Em tempos de curta memória, estamos a precisar de História!
A crispação e a polarização da sociedade portuguesa são evidentes. A moderação e o bom senso parecem ter passado de moda e tentamos resistir à saudável convivência de opiniões divergentes. Nem o passado escapa às tentativas de reset à moda antiga. Quais regimes ditatoriais. Mas não será a memória desses regimes que queremos apagar, o travão necessário a certos ciclos da História!?
Vivemos tempos muito particulares. A sociedade de informação que tinha como objetivo último a democratização plena da esfera pública esbarrou-se em si mesma. Agora, ao mesmo tempo que não podemos baixar a espada na arena das redes sociais, sob pena de sermos humilhados pela derrota das nossas convicções, pensamos desesperadamente numa forma de parar com esta guerra, porque estamos cansados.
A digitalização da informação parecia a meta de uma corrida sem defeitos. Qualquer comum mortal deixaria de estar condicionado ao estatuto social, económico, académico, profissional, mediático (no contexto dos media tradicionais) e a outras condicionantes associadas para disseminar uma ideia no espaço público. As redes sociais eram a fórmula ideal para qualquer pessoa sem estatuto e sem dinheiro fazer veicular uma ideia. Num mundo onde todos somos iguais, bastava ser sensacional nas palavras usadas para viralizar uma mensagem e influenciar alguma opinião pública de uma forma que, noutros tempos, só nos media tradicionais seria possível, meios esses que são um mundo inacessível à maioria das pessoas que anseiam ter uma voz audível na esfera pública.
A ideia era boa, e continua a ser, mas reconfigurou irreversivelmente o mundo da comunicação.
Como todos se aperceberam, a desinformação foi um dos problemas mais graves desta democratização da esfera pública. A densidade de informação que proporcionou, impulsionou o sensacionalismo porque o impacto das palavras é a forma mais fácil de marcar a diferença no meio de tantas palavras às quais começamos a ficar cada vez mais indiferentes. Mas há outro efeito que pouca gente se terá apercebido.
Outrora, as notícias que nos chegavam pela rádio, pela televisão e pelo jornal, vinham com conta, peso e medida, e ficavam retidas durante algum tempo na nossa memória. Conseguíamos assimilar e categorizar vários acontecimentos de um passado bastante mais longínquo do que hoje somos capazes de fazer. Agora, a quantidade de informação com que nos cruzamos, especialmente nas redes sociais, é de tal forma densa e ruidosa que, um acontecimento de há um mês, passa rapidamente ao esquecimento.
Esse é o grande desafio com que nos debatemos hoje. As pessoas tinham vários acontecimentos estratégicos gravados na sua memória que serviam de exemplo, a seguir ou a não seguir, nos caminhos que trilhavam para o futuro. Hoje, com notícias de há uma semana, não perspetivamos, nem contextualizamos História nenhuma que nos ensine alguma coisa a repetir ou a evitar no futuro porque nem sequer damos espaço à História para se construir e para nos ajudar.
Para agravar todo esse quadro de polarização em que vivemos, umas personalidades do mundo mediático decidiram atacar, pedir a destruição e disseminar a retórica de que um qualquer edifício, símbolo ou monumento do passado está relacionado com o colonialismo e com o fascismo. Quem não pede a sua destruição é tão culpado como esse passado e que, por isso, os portugueses devem viver envergonhados pelos erros dos seus antepassados.
Eu não sei se é muito boa ideia começar a destruir tudo o que nos faça lembrar o colonialismo ou o salazarismo. É. Realmente, vários deles não nos lembram acontecimentos muito felizes, mas a História é mesmo assim e até nos ajuda a ter bem presente o que não fazer ou repetir. A nossa própria nacionalidade é assente na reconfiguração pela guerra e somos portugueses porque somos uma mistura de vikings, visigodos, romanos, muçulmanos, entre outros povos que por cá se instalaram. Até espanhóis terão feito cá misturas enquanto fizeram de nós uma província de Espanha, e não será muito correto exigir-lhes agora redenção por isso.
O que eu acho mesmo que nos coraria de vergonha, é que depois de destruirmos todo o desenvolvimento alegadamente assente nessas atrocidades, muito pouco sobraria a Portugal. E isso é que nos devia fazer refletir, porque podemos entrar pela História adentro e perceber se estávamos a fazer a leitura correta dos registos que temos desses tempos. Podemos e devemos corrigi-los, se for o caso. Também devemos ter cuidado com a forma como nos martirizamos com a nossa História porque se contextualizarmos a História Mundial, Portugal até tem vários exemplos arrojados de humanismo adequado à época. Hoje, com o reconhecimento óbvio de vários direitos humanos e sociais que conquistamos, seriam considerados atrocidades. Mas eram-no se com os meios que hoje temos continuassem a ser praticadas.
Se achamos que podemos fazer à História o que fazemos aos nossos cadernos quando queremos que fiquem mais bonitos, bastando arrancar folhas, passar uma borracha ou usar o corretor, estamos muito enganados. Pior que isso, alguém terá via livre, por falta de memória de uma comunidade, para pegar na folha arrancada e colocá-la nos dias de hoje, e sofreremos na pele algo que podíamos ter evitado se aceitássemos a aprendêssemos com o passado. A memória não se apaga, cultiva-se. Porque em tempos de curta memória, estamos a precisar de História!