A Eleição de Donald Trump
A eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos é indiscutivelmente um dos temas mais relevantes da atualidade. O processo que levou o empresário e ex-apresentador de reality shows norte-americano ao poder não pode ser entendido como algo corriqueiro. É a expressão de transformações profundas nos Estados Unidos e no mundo, na medida em que expressa o esgotamento das vias de dominação da burguesia imperialistas das últimas décadas, representadas pela globalização e o neoliberalismo.
Com um discurso xenófobo, nacionalista e misógino, Donald Trump levou a cabo uma campanha política atordoante. A extensão do muro que deveria separar o México dos Estados Unidos, a ser pago pelo próprio país fronteiriço; a proibição de entrada de pessoas provenientes de seis países de origem muçulmana; a ameaça de medidas protecionistas, como uma promessa demagógica de “tornar a América grande novamente”, foram algumas das políticas defendidas por Trump. Tão polêmicas quanto de difícil execução, não se pode caracterizar ainda até onde elas serão implementadas. No entanto, um primeiro balanço do início de seu governo já pode ser feito. Bem como definições sobre a natureza estratégica de sua ascensão.
Crise orgânica e esgotamento da globalização neoliberal
Muitas interpretações de intelectuais sobre o que significa a vitória de Donald Trump estão no centro do debate teórico político. Para o geógrafo britânico David Harvey Trump, expressa a desilusão de massas com a globalização. O filósofo francês Alain Badiou define Trump como um tipo de “fascismo democrático”, o que encerra uma contradição de termos, que seria produto da crise dos partidos políticos e seus representantes tradicionais. Para o filósofo alemão Jürgen Habermas, estaríamos diante de um momento político marcado por um sentimento, cada vez mais presente na sociedade, de perda de controle por parte de um núcleo real, e esse seria o sintoma de uma época “pós-democrática”, evidenciada com o Brexit e com a eleição de Donald Trump.
Mesmo com as várias nuances e distinções entre essas interpretações, o que existe como traço comum a todas elas são dois elementos: o primeiro é a definição de que Trump representa uma grande guinada em relação aos políticos tradicionais e às linhas adotadas, sendo antes um outsider, e nisso consistiu grande parte do apelo responsável pela sua vitória; o segundo factor revela uma insatisfação das massas dos países centrais com suas condições de vida.
Em um dos seus “Cadernos do Cárcere”, escritos entre os anos de 1926 e 1937, o expoente marxista italiano Antonio Gramsci elabora um conceito que se revela de grande valia para a análise do pano de fundo da vitória de Donald Trump e outros processos internacionais, como o Brexit. Ou, ainda, para apreender o significado da polarização política e social no fortalecimento de organizações de extrema-direita na Europa, como a Frente Nacional de Marine Le Pen na França, ou dos neorreformistas, como Melenchon na França, Syriza na Grécia e Podemos na Espanha. Trata-se do conceito de “crise orgânica”, que determina o processo através do qual:
Em certo ponto de sua vida histórica, os grupos se separam de seus partidos tradicionais, isto é, os partidos tradicionais naquela forma organizativa, com aqueles homens determinados que o constituem, o representam e o dirigem não são mais reconhecidos como sua expressão por sua classe, ou fração de classe. Quando essa crise tem lugar, a situação imediatamente se torna delicada e perigosa, porque o campo fica aberto a soluções de força, à atividade de potências obscuras representadas pelos homens providenciais ou carismáticos. Como são criadas essas situações de oposição entre representantes e representados, que do terreno dos partidos (organizações de partido em sentido estrito, campo extraparlamentar, organização midiática) se reflete em todo o aparato estatal, reforçando a posição relativa de poder da burocracia civil e militar, da alta finança, da Igreja e em geral de todos os organismos relativamente independentes da opinião pública? Em cada país o processo é distinto, ainda que o conteúdo seja o mesmo. E o conteúdo é a crise de hegemonia da classe dominante, que se produz seja porque a classe dirigente fracassou em alguma grande empresa política para a qual solicitou ou impôs com a força o consenso das grandes massas (como a guerra) ou porque vastas massas (especialmente de camponeses ou de pequenos burgueses intelectuais) passaram rapidamente da passividade política para uma certa atividade (…). Se fala de crise de autoridade, e isso é precisamente a crise de hegemonia, ou a crise do Estado em seu conjunto. [1]
Assim, o que o conceito de crise orgânica indica é uma inflexão profunda, de uma situação em que “o velho não termina de perecer, e o novo tampouco de nascer”, nas próprias palavras de Gramsci, o que abre espaço para fenômenos aberrantes. A corrosão de legitimidade dos políticos tradicionais e seus partidos, a brecha crescente entre representantes e representados, a polarização política e social, são algumas marcas da crise orgânica, que inaugura “novas formas de pensar”.
Cabe indagar qual seria então a “grande empresa” da classe dominante que teria falhado nos Estados Unidos, e resultado na eleição de Donald Trump. A primeira hipótese é que a “grande empresa” da classe dominante que falhou, ou que ao menos começa a demonstrar mais contradições que fortalezas, é a própria globalização realizada sob a égide do neoliberalismo.
A globalização neoliberal encontrou, após a crise capitalista de 2008, um limite ao seu modelo embasado no consumo a crédito irrefreável e infinito no plano econômico, e no triunfo das democracias liberais. Após a crise de 2008 se dissemina a percepção de que a globalização neoliberal foi responsável pelo aumento sem precedentes da desigualdade, e pela precarização dos postos de trabalho nos países centrais. Estima-se que atualmente 90% dos postos de trabalho criados nos EUA após a referida crise são precários.
Com a crise capitalista internacional de 2008 pela primeira vez desde a crise da década de 1970, que resultou no fim do acordo de Bretton Woods e na ampliação sem precedentes do capital especulativo, ocorria uma inflexão na economia de conjunto que se manifestava não nos países da periferia, mas no próprio coração do sistema. A intensa generalização dos ativos financeiros, e o deslocamento dos parques industriais dos países centrais para outras áreas, como ocorreu com a China, trouxe consigo uma corrosão dos salários reais da massa trabalhadora dos países centrais, e a dificuldade de evitar uma crise de super acumulação nos rincões rentáveis do capitalismo internacional.
A recomposição da taxa de lucro extraída pela burguesia imperialista favorecida pela globalização durante as décadas de neoliberalismo pôde ser obtida pela retirada dos direitos da classe trabalhadora nos países centrais, e a partir principalmente da década de 1990, com a ida dos grandes monopólios produtivos para novas áreas outrora vedadas à entrada de capital, como a China. Essa deslocalização produtiva permitiu ao imperialismo explorar uma mão-de-obra muito mais barata que a dos países centrais. Por sua vez, gestou um equilíbrio internacional em que a China funcionava como exportador de manufaturas baratas, e motor da economia mundial na medida em que seu boom exportador demandava matérias-primas vindas de todas as partes do mundo, enquanto também utilizava seu superávit de conta corrente para financiar os títulos da dívida pública norte-americana. Os Estados Unidos, por sua vez, atuavam como mercado para as exportações chinesas, estimulando o super consumo em base à facilidade de crédito a taxas de juros próximas a zero, que levou à criação da bolha imobiliária, ativo que permitia às famílias norte-americanas se endividar ainda mais. A explosão dessa bolha em 2008, e a consequente depressão do mercado mundial, marcam o fim desse período de crescimento “colaborativo” entre a China e os Estados Unidos, e é a base da guinada nacionalista presente no discurso de Trump, e mesmo em fenômenos como o Brexit.
É importante notar que esse discurso cala fundo não apenas entre as massas empobrecidas dos Estados Unidos, mas entre o setor da burguesia que perdeu com a globalização, como aqueles que não eram fortes o suficiente para se deslocalizar para a Ásia oriental ou para o México, mas produziam as mesmas mercadorias exportadas da China. Esses setores perderam rentabilidade pois não conseguiam competir nos mesmos níveis. Ainda que seja praticamente impossível que os capitais deslocalizados retornem aos Estados Unidos como promete Trump, o esgotamento desse processo indica a difícil tarefa colocada para a burguesia imperialista de buscar uma nova via de acumulação.
A utilização das finanças como instrumento de poder e da preservação da correlação de forças desfavorável aos trabalhadores também se aprofundou como resposta dada pelo establishment norte-americano diante da crise de 2008. Como se sabe, contrariando toda espécie de “Estado mínimo”, a saída encontrada pela administração Obama foi resgatar as agências financeiras. Uma transferência de capital estatal sem precedentes para o setor financeiro privado foi realizada, que, oficialmente, alcançou a cifra de US$ 425 bilhões, mas que pode ter chegado a US$ 16 trilhões em repasses extra oficiais para a FED, dentre os quais teria cabido ao Citigroup a quantia de US$ 2,5 trilhões, ao Morgan Stanley US$ 2,04 trilhões e ao Merril Lynch US$ 1,9 trilhões, para nomear apenas os três maiores favorecidos de uma lista que segue se expandindo para os principais conglomerados financeiros estadunidense[2]. Dessa maneira, a própria via fundamental para lidar com a crise gerada pelo estouro da bolha imobiliária norte-americana foi a salvação do sistema financeiro pelo próprio Estado, o que além de ser o ponto de partida para a criação de uma nova bolha especulativa, demonstra que os preceitos de “Estado mínimo” servem apenas quando se trata de investimentos estatais para garantir qualquer tipo se seguridade social.
Os efeitos disso são concretos. Os mais pobres do mundo possuem cerca de 1% da riqueza mundial, estimada em 2015 em ser cerca de US$ 250,1 trilhões, os 10% mais ricos controlam 87,7%. Nos Estados Unidos, após a crise de 2008, o 1% mais rico absorveu 95% de todo o crescimento do país. O resultado é uma situação de intensa instabilidade política e social, marcada pela crise dos partidos e figuras da política tradicional, que abre uma brecha entre representantes e representados, fazendo surgir novas mediações, cujas ações são imprevistas e constituem uma ruptura com as orientações políticas adotadas anteriormente. Tendências a adoção de medidas autoritárias, ou, em outras palavras. Bonapartistas, se fortalecem como vias para a imposição de uma ordem distinta e débil, por enquanto pouco assentada, mas que apesar das dúvidas anunciam uma importante mudança em relação ao período anterior.
Até o momento. Trump não foi capaz de aplicar sua agenda econômica, e resulta ser extremamente difícil que a execute tal e qual. A meta de promover um crescimento de 3% a 4% segue sem ter um plano concreto. A promessa de trazer de volta os capitais deslocalizados, para por essa via recompor o emprego norte-americano, é uma proposta que não se sustenta, já que os salários estanqueidades, mesmo sendo depreciados desde a década de 1970, são qualitativamente superiores aos chineses. A promessa de taxação de 45% às importações chinesas, o que equivaleria a declaração de uma guerra comercial, também foi substituída por uma saída mais mediada, com o plano elaborado pelos republicanos desde 2016, conhecido como “Border Adjustment Tax”. Esse projeto visa taxar as importações e exonerar as exportações, e por mais que seja relativamente mais realista, tampouco deixará de enfrentar a oposição das corporações globalizaras. Como resultado disso, coalizões dos grandes grupos capitalistas dividem-se entre apoiadores e oposição a essa medida. De um lado estão os exportadores que formam o “American Made Coalition”, que conta com a adesão da Boeing, Pzifer, General Eletric, Caterpillar, Jhonson & Jhonson. De outro, os opositores importadores como Wall Mart, Best Buy, Nike, Gap etc., que compõem a coalização “American for Affordabale Products”, que denunciam a elevação de preços que a taxação proposta por Trump trará. Não se pode saber o resultado dessa disputa, mas isso indica que intensas divisões entre a própria classe dominante, que se expressa igualmente no interior dos partidos do regime, não é algo conjuntural, mas provavelmente será uma marca do governo Trump ao longo de seu mandado.
Nesse sentido, sua aposta em apoiar-se cada vez mais no aparato burocrático militar, que lhe confere justamente o caráter de bonapartista débil, por conta das imensas divisões que existem, parece ser uma resposta a isso. O aumento do orçamento militar que prevê mais US$ 56 bilhões para gastos com a defesa e armas de maior potência, como a “mãe de todas as bombas” lançada recentemente no Afeganistão, encontra sua equivalência no corte de fundos para o Departamento de Estado, que sustenta iniciativas nos organismos multilaterais como as Nações Unidas. Isso nos leva à segunda parte dessa discussão, que revela os traços fundamentais de uma mudança de política almejada por Trump, de não mais ser o garantidor de uma “ordem mundial”, mas sim o garantidor dos interesses nacionais e unilaterais dos Estados Unidos.
[1] MASO, Juan, El marxismo de Gramsci, Buenos Aires, Ediciones IPS pag, 81
Quando a Justiça tarda é porque já falhou
por Envolverde — publicado 19/03/2014 12h24
Especialistas debatem por que, no Brasil, a "qualidade" do Judiciário funciona melhor para uns do que para outros
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André Luy
Resposta do Presidente Donald Trump
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