E depois? O Rei Leão, The Mandalorian e Narrativa Transmídia

E depois? O Rei Leão, The Mandalorian e Narrativa Transmídia

Meu filme de infância favorito foi O Rei Leão. Tive o prazer de assistir à animação shakespeariana da Disney centenas (talvez milhares) de vezes, muito porque eu não tinha resposta para uma pergunta recorrente:

“E depois?” 

Não saber os rumos de Simba após virar Rei era tão angustiante que eu precisava ficar revendo a mesma história para continuar naquele maravilhoso universo diegético com meus personagens prediletos. 

Um tempo depois descobri a existência de O Rei Leão 2: O Reino de Simba e aquela sensação ficou mais contida. Permaneci querendo saber o que aconteceu depois dos acontecimentos da sequência, mas a curiosidade já era menor, e acredito que por dois fatores.

Primeiro que a continuação não é tão boa e verossímil, especialmente por apresentar personagens que já eram para ter aparecido no primeiro filme. Acho pouco provável, por exemplo, que Zira não desse as caras durante o reinado de Scar, mas isso é conversa para outro texto.

A questão é: quando algo não é tão bom, você acaba perdendo um pouco do interesse. Consequentemente, assisti ao Reino de Simba muitas vezes também, só que bem menos do que o filme “original”.

O segundo ponto é que eu já estava mais velho.

Além de serem mais curiosas e desconfiadas, crianças mais novas não compreendem totalmente o conceito do fim, especialmente porque elas tratam seus personagens favoritos como verdadeiros amigos, então suas histórias precisam continuar, seja em outro filme ou através de brincadeiras nas quais podem criar novos acontecimentos por meio de brinquedos. 

E aí voltamos à pergunta: 

“E depois?” 

Que basicamente é:

"O que aconteceu depois?"

Esse questionamento é ótimo para explicar um dos meus tipos de narrativa favoritos, a Transmídia. 

Em um curso que fiz ministrado pelo Henry Jenkins, autor do livro Cultura da Convergência, ele definiu Transmídia como um processo no qual elementos integrados de uma ficção se dispersam sistematicamente por múltiplos canais para criar uma experiência de entretenimento unificada e coordenada. 

Ou seja, cada pedaço da história apresenta uma compreensão independente, mas ao consumirmos todos os elementos, teremos uma informação total. 

Dessa forma, podemos descobrir o que aconteceu depois de um determinado filme. E até mesmo o que aconteceu antes. Em muitos casos, até o que ocorreu durante. Os três filmes de O Rei Leão são ótimos exemplos (vou fingir que o bizarro live-action não existiu). 

  • O primeiro, de 1994, foi lançado originalmente nos cinemas. 
  • O segundo, de 1998, saiu diretamente em VHS e abordava acontecimentos posteriores aos do primeiro longa-metragem.
  • O terceiro, de 2004, foi criado para DVD e é simultâneo à trama original, apresentando uma nova perspectiva dos fatos. 

Três mídias diferentes, três narrativas diferentes e um mesmo universo. Antes, durante e depois de um mundo que também conta com séries televisivas, games, livros, etc. No caso de O Rei Leão, o depois foi um pouco decepcionante, na minha opinião. O oposto do que acontece, por exemplo, com The Mandalorian, série de Star Wars do Disney+. 

Enquanto a última trilogia decepcionou a grande maioria dos fãs da saga, a história do Mandaloriano foi muito mais bem recebida e aclamada. Além de marcar uma nova era transmidiática para a Disney, que agora tem seu próprio serviço de streaming, o seriado comprovou que o depois pode ser melhor. Na verdade, que o antes pode ser melhor.

A série foi lançada antes do desastroso Star Wars: A ascensão Skywalker, e os acontecimentos da narrativa também se passam antes, mais precisamente após a queda do império, que ocorreu em Star Wars: o Retorno de Jedi, filme de 1983. 

E você pode ter uma ótima experiência com The Mandalorian mesmo sem ter assistido aos filmes de Guerra nas Estrelas, pois a história é independente e cativante. 

O carismático Baby Yoda, oficialmente chamado de The Child, também contribuiu muito para que essa estratégia transmídia fosse bem sucedida. Durante a divulgação da primeira temporada, de 2019, a Disney não soltou uma imagem sequer do personagem, que logo após o lançamento do primeiro episódio se popularizou na internet através de memes e figurinhas.

Até quem não sabe nada sobre Star Wars se encantou com a fofura da versão miniatura de Yoda. E o trailer da segunda temporada, que está prevista para outubro, mostrou que a Disney vai explorar ainda mais o elemento aventureiro da season 01, a figura do Baby Yoda e os conceitos do universo. 

Com isso tudo, podemos dizer que a saga Star Wars é um sucesso de narrativa transmídia exatamente por tentar sempre responder à pergunta:

“E depois?” 

Em alguns casos, esse depois é extremamente decepcionante, como foi com a trilogia lançada entre 2015 e 2019. Em outros, no entanto, o depois (que também pode ser antes, dependendo do referencial) pode ser extraordinário.

A última trilogia, especialmente o último filme, ignorou conceitos básicos da mitologia de George Lucas e exigiu uma dependência de acontecimentos passados da história que deixaram a experiência desgastante e revoltante. Já The Mandalorian consegue ser agradável para os fãs, que matam a saudade do clima e do universo, e também para os mais alheios aos filmes dos anos 1970 e 1980. 

Tudo isso graças a bons roteiros e a estratégias de marketing eficientes. Além da qualidade audiovisual, The Mandalorian se tornou a grande vitrine para o Disney+. Podemos curtir uma série live-action de Star Wars com um clima muito parecido com o dos filmes que aprendemos a amar anos atrás.

O seriado comprova, pelo menos até o momento, que é possível termos histórias de antes, durante e depois muito coerentes e bem sucedidas, ao mesmo tempo. Para alcançar isso, sejam em Star Wars, O Rei Leão ou outros produtos, o importante é saber respeitar regras. Tanto as dos universos ficcionais quanto as das narrativas transmídias. 

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Sobre o autor

Apesar de escrever muito sobre cinema e também chamar Daniel Furlan, não faço parte do Choque de Cultura. Mas você pode conferir meus conteúdos sobre Cultura Pop no Instagram (@_danielfurlan) e no Podcast do Dani.

Além disso, sou jornalista e trabalho como Content Manager em lugar muito legal chamado MOVA Filmes. Também gosto de viajar e de escrever histórias de ficção. Não por acaso, lanço no próximo mês o livro De Primeira Viagem: Personagens da Europa, que já está em pré-venda na Amazon (ebook) e na Travessa (físico).

Recentemente ainda redigi um ebook com dicas de storytelling baseadas nos filmes da Pixar. Tem interesse em ler? Então faça o download gratuito neste link.

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