E as outras Izabellas do Brasil? Até quando vamos continuar dando razão ao poeta e cantor Zé Ramalho...?
E as outras Izabellas do Brasil? Até quando vamos continuar dando razão ao poeta e cantor Zé Ramalho...?
Sinto-me forçado a manifestar meu descontentamento com a situação que o País se viu mergulhado diante de tanta publicidade com o caso Izabella. Poucas vezes a mídia deu tanto destaque a um caso de homicídio como este agora, perpetrado contra a menina Isabella Nardoni, apesar de crimes semelhantes não serem tão raros assim. Parece inclusive, que a imprensa substitui nos dias atuais as execuções em praça pública que ocorriam em passado remoto, ao fazer de um crime, de uma tragédia, um grande espetáculo, transformando-o numa espécie de novela para consumidores sempre ávidos por violência, que é e sempre foi um grande produto midiático. Eita mundo cão.
Pretendo ser, como diz o bom mineiro, curto e grosso. Desde já minhas escusas pelos erros, simplesmente porque não vou corrigi-los, não por falta de tempo, mas sim porque não quero abster-me de dizer o que quero e, corrigi-los, com certeza poderia truncar o meu pensamento.
Até quando vamos continuar dando razão ao cantor e compositor Zé Ramalho quando nos rotulou de ‘gado’? Até quando vamos continuar sendo uma sociedade hipócrita? Não me excluo dela. Estou inserido neste contexto.
Pois bem. Sempre tive minhas ressalvas quanto às autoridades. Ressalvas pela sua forma de agir e de comportar-se. O Juiz por sentir-se todo poderoso, intangível, inacessível. O Promotor por ser o dono da verdade. A polícia, pelo despreparo para lidar com o cidadão. Contudo, não poderia imaginar a surpresa que o destino me reservava.
Iniciei a minha formação acadêmica através das ciências exatas bacharelando em matemática, física e desenho. Lecionei por vários anos, bem como por outros tantos dirigi uma escola pública. Só por esse fato tenho certeza que me livrei do purgatório, queimei uma etapa, logo ganhei o céu. Contudo, pela decepção que a educação proporciona, em especial pela falta de perspectiva, e só proporciona decepção para os seus abnegados idealistas, dizem, inclusive que é um sacerdócio, comecei a fazer Direito, apesar de nunca ter me visto ligado a tal área, uma vez que toda minha formação estava relacionada à ciência exata, isto depois de engraxar sapatos, vender sorvetes e laranjas pelas ruas da paróquia. Só sei que passei a gostar da matéria e, como não poderia deixar de ser, logo fui tomado pelo sentimento de justiça, de liberdade, de igualdade, enfim, por tantos outros que, a bem da verdade, são utópicos.
Tomado por esse espírito de justiça, acabei fazendo concurso para Magistratura que, por sorte, ou, quem sabe, por falta dela, logrei ingressar. Estou na Magistratura há dez anos, tempo mais do que suficiente para perceber que tudo continua como dantes. A verdade que aflora é que o governo crê que tudo está bem e, o que é pior, procura incutir essa idéia na população, esta, por sua vez, se contenta com o pão e o circo.
Nada mudou desde a época do Império Romano, a não ser a forma de ludibriar o povo. Com o crescimento urbano, naquela época áurea romana, vieram também os problemas sociais para Roma. A escravidão gerou muito desemprego na zona rural, pois muitos camponeses perderam seus empregos. Esta massa de desempregados migrou para as cidades romanas em busca de empregos e melhores condições de vida. Receoso de que pudesse acontecer alguma revolta de desempregados, o imperador criou a política do pão e circo. Esta consistia em oferecer aos romanos a alimentação e diversão. Quase todos os dias ocorriam lutas de gladiadores nos estádios (o mais famoso foi o Coliseu de Roma), onde eram distribuídos alimentos. Desta forma, a população carente acabava esquecendo os problemas da vida, diminuindo as chances de revolta. Hoje, é verdade, em vez do pão, temos o prato de sopa e, no lugar do circo, temos o BBB. Confesso que jamais assisti essa porcaria. Prefiro perder o meu tempo com as minhas leituras.
O que pretendo mostrar com essa indignação? A ausência do Estado e o império da mídia. Que o Estado descumpre, como sempre, com a garantia do cidadão. Quem neste país Tupiniquim, em algum momento de sua vida, pôde sentir-se seguro, em especial nos grandes centros? Hoje, da mesma forma, nas comunas do interior? A população já não sabe se tem medo dos bandidos ou da polícia. Por obra da imprensa e de alguns maus juízes, já não confiam no Judiciário.
É interessante notar a incompreensão do cidadão, quando a mídia divulga algumas mega-operações da polícia federal, o estardalhaço/reprovação com o qual se noticia o fato de os acusados serem postos em liberdade, apesar de eventualmente provados os fatos. E ora se afirma que o Judiciário está em descompasso com a realidade, ora que a polícia prende e os juizes soltam, ora que é preciso fazer alguma coisa contra a impunidade, freqüentemente apontada como a causa principal da criminalidade.
Mas raramente se informa que a Constituição Federal (art. 5º, LVII) assegura a todos, inocentes e não-inocentes, criminosos e não-criminosos, o direito de não serem considerados (juridicamente) culpados até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, e que é preciso respeitar as regras do jogo democrático e combater as várias formas possíveis de trapaça.
A lei é, pois, claríssima: enquanto o réu, ainda que eventualmente confesso, responder a inquérito/ação penal ou puder recorrer da sentença condenatória, é, do ponto de vista estritamente jurídico, não-culpado, até porque é sempre possível reconhecer em seu favor excludentes de ilicitude, de culpabilidade ou causa extintiva da punibilidade etc., por mais improvável. É preciso distinguir assim o culpado de fato (réu confesso) do culpado de direito, isto é, ainda não condenado definitivamente.
Portanto, tanto a polícia que prende o réu, quanto o juiz que o solta antes da condenação final agem em tese conforme a lei, mesmo porque o juiz não é um agente da segurança pública, repito, o juiz não é polícia, mas um garantidor dos direitos fundamentais. Contra esse estado de coisas, é comum dizer-se que, caso não se prenda e se mantenha o réu preso desde logo, dificilmente alguém será preso, dada a quantidade de recursos manejáveis, pretendendo-se assim legitimar constrangimentos ilegais por motivos pragmáticos.
A população, diante de tanta insegurança e, sobretudo desesperança, insiste em dizer que ‘bandido bom é bandido morto’. Horrível! Bandido bom, direi, é bandido preso, se pensar que a função social da prisão é retirar o indivíduo da sociedade, pois esse não está apto para o convívio com aquela. Contudo, o que vemos são presídios, cadeias, verdadeiras masmorras, e penitenciárias que são na realidade faculdades do crime, onde a reabilitação simplesmente não existe. E daí? A culpa agora é de quem?
A mesma sociedade que quer o bandido morto é aquela que quer o policial corrupto ou assassino morto, pois este também é bandido. O que fazer então? Matar! Sim, matar vicia, sim. Tive diversos contatos com criminosos que queriam matar, mais e mais. Matar para eles é um vício, para acerto de contas, vingança ou simplesmente diversão. Tal fato não é uma máxima, mas é válido dizer que assim acontece na maioria das vezes. O crime vicia ante a certeza da impunidade.
Ver um policial morto, chefe de família, no estrito cumprimento do dever legal é uma sensação horrível. O desejo de vingança, em casos que tais, por seus colegas, se comparam ao dos próprios criminosos. Mas o que difere os policiais dos bandidos – eis que ambos matam, é a capacidade de discernir que a melhor justiça é a dos Homens e não a do Homem. Logo, o empenho está em se fazer justiça, mas muitas vezes o que vemos são estes bandidos soltos, por falta de provas e falhas na legalidade. O motivo? Falta de estrutura. Como sempre. Falta de vontade política em solucionar os problemas.
Por quantas vezes nos deparamos com peritos colhendo digitais em locais de crime com fita crepe, colhendo sangue com cotonete e sem luvas para calçar, locais não isolados, inidôneos, exames de balística feitos em caixas de areia. Tudo isso é despreparo e descaso do governo, mas não é conosco – autoridades, e sim com a própria sociedade.
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Sim, a sociedade precisa de uma polícia, ou ao menos parte dela, fraca e sitiada pela bandidagem. Afinal, a forma democrática através da representatividade nos faz assim, o que torna legítima a polícia despreparada, mal treinada e destinada a buscar outras formas de renda. A própria sociedade precisa de uma polícia corrupta, a fim de satisfazer suas mazelas, pagar uma propina para o guarda não multar, outra para liberar um preso na temporária, não indiciar um culpado. Corromper um juiz para obtenção de liminar, e por aí vai. Se não houver uma polícia corrupta, a sociedade terá que aprender a seguir as leis, e tudo o que a própria sociedade não quer é seguir leis. Querem sempre um ‘jeitinho’ de se livrar de uma coisa ou de outra, a fim de se beneficiar e que se dane o resto. Não sou a favor da corrupção, Deus me livre, apenas estou sendo sensato ao expor o que ocorre no dia-a-dia. Tô errado?
Não há solução para a segurança pública se não houver educação. A decepção que me referi, diz respeito aos abnegados profissionais da educação. São profissionais, isso sim, pessimamente remunerados, mas convenhamos, não fazem nada para melhorar a situação. Vou além, ao dizer que se a população não é educada para seguir as regras, jamais teremos uma sociedade justa. Mas não interessa a exatamente ninguém a educação. É investimento de longo prazo, que não aparece na mídia, não traz voto nas pesquisas eleitorais e também ameaçará a supremacia das classes dominantes, que vêm desde a época do Brasil Império e do poder até hoje não saíram.
Uma sociedade inteligente, educada e preparada é tudo o que os nossos governantes não querem, pois deixariam de existir os burros, os idiotas e os desesperados para votarem mais uma vez nos nossos representantes eternos. E não adianta dizer que o sufrágio universal é democrático, se o que vemos até o presente momento, é que de todos os candidatos que aparecem, não faz a menor diferença em quem vamos votar, afinal são todos farinha de um mesmo saco. Só mudam os nomes e as caras; a mentalidade e a cortina da governabilidade não. Precisamos romper com o modelo, o povo precisa ser aplaudido; e não ficar aplaudindo. Quem me dera poder estabelecer um modelo perfeito e democrático para nosso país, apenas demonstro meu descontentamento, não tenho a solução, apenas o problema.
A sociedade que clama por justiça é a mesma que condena algumas atitudes, nem sempre sábias, em sua defesa. Eles – a sociedade- querem a polícia no morro para ajudar no combate à dengue, mas não querem a polícia no morro para acabar com o tráfico, simplesmente pelo fato de que o tráfico é aquilo que sustenta a favela, o comércio, os jogos e até mesmo a saúde e educação.
O tráfico formou um estado paralelo dentro das favelas. Quando as atitudes do falso estado não são suficientes, há de se recorrer ao Estado de direito. Mas sem a intervenção no estado paralelo. Eles não estão errados, pois o Estado finge que eles não existem. Os ‘favelados’, hoje chamados de excluídos, por diversas vezes são esquecidos e deixados sob a tutela da marginalidade, logo, o estado paralelo se legitima pela ausência do Estado de direito.
O que fazer? Ora, pois. Para os excluídos, os marginalizados, descamisados, podem atear fogo na Constituição Federal. Diante da fome, da doença, da falta de educação, da insegurança, da ausência de perspectiva, Ela, a Constituição Federal, não serve para nada. Não passa de trapo como dito pelo imortal Rui Barbosa. O chamado Estado Social e Democrático de Direito é totalmente utópico. É muito bonito para ensinar às crianças, mas pergunte aos mestres se eles acreditam no que repassam? Já começa pela forma de governo que é a república presidencialista, numa constituição que é totalmente preparada para o parlamentarismo. Saúde, educação, segurança pública? Nem pensar, vamos deixar para as ONG's.
O que dizer da mídia? Totalmente controlada pelo Estado. Duvidam? A imprensa é totalmente controlada pelo governo, que só deixa expor os casos de maior destaque, passando batido os menos importantes. A fome, a falta de segurança, em todos os cantos da República de Bananas, dizimam centenas de milhares por mês. Mas ninguém sabe, pois não é divulgado. Não interessa ao Governo.
É aqui que queria chegar. O caso de Izabella Nardoni chega a ser mesquinho. Os fatos ali narrados que são alvo da mídia sensacionalista acontecem a todo o momento. Quantos inquéritos já manejei de situações muito piores; quantas vezes peguei inquéritos de mães que mataram filhos, de filhos que mataram os pais; de crianças que morreram de inanição; de mendigos cruelmente assassinados, e nenhum deles sequer teve o conhecimento da sociedade. Izabella é vítima de dois crimes, primeiro por ter sido assassinada de maneira cruel, segundo por ser alvo da mídia para desviar a atenção de outros casos mais importantes ou não sem menos importância. Não querem que nos preocupemos com a alta dos juros, a corrupção de prefeitos e juízes, as eleições no Paraguai, os cartões corporativos. Simplesmente Izabella é um subterfúgio para os outros problemas. Não estou condenando o fato do caso Izabella estar na mídia, apenas acho que há milhares de outros casos de crimes cometidos da mesma maneira, ou até piores, que merecem também a devida importância. Bem, mas não tem a mesma importância porque 99,99% são crimes relacionados à família de excluídos, o que não é o caso da família de Izabella, classe média alta. Lembram do caso da Suzane Richtoffem? Tamanha barbaridade que ganhou a mídia, não pela forma com que se deu o crime, mas sim, por ser integrante da classe média paulista. Quantas Izabella’s esfarrapadas, desdentadas, esfomeadas, foram assassinadas e até hoje os seus assassinos não foram localizados pela polícia? E sabem por quê? Dizem que faltam estrutura e condições materiais para uma investigação inteligente, séria e efetiva que, no caso da bela garota Izabella, não faltou.
Até quando ficaremos com os olhares voltados para um só caso, quando milhares de outros estão acontecendo da mesma maneira? Simplesmente a solução de um implica justiça? Implica um bom trabalho da polícia? Sinceramente nunca vi uma perícia ser feita tantas vezes igual no presente caso. Gostaria que a mídia estivesse presente em todos os crimes, pois normalmente provas, vestígios e indícios são deixados para trás, pois tudo é feito nas coxas. Justificativas: faltam estruturas e condições materiais para a polícia trabalhar. No entanto, para o caso da Izabella não faltaram condições materiais e nem estrutura. A mídia está presente o tempo todo tal quais os abutres diante da carcaça. A polícia está a reboque da imprensa.
Confesso que imaginava inconcebível pensar que a perícia acharia fibras da tela de proteção da janela nas roupas do pai da criança. Nunca vi uma perícia realizar um trabalho assim por aqui, quando se sabe que a maioria das perícias são falhas e inconclusivas. A não ser, é claro em obras de ficção. Parece-me que, salvo engano, na telinha tem um seriado policial onde os crimes são desvendados através de uma perícia científica. Com certeza ali buscaram inspiração. E pelo visto, só continuarei a ver se a mídia estiver presente e tratar-se de pessoas de classe média, por que se não for, não interessa à mídia.
A cronologia dos fatos também é outro fator que me impressionou, soltou primeiro a mão tal, depois a outra, asfixiou com um pano, sangue no quarto, pegadas no lençol. Meu Deus. Quantos inquéritos nesses dez anos de magistratura estive manipulando e nunca me deparei com isso. Será que para a polícia fazer um trabalho digno, verdadeiro e com empenho, é realmente necessário que a mídia esteja presente nos locais? Um depoimento que dura oito horas? Nunca tomei conhecimento de um fato assim. Não tivesse tomado a proporção que tomou por conta da mídia, o depoimento do acusado seria tomado em alguns minutos, a toque de caixa e o inquérito policial levaria anos para concluir. Basta uma pesquisa em qualquer delegacia e verá inquéritos mofando e os crimes prescrevendo.
A reconstituição do crime não passa de mais um espetáculo público e degradante, pior, de mau gosto, com centenas de pessoas presentes, além, é claro dos milhares pelas telinhas. Gritos daqui. Gritos dali: ‘assassinos’. O indiciamento é inevitável, assim como o oferecimento de denúncia. Quanto à condenação, se o casal for levado a julgamento em curto espaço de tempo, a condenação será certa, com o clamor público interferindo na eficiência da defesa.
A mídia deve divulgar fatos que são notícias, apenas. É o seu papel, não podendo, contudo, aproveitando-se da morte de uma criança, pretender investigar, indiciar, instruir, julgar e executar a pena, criando uma comoção nacional. Que mundo cão, pois estão apenas preocupados com o ibope. Toda morte de criança choca e choca mais ainda quando é violenta. E porque tanta indiferença com as centenas de Izabellas de todos os cantos do País? Será que as pessoas que estão a apedrejar a família de Izabella e vaiá-la nunca tiveram conhecimentos de outras crianças brutalmente assassinadas? Porque tanta insensibilidade com milhares de outras Izabellas do Brasil? Ah, lembram-se do caso Escola de Base? Essa mesma imprensa marrom luta até hoje nos Tribunais para se verem livres de indenizar o casal de japonês, dono da escola. ‘Uai sô’, porque, uma vez declarados inocentes, de forma espontânea, não os indenizam prodigamente como, prodigamente os condenaram antecipadamente? É preciso punir quem efetivamente seja o responsável pela morte de Izabella ou das Izabellas do Brasil, assegurando-se, a cada acusado, as garantias constitucionais, como presunção de inocência, do devido processo legal e da ampla defesa, sem o perigo do pré-julgamento ou julgamento por comoção.
Que vergonha nacional. Apresentadores de TV (programas policiais) o tempo todo dizendo asneiras, comentado aspectos processuais sem para isso estar credenciados - inclusive, chorando, enfim, procurando comover o rebanho do Zé Ramalho. Por favor, desliguem a TV quando estiverem comentando o caso Izabella, só querem ibope. Mais respeito à ignorância do povo.
Até quando vamos continuar sendo hipócritas? Até quando vamos continuar dando razão ao poeta, cantor e compositor nordestino Zé Ramalho? Até quando assassinos de tantas outras Izabellas excluídas vão continuar impunes por falta de uma investigação científica séria? Até quando o povo vai continuar se satisfazendo com o prato de sopa e o BBB? Até quando vou continuar absolvendo criminosos culpados por obra de uma deficiente investigação? Até quando vou continuar condenando inocentes por deficiência de uma defesa gratuita? Até quando a mídia vai continuar determinando os nossos atos e atitudes? Até quando...? Até quando...?
Monte Sião, 27/04/08.
Milton Biagioni Furquim
Juiz de Direito