Trabalho escravo em “empresas ESG”?
Nitidamente, marcas líderes no Brasil ainda não estão preparadas adequadamente para tratar do tema ESG como grande diferencial competitivo de mercado.
Em pleno 2023, enquanto falamos tanto sobre o pilar social com o foco no respeito à dignidade das pessoas e inclusão com equidade - ambos, inclusive, como fortes argumentos para o fortalecimento do branding (enquanto marca empregadora e também para o consumidor) -, ainda somos surpreendidos com notícias sobre “atividades análogas ao trabalho escravo”.
No caso em questão, estamos falando das vinícolas de Bento Gonçalves (RS) que contrataram empresas terceirizadas para a colheita de uva. São nomes bastante conhecidos do paladar de amantes de vinhos nacionais, alguns que se posicionam, inclusive, como líderes no mercado brasileiro.
O fato é que, tanto as empresas envolvidas, quanto uma associação empresarial da cidade, recorreram às famosas desculpas organizacionais para se eximir de eventuais culpas na opinião pública. Frases como “não temos mão de obra qualificada disponível” ou defesas alegando desconhecimento da situação dos trabalhadores naquele local, no mínimo, nos preocupam.
Não se trata somente de culpar ou não (ou procurar quem seja o culpado) por ter pessoas trabalhando em situações analogas à escravidão (isso deixamos para a justiça e o Ministério do Trabalho), mas sim de enxergar o risco de marcas ao aceitarem e estabelecerem negócios com organizações que AINDA promovem essas ações. Vivemos um constante movimento para que a sociedade invista mais em relacionar-se por meio do capitalismo de steakholders, com uma cadeia de produção que esteja alinhada com os princípios de cada um.
Aliás, uma das empresas envolvidas ainda possui em seu site institucional uma área disponível exclusivamente para falar sobre sustentabilidade e ESG, alegando, inclusive “integrar os aspectos ambientais, sociais e de governança (ESG) em todas as etapas do processo produtivo juntos aos diferentes stakeholders que formam a nossa cadeia de valor”. Veja bem, a própria empresa alega que aplica ESG em todas as etapas produtivas. O que não reflete muito o que vimos nas notícias que surgiram nos últimos dias, certo?
A pergunta que faço é: se uma empresa é contra o trabalho escravo (e aqui podemos refletir em outros cenários também: contra a homofobia, contra a gordofobia, contra o desmatamento… e por aí vai), por que ainda estabelece relações comerciais com outras empresas e marcas que ainda o praticam?
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Perde-se uma excelente oportunidade de negócios (sim gente, não vamos ser hipócritas, toda marca tem que vender) focado em uma cadeia de produção REALMENTE baseada em estratégias de ESG, com a inclusão de profissionais qualificados e contratação de fornecedores e prestadores de serviço que atuem da mesma forma. Não somente como algo bonito de se falar, como no site da empresa mencionada acima, mas sim como práticas realmente eficazes de controle da produção e efetivação dos cuidados da marca com todos os seus stakeholders na cadeia produtiva. Não basta falar bonito sobre diversidade, inclusão, ESG e demais termos que “estão na moda” somente para sentar na primeira fileira dos ganhos de mercado.
Nós, consumidores, já estamos no caminho de consumir produtos que visem essa mudança de paradigma. Eu, que sou amante de vinhos, certamente repensarei e provavelmente encontrarei concorrentes destas marcas que estejam mais alinhados com os meus princípios e tenham contratos com fornecedores adequadamente qualificados nestes quesitos. Com certeza você, leitor, também o fará.
E você, enquanto empresa, já refletiu sobre o seu consumidor? Vai continuar correndo o risco de cair na opinião pública por se eximir de implantar estratégias eficazes para a qualificação de seus fornecedores e prestadores de serviços? Será que as próximas gerações seguirão adquirindo o seu produto sabendo que as práticas aplicadas na produção não são focadas em sustentabilidade e justiça social? Pense bem, essa situação das vinícolas é um grande aprendizado para todas as demais marcas (e espero que também para as que “caíram na malha fina” da opinião pública).
Já passamos da era em que as pessoas não tinham acesso à informação suficiente e, consequentemente, adquiriam produtos sem propósito. Precisamos, enquanto mercado, nos reinventar e nos readequar, aplicando estratégias realmente eficazes para a construção de produtos e serviços que gerem valor agregado relacionado ao propósito de cada consumidor.
Marca empregadora sofre, Marca consumidora sofre, produto sofre, empresa deixa de vender, pessoas sofrem a perda de seus negócios e empregos. Todos saem perdendo com a cadeia da escravidão em pleno 2023!
E assim faço relação também com demais temáticas relacionadas a um passado que DEVEMOS, sim, aprender com ele, mas deixando suas práticas retrógradas para trás. Não cabe mais escravidão, racismo, homofobia, gordofobia, sexismo, machismo, desmatamento … e demais práticas no mercado que já aprendemos que não são sustentáveis para os nossos negócios (além, obviamente, de desumanas).