Duas vezes, parti(ste)
Um espetáculo e uma experiência inédita: além de rever uma montagem que eu já vi mas não me lembrava de quase nada, nem mesmo do enredo, ainda fui incumbida de escrever sobre ela. Conto nos dedos de uma só mão quando vi um espetáculo mais de uma vez, pois costumo levar a sério, para o teatro e para o cinema, a máxima “figurinha repetida não completa álbum”, a não ser quando é algo que foge demais à minha compreensão e eu necessite ver novamente, mas desta vez nem foi exatamente o caso. Com estreia em 2010, “Partiste”, texto de Paulo Henrique Alcântara – que também dirigiu a peça naquele ano –, marcou a formatura dos alunos do curso de Interpretação Teatral da Faculdade Social da Bahia (FSBA), um deles Leonardo Freitas, um querido amigo. Pouco mais de sete anos depois, me senti quase na estaca zero, já que minha memória não estava muito a fim de colaborar, para que eu pudesse traçar um comparativo decente sobre as duas versões. No entanto, bastaram alguns minutos após o terceiro sinal para que algumas parcas recordações me dessem a certeza de que a partida poderia ser de uma vez para sempre.
Vale dizer ainda que a minha posição de espectadora também tinha um peso maior, pois sempre condicionei a necessidade de tecer algumas palavras sobre um espetáculo ao quão profundo ele me tocou e às vezes, nem assim, preferindo apenas digerir como um animal ruminante. Na quarta fila do pequeno Sesi, eu estava munida de papel e caneta e cercada de presenças como a de Harildo Déda (estava exatamente atrás dele), Hebe Alves e, claro, do próprio autor, com a responsabilidade de escrever a minha primeira crítica ipsis litteris, que seria publicada em outro lugar que não fosse meu espaço na Zuckerland.
Em cena, integrantes do grupo La Barraca, criado na Uneb no mesmo ano da estreia de “Partiste” e dirigido por Ícaro Bittencourt, remontam os ares da baiana Livramento de Nossa Senhora nos anos 70, personificados em uma família simples, com aspirações e trajetórias tanto quanto. O núcleo do grupo é a mãe (Valdelice Costa) que, sem nome, pode ser qualquer uma em qualquer lugar do mundo, que tem o coração dividido entre os filhos: a professora e ávida leitora Ceci (Milena Dias), a sonhadora e inconsequente Dolores (Thaís Mendonça) e o jovem e imaturo Brás (Sabino Neto), além da irmã Rusinha (Amanda Barbosa), que de tão dependente por conta da doença é mais uma filha. Jairo, filho mais velho, que foi para São Paulo para não voltar, sem dar sinal de vida, é a grande preocupação de toda a família e o epicentro do espetáculo. O marido caminhoneiro está sempre de partida e sua lacuna, a princípio temporária, já é velha companheira. Novelas na casa da vizinha – Irmãos Coragem e Selva de Pedra –, costuras, comidas, cuidados e conselhos ocupam o cotidiano da mãe e tentam fazê-la se acostumar com as partidas dos seus.
As semelhanças terminavam aí. Os flashs da primeira montagem vinham meio turvos em minha mente, mas mesmo assim pude sentir a estranheza em relação à segunda. O texto poético e cheio de singelezas de PHA sobre a falta que a falta faz e a necessidade de seguir seu destino saía seco e, em grande parte, como se fosse lido. A dicção dos intérpretes dos filhos atrapalhou bastante o desenrolar das cenas, especialmente as mais dramáticas. O figurino, do acervo do próprio elenco, demonstra improviso e desconexão com a época retratada, lembrando aqueles trabalhos escolares apresentados em sala de aula. A postura corporal demasiadamente espontânea – talvez para ilustrar um clima de “estar em casa” – deixou um ar informal e prejudicou a interpretação e a emissão de voz.
Por outro lado, o espetáculo manteve o valor da memória e da saudade das coisas simples, especialmente para quem nasceu e viveu no interior. A simbologia da gaiola mostra o aprisionamento de Brás ao seu mundo que, até então, se resumia a Livramento, não querendo sair de lá e nem da proteção materna nem mesmo para saber do paradeiro de Jairo, mas a necessidade de fugir de si mesmo fez ele abrir a portinhola e, como pássaro, buscou novos ares. A bela trilha sonora, que reuniu Oração para São Francisco de Assis, “Naquela mesa” (Sérgio Bittencourt), “O mundo é um moinho” (Cartola) e “Travessia” (Milton Nascimento/ Fernando Brant), soube pontuar momentos decisivos da narrativa. O diário da família escrito por Ceci para o irmão desaparecido é feito por projeção em um telão, um ar de modernidade possível dentro de uma história retratada há mais de 40 anos. De todos os personagens, a mais fiel foi, como não poderia deixar de ser, a mãe que, em alguma medida, trouxe a atmosfera de uma mulher tão acostumada à vida interiorana, cheia de dúvidas e certezas sobre os filhos e o coração que bate sempre apertado, diante da iminência de ver alguém deixar o ninho. Eles são os seus tentáculos no mundo e é por meio deles que ela o descobre.
Rever “Partiste” serviu para lembrar a importância de valorizar as presenças e ausências, além da necessidade de construir seu caminho para dizer a si e ao mundo quem se é. Em contrapartida, ratificou que certas experiências podem ser únicas e, nem sempre, é preciso repeti-las. Voltar casas no jogo da vida nos fazer entender momentos embaralhados ou ganhar impulso para avançar mais, mas tanto na montagem teatral como cá fora, algumas partidas são eternas. E que assim sejam.
Texto publicado na página do 2º Festac Bahia no Facebook.
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6 aERRATA: Revista BARRIL, não Fraude.