A educação nacional no “modo” desfiladeiro
A nossa educação vive de ilusionismos políticos. Adota medidas na direção certa, mas opera o cumprimento a partir de conformidades incertas. Basta lembrar a adoção de políticas de ajuste como a ampliação durativa do Ensino Fundamental, passando de 8 para 9 anos, a implantação do Exame Nacional do Ensino Médio/Enem e, para não ir muito além, duas iniciativas que, levadas a sério, poderiam ser revolucionárias: a implementação da Base Nacional Comum Curricular/BNCC e a extensão da rede de oferta de ensino no regime de funcionamento EaD. Sem esquecer a implantação dos Fundos de Financiamento da Educação, com evolução no formato atual do FUNDEB, que, acompanhados de medidas complementares e associadas em nível sistêmico, resultariam na elevação de padrões de qualidade do ensino. Infelizmente, tal não ocorre e a educação nacional segue em contextos de desfiladeiro.
O painel de nossas desconformidades educacionais posiciona, pelo menos, 13 questões comprometedoras, a saber:
1. Falta de gestor visível em todos os níveis de ordenação/coordenação, detentores de qualificação vinculada para uma adequada atuação. Via-de-regra, prevalecem, por toda parte, “cuidadores do orçamento”, operando com lentes partidárias de curto alcance. O manejo do ensino regular é feito em contextos de penumbra, refletindo um acompanhamento rasteiro, frouxo e fluido de funcionamento.
2. Cumprimento desfibrado da legislação, com o funcionamento sistêmico do ensino no acostamento das leis da educação. É “cada um por si e os demais contra!”. E as instâncias de acompanhamento e controle? Bem, estas estão “voando”, distantes dos contextos onde as desigualdades se manifestam socialmente, as diferenças se enraízam e as necessidades se instalam. Quer mais? E as escolas públicas de Educação Básica – sobretudo elas! – descontextualizadas e uniformes, se perenizam. Vivem hibernando, porque ESTACIONADAS no aluno de perfil único, funcionam sob o influxo da pedagogia do CLONE..., como se a realidade fosse única e as identidades dos alunos fossem homogêneas. Um exemplo VIVO de “Falso Brilhante”! Esta visão linear da classe política do que é FAZER EDUCAÇÃO reflete quatro deformações da história da educação brasileira:
I. Os gestores da educação, despreparados para as atribuições no exercício da função, tem uma imagem engessada da sala de aula;
II. Na escola dos contextos sociais mais desiguais do país, o ensino vive engessado em roteiros iconológicos, tendo como pano de fundo a sala de aula dos professores e a sala de aula dos alunos;
III. As dobras de precariedade de funcionamento das escolas de periferia, das creches, das pequenas escolas e das escolas de ensino noturno revelava, nas palavras de Darcy Ribeiro, que a crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto;
IV. As nossas escolas precisam trocar as lentes de contato e reaprender a olhar, sob o ponto de vista do desenvolvimento humano, o que constitui, de fato, direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento dos alunos. Precisam enxergar o que é o individual e o que é o coletivo, contextos alcançados com nova lente BIFOCAL, capaz de perceber que somente há ensino com qualidade social quando, no visor da sala de aula, posicionam-se o individual e o coletivo e, mais do que isto, que, antes de todos, há cada um, porém, mais importante que cada um, são TODOS.
3. Atendimento camuflado das 20 Metas e das correspondentes 256 Estratégias do Plano Nacional de Educação/PNE, conduta em frontal agressão ao artigo 214 da Constituição Federal.
4. Desarticulação aguda ENTRE sistemas de ensino, ENTRE níveis e modalidades de ensino e ENTRE planejamento do ensino e resultados adequados nas avaliações locais, regionais, nacionais e internacionais.
5. Divórcio Educação Básica e Educação Superior, ferindo os art. 51 e 68, § 8º da LDB.
6. Currículos extensos e “grávidos” de conteúdos desfocados.
7. Padrão de qualidade no modo VALE TUDO, decorrente grandemente do equívoco de confundir processos educacionais com produtos e, ainda, de confundir integrar políticas com entregar programas centralizados.
8. Confusão “direcionada” entre planejamento do ensino alinhamento de planos de aula e montagem de horário e do calendário de provas.
9. Descuido das IES, públicas e privadas, com os Cursos de Licenciatura e desatenção dos sistemas de ensino com as políticas de FORMAÇÃO CONTINUADA dos seus professores, apesar de estar escrito – não, nas estrelas! – mas ... na LDB:
§ 1º A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios, em regime de colaboração, deverão promover a formação inicial, a continuada e a capacitação dos profissionais de magistério (Incluído pela Lei nº 12.056, de 2009).
(...)
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§ 4º A União, o Distrito Federal, os Estados e os Municípios adotarão mecanismos facilitadores de acesso e permanência em cursos de formação de docentes em nível superior para atuar na educação básica pública (Incluído pela Lei nº 12.796, de 2013).
Art. 67. Os sistemas de ensino promoverão a valorização dos profissionais da educação, assegurando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério público:
(...)
II – Aperfeiçoamento profissional continuado, inclusive com licenciamento periódico remunerado.
Ou seja, a lei existe, mas não há fiscalização nem acompanhamento nem metas para sua aplicação. Evita-se política de formação continuada, sabe por que? Para não se ALENTAR alinhamentos de PROGRESSÃO FUNCIONAL!
10. Baixos salários, com valores não convidativos no mercado de trabalho e que jogam o professor no acostamento do mercado profissional competitivo. O salário docente hoje não é um salário profissional, mas apenas uma remuneração ocupacional.
Esta esteira de anticondições para a construção de uma experiência sólida no campo das atividades docentes responde à questão: por que faltam professores para as disciplinas do núcleo duro do Ensino Médio, por exemplo?
É que hoje o salário inicial que recebem equivale ao salário de um trabalhador com Ensino Médio apenas. A evolução salarial é contida, agregando doses fragmentadas de gratificações que não expressam socialmente uma carreira profissional. Uma vez formado, o professor tem uma mobilidade ocupacional, o que o aprisiona na contingência de uma qualificação intransitiva. As possibilidades ascendentes de uma carreira profissional são, portanto, limitadas a critérios da burocracia estatal. Por estas e tantas outras razões, potenciais candidatos ao magistério, com talento e ambição profissional, desistem e buscam outras rotas laborais. As exceções são aqueles que ainda se sentem atraídos por um apelo vocacional remoto... e que são poucos, hoje!
É evidente a curta existência do ciclo de vida profissional de um Professor do Ensino Público. Fatores de energização que o sustentariam, como salário compensador, condições favoráveis de trabalho, domínio sobre os resultados dos alunos, monitoramento do projeto pedagógico escolar e dos insumos básicos da escola, fogem-lhe inteiramente do controle do que poderia vir a ser a construção de uma educação com qualidade social. Transformado em tarefeiro, este professor não tem a menor ideia do capital intelectual que poderá vir a ter dez, vinte anos depois de iniciada sua atividade profissional. Por isso, não é raro o professor começar como sujeito da profissão e terminar como alguém que apenas se sujeita à profissão, complementando-a com vários outros encargos ocupacionais.
11. Desuso ou mal uso das estatísticas educacionais, dos resultados das avaliações nacionais e internacionais cujos números não despertam interesse nos ciclos de planejamento dos sistemas de ensino e das próprias escolas, com raras exceções.
12. Ausência de parâmetros em nível de cada sistema de ensino para a fixação de “objetivo permanente por parte das autoridades responsáveis, visando a alcançar relação adequada entre o número de alunos e o professor, a carga horária e as condições materiais do estabelecimento” (LDB, art. 25). Consequência: as classes e as turmas são amontoados de alunos distanciados na faixa etária e segmentados por diferentes níveis sociocognitivos. Neste contexto, estabelece-se a formação de grupos diferenciados em sala de aula, dificultando as operacionalizações das conexões teoria/prática e impossibilitando o uso adequado de mediações pedagógicas. Não há arsenal didático capaz de alcançar cada aluno e todos os alunos, uma vez que o professor se vê impedido de atuar com INTENCIONALIDADE focal, tendo por base a categoria organização metodológica do conteúdo de ensino (Arnoni, 2001). Este cenário reflete o processo de instalação de níveis de amnesia na educação escolar que já não se dá conta de que ou a escola é para cada um, ou a educação não é para todos. Em salas de aula de uma escola de qualidade, cada professor deve poder alcançar cada aluno, vocalizando: ESCOLA, TEU NOME SOU EU!!! Enfim, para mudar a educação é preciso mudar a compreensão da sala.
13. Desvios qualitativos dos rumos da Educação Superior. O Brasil se tornou campeoníssimo no cenário mundial, na expansão de cursos na modalidade de EaD, sem contrapartida de acompanhamento técnico-legal e pedagógico de padrões regulatórios de elevada exigência. As grandes redes de ensino, na modalidade EaD, se transformaram em supermercados de oferta de produtos acadêmicos e de mercadorias com selo de ensino superior, produtos postos na prateleira institucional, à espera de qualquer consumidor! Nenhum país paradigmático em educação seguiu este rumo, de forma tão acelerada! Na verdade, constitui uma visão declinante, academicamente falando, “prateleiras” de cursos a distância de nível superior, com oferta no painel de uma guerra de preços!... Lembram-se do personagem da TV: “fazemos qualquer negócio?”
O cúmulo desta “destinação” é a proliferação de Cursos de LICENCIATURA, no formato EaD. Um país que prepara seus professores a distância, é inevitável, se distanciar do compromisso com a educação de qualidade. Em boa hora, o MEC acaba de vetar esta DEFORMAÇÃO. A excelência da educação passa obrigatoriamente pelo binômio salário justo e qualificação elevada dos professores. Sem isto, não há como afastar, do princípio de ministração do ensino, a garantia do padrão de qualidade. E sem esta, restará apenas contaminação negativa no processo de FAZER EDUCAÇÃO, via oferta de ensino regular. Este, quando funcionando sem cumprimento responsável de princípios, normas e regras comuns, voltados para alcance das finalidades da educação (art. 22), restará inserido em apenas lacunas e escuridão. Aliás, não será exagero afirmar que grande parte dos sistemas de ensino parece apreciar a condição de penumbra. A sociedade brasileira precisa reagir a esta cumplicidade e precisa escutar e observar o eco da mensagem do conjunto Legião Urbana: “Não tenho medo do escuro, mas deixe as luzes acessas”.
É razoável continuar falando sobre estas mesmas coisas? Sim! E mais do que razoável, É NECESSÁRIO. Por que, pergunta-me você? E eu, convido EDUARDO GALEANO para me auxiliar na resposta: “Somos o que fazemos. Sobretudo, quando fazemos para modificar o que SOMOS”.
Moaci Alves Carneiro
Doutor em Educação/Paris
Ex-professor da Faculdade de Educação da UnB
Diretor do Encontro de Laboratórios de Cidadania e Educação/ENLACE