesse concluído o Ensino Médio poderia se submeter, mesmo que não estivesse matriculada em uma IES. A aprovação no exame daria direito à pessoa, ao se matricular em uma IES, pleitear a validação dos créditos respectivos e dispensa de disciplinas, ingressando nos períodos mais avançados do curso, exatamente onde há mais vagas, por conta da evasão.
A preparação para o exame poderia ser feita de forma livre, sem a necessidade de controle do MEC, o que iria permitir o surgimento de uma infinidade de formatos de aulas e cursos, desde grupos de estudos organizados em comunidades e cursos mantidos por associações, igrejas e sindicatos, até canais livres no Youtube e grupos de Whatsapp.
As próprias IES poderiam ajustar seus projetos pedagógicos e oferecer a parte básica de seus cursos nesse formato. Milhões de pessoas que hoje estão fora do sistema educacional superior poderiam ter acesso e voltar a estudar. Até mesmo autodidatas encontrariam nesse formato um modelo ideal para seu estilo de aprendizagem.
Apesar de não ser necessária, a proposta anterior (créditos com blockchain) facilitaria muito a implantação dessa ideia. Em termos legais, por sua vez, não seria necessário nenhum tipo de ajuste, já que há farta previsão legal para suportar essa iniciativa (3).
O MEC não teria custo algum para implantar essa proposta, já que o exame poderia ser aplicado por empresas certificadoras credenciadas. Essas empresas iriam cobrar pelo exame e, dessa receita, pagariam uma taxa de fiscalização ao MEC, o qual teria apenas que elaborar e manter o banco de questões. Não seria difícil, porém, conseguir que organizações filantrópicas patrocinassem a elaboração desse banco, ou seja, o MEC não teria mesmo ônus algum.
Desafios para a implantação
Essas ideias são apenas rascunhos, necessitam de análises mais elaboradas. Convido, assim, meus amigos professores, coordenadores, empresários, juristas, legisladores, ocupantes de cargos públicos e quaisquer outros interessados, para debater essas propostas, visando seu aprimoramento e, quiçá, sua implementação.
________________________________________________
(1) Para quem quer uma ferramenta bem divertida para conferir isso, ver em https://bit.ly/2HkRiJ1. Dica de Simon Schwartzman (https://bit.ly/2zjDyKh).
(2) Matéria sobre isso pode ser encontrada nesse link: https://glo.bo/2MblPNA.
(3) Lei 9394/1996 (LDB), artigos 3, 41 e 61, Resolução CNE/CP nº 3/2002, Parecer CNE/CES nº 19/2008 e Parecer CNE/CES nº 19/2008.
Diretora do Ibmec Digital e Soluções Corporativas
5 aQuanto à Ideia 2, me parece um bom ponto de partida. Poderíamos, inclusive, montar blocos com disciplinas básicas dos bacharelados, de cursos técnicos e graduação tecnológica, com vários percursos e certificações diferentes. Inclusive boa parte disso poderia ser cursado em empresas, fábricas, hospitais, escolas e não só dentro das IES.
Diretora do Ibmec Digital e Soluções Corporativas
5 aMaurício, é um bom debate! Sobre a Ideia 1, há uma questão de ordem operacional/regulatória e outra de natureza pedagógica. A de ordem regulatória: supondo que o aluno cursasse disciplinas em 15 IES diferentes, quem iria emitir o diploma deste aluno? Sobre a questão pedagógica: a Ideia 1 é problemática porque reduz um curso a um conjunto de disciplinas. Um curso é (ou deveria ser) mais do que isso. Ele pressupõe um determinado perfil de egresso no seu conjunto (inclusive com as atividades e vivências que ocorrem fora da sala de aula, mas com determinada intencionalidade em termos de formação). É neste conjunto que reside a identidade do curso e da própria instituição de ensino. A meu ver, um dos motivos das universidades não conseguirem "entregar" uma formação que o mercado de trabalho julga adequada, está relacionada à hiperdisciplinarização que tomou conta de nossos currículos. A vida, o mundo, os desafios profissionais são interdisciplinares. Tua proposta aprofunda essa visão superdisciplinarizada, quando deveríamos pensar em modelos mais interdisciplinares.
Diretor | Pró-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa
5 aBoas ideias prof. Maurício. A ideia de um exame para consolidar conhecimentos propedêuticos é bastante interessante. Por sua vez o uso de blockchains para os créditos é bastante interessante. Se ela fosse acompanhada de uma transformação digital no âmbito do ensino poderia ser ampliada o número de vagas dos alunos. As Universidades Federais poderiam expandir seu ensino pelo país se seus cursos fossem digitalizados, possibilitando aos alunos estudarem em grandes universidades como UFRJ, UFMG, UFPA, USP, dentre outras.
Professor | Especialista em Educação Superior | Mantenedor | Conselheiro Nacional de Educação CNE/MEC
5 aExcelentes propostas, Maurício Garcia! Ambas tem o sentido de dar força ao estudante. Algumas mudanças em relação ao tratamento dos documentos acadêmicos, como o relacionamento de históricos e sua gestão e a primeira ideia já poderia ser colocada na prática, como já conversamos a respeito. O outro ponto, acredito que, casada com a proposta de maior protagonismo das Universidades, poderiam partir para a criação deste sistema de exame e composição de créditos.
Consultora, Profa | Consultoria e Assessoria em Educação Mediada por Tecnologias e Metodologias Inovadoras em Educação
5 aParabens pelas ideias inovadoras numa area tao tradicional em nosso país! As 2 ideias sao excelentes para possibilitar a elevacao da escolaridade superior no Brasil. Vejo que ha facilitadores para esses processos inovadores e tb ha alguns dificultadores, considerando o estagio em que se encontram o uso e aplicacao das tecnologias pelo Mec e pelas IES, assim como a cultura e a visao das pessoas nesses mesmos ambientes. Mapea-los seria relevante para a disseminacao das ideias junto aos decisores no MEC. Sugiro consolidar essa proposta super importante e apresentar ao Ministro da educacao e seus secretarios - de regulacao e de educacao superior. Acrescentaria a essas 2 ideias disruptivas uma terceira: o Mec passar a realizar a avaliacao externa das IES e seus cursos por meio de sistemas digitais exclusivamente. A reducao de custos e a efetividade de tal medida sao incomparaveis para todos. Vamos trabalhar nisso?