A equidade ao centro  do debate educacional


O debate educacional brasileiro foi dominado, até muito recentemente, pela ideia da qualidade, com o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb)  tomado como único indicador relevante.  No entanto, o artigo 205 da Constituição Federal, ao afirmar que a educação é direito de todos, introduz a equidade como uma dimensão essencial. No último ano, o debate educacional deu grande relevo à questão da equidade. Ou seja, passou-se a aceitar que não basta observar qualidade na educação; é preciso conhecer quais são os grupos sociais que têm acesso, de fato, à educação de qualidade. Slogans como “Qualidade para poucos, não é qualidade” ganharam aceitação.  

Esse debate exige, entretanto, que se defina qual é o critério segundo o qual a equidade entre os diferentes grupos sociais será verificada.  O texto constitucional estabelece que a educação deve garantir os aprendizados que os estudantes precisam para “o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” Esses aprendizados só ocorrem se os estudantes têm acesso e permanecem na escola. Assim este texto, refletindo recente trabalho de pesquisa[1], toma a permanência – sintetizada na trajetória regular ao fim do ensino fundamental – como o primeiro critério segundo o qual a equidade educacional deve ser verificada.

Os grupos sociais nos quais a equidade pode ser analisada empiricamente são definidos pelo sexo, raça e nível socioeconômico (NSE). No entanto, é preciso reconhecer que estes três fatores não incluem todas as dimensões associadas com a permanência irregular.  Há muitos estudos e testemunhos que mostram como os estudantes da comunidade LGBTQIA+ enfrentam mais dificuldades de permanecer na escola e aprender. Um segundo fator, que também não  pode ser contemplado pela falta de dados, é a violência doméstica, muitas vezes acirrada pelo alcoolismo.

O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) construiu, a partir dos dados do Censo Escolar coletados anualmente, um painel em que, para todos os estudantes, disponibiliza informações sobre o sexo, sua cor/raça autodeclarada pelo estudante e registrada no Censo Escolar por algum funcionário da escola. O NSE capta a posição social dos estudantes individualmente e, de forma mais estável, do conjunto de estudantes que frequentam uma dada escola. Recentemente o Inep divulgou o NSE de todas as escolas em funcionamento, um insumo essencial para o estudo da equidade educacional. Estes dados permitem a criação dos grupos essenciais  para o monitoramento da equidade educacional.

A pesquisa citada anteriormente  adotou, como medida de exclusão educacional, a ocorrência de   trajetória irregular, depois de acompanhamento do estudante por 9 anos. Esta decisão consiste em assumir que manter a criança na escola durante um longo período sem intercorrência, reprovação, abandono ou evasão é especialmente difícil e, portanto, ter trajetória regular é uma sólida evidência de que uma condição essencial para a garantia do direito à educação foi atingida. Este trabalho usou grupos, criados com as características sociais que geram exclusão: sexo – duas categorias; raça/cor – cinco categorias e NSE com quatro categorias. Foram as informações dos estudantes nascidos no segundo semestre do ano 1999 e primeiro do ano de 2000.  A porcentagem de estudantes com trajetória irregular em cada um dos grupos é tomada como indicador de vulnerabilidade social dos estudantes pertencentes ao grupo.

Os resultados, apresentados na tabela 10 do artigo, mostram que o pertencimento a alguns destes grupos está associado a enormes diferenças. Por exemplo, os meninos pretos e pobres tem o valor do indicador em 20%, enquanto o grupo das meninas brancas de NSE alto tem 78%, uma diferença de 58 pontos percentuais.

Até alguns anos atrás, as desigualdades educacionais eram analisadas mais frequentemente considerando- apenas o NSE dos estudantes. Os valores obtidos no trabalho mostram que esta variável, embora importante, não consegue sintetizar adequadamente a situação de exclusão dos estudantes. Em qualquer grupo de sexo e raça, há um gradiente segundo o NSE. Ou seja, não considerar a raça e sexo cria uma descrição menos nítida da exclusão escolar, pois há diferenças relevantes se o indicador de exclusão é calculado nas diferentes categorias de raça. 

Por outro lado, deixar de considerar o NSE, como está se tornando usual, tem também consequência.  Se apenas a raça e sexo são considerados, a diferença entre os meninos pobres e pretos, agora referidos como meninos pretos e as meninas brancas cai de 58 % para 33%, enquanto a porcentagem das meninas pardas de NSE alto, que antes era um grupo com alto nível de trajetórias regulares -  75% - torna-se um grupo com exclusão educacional mediana, com o indicador em 55%.   Ou seja, desprezar um dos três critérios significa invisibilizar as desigualdades de alguns grupos e aumentar artificialmente a exclusão de grupos que tomam para si o que é de outro grupo, que deixou de ser considerado.  Estes recortes mostram claramente a importância de se analisar a equidade com ajuda do conceito de interseccionalidade. ampliado pela inclusão do NSE[2].

 O indicador de vulnerabilidade educacional proposto é particularmente necessário para subsidiar a alocação de recursos e os modelos de monitoramento da qualidade. Além disso, adotar  gradientes  de exclusão entre os  vários grupos sociais viabiliza o estudo da equidade em qualquer território. Isso é uma característica importante pois, nem todos os fatores que geram exclusão estão presentes em todos os territórios em um pais tão grande e heterogêneo como o Brasil. Além disso,  a existência deste indicador permite verificar, usando modelos especialmente desenvolvidos para isso, quais municípios  estão promovendo, de fato, a equidade.  Este tipo de análise precisa ganhar visibilidade, ainda que exija métodos mais complexos para o seu cálculo. Não é mais socialmente aceitável celebrar sucessos que deixam de fora alguns grupos sociais.

O estudo da equidade não se restringe a resultados de aprendizagem. Em particular, é preciso estudar a equidade em relação ao reconhecimento. Para esta dimensão o indicador apresentado acima não tem uma contribuição relevante e os grupos a serem considerados não necessariamente serão os usados anteriormente.

Finalmente registra-se que o monitoramento dos resultados educacionais envolve várias dimensões, mas deve sempre considerar concomitantemente as dimensões de qualidade e da equidade.  Nível e desigualdade dos resultados devem ser consagrados em indicadores essenciais para o monitoramento da garantia do direito à educação.


[1] SOARES, José Francisco; ALVES, Maria Teresa Gonzaga; FONSECA, José Aguinaldo. Trajetórias educacionais como evidência da qualidade da educação básica brasileira. Revista Brasileira de Estudos de População, v. 38, 2021:   https://www.scielo.br/j/rbepop/a/9ZRM8LBTqQMHMDQNJDwjQZQ/

 

[2] Este é o tema de pesquisa do NEES da Universidade Federal de Alagoas: https://www.nees.ufal.br

 

Renata Ferraz

Advogada | Impacto Social | Gerente de Conhecimento, Dados e Pesquisa na Fundação Lemann

1 a

Muito relevantes os achados e recomendações. Parabéns pelo estudo! Compartilhei com nosso time de Conhecimento, Dados e Pesquisa na Fundação Lemann!

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