Escrever ficção é um ato subversivo
O título pode ser uma provocação. E é. Esse artigo surge exatamente em função de situação recém vivida por mim, há alguns dias, durante a procura e conversas com pessoas para escrever o prefácio de um livro que está no prelo e será lançado até o fim do ano. O texto trata da história de uma mulher que ao nascer foi roubada de sua mãe por agentes da ditadura e entregue a um inescrupuloso empresário que financiava a repressão em São Paulo. Isso no fim da década de 1960 e a obra mostra a vida dessa pessoa até chegar aos dias de hoje. Ela está em busca da verdade, de sua origem. É uma ficção com base em fatos reais, apesar de no Brasil não haver registros sobre bebês roubados na ditadura civil-militar, como aconteceu fartamente nos países vizinhos ao Brasil no mesmo período.
Aqui quero debater a relação ficção e realidade. Precisamos quebrar o preconceito sobre a não aceitação da ficção como boa literatura no Brasil. Boa literatura não é somente feita por livros reportagem, biografias e documentários.
Pergunto: quanta realidade podemos encontrar nas ficções? Acredito que podemos ajudar a compreender a realidade por meio da ficção literária. A realidade tem seu lado irreal. Até o jornalismo, área que por excelência deveria ser só objetividade com fatos, nada além de fatos, está comprometido com soluções imaginárias, ficcionais.
A literatura é muito mais potente do que podemos imaginar. Um texto literário é capaz de quebrar o gelo e antipatia das pessoas e mostrar fatos pouco conhecidos ou mesmo detalhes que não são captados num livro reportagem. A literatura de ficção é capaz de abrir janelas. Mostrar os fatos por outras perspectivas e as maneiras de olhar a história real. Não existimos sem ficção.
Reafirmo que a ficção não é sinônimo de mentira, de algo falso. A ficção tem o poder de ampliar o mundo em que vivemos. O escritor tem o poder de transformar a nossa realidade em narrativas que podem ser entendidas por mais e diferentes pessoas. Quebrar a barreira da segregação e despertar o interesse para assuntos áridos e para a simples leitura. Atitude essa que a crua realidade não consegue por si só.
A ficção é muito dinâmica. Mas por favor, não me entendam mal. Adoro livros de não-ficção. Obras essas que sempre estão ao meu lado. Tenho já pronto um livro - uma reportagem histórica - ainda sem editora e trabalho em dois outros textos na mesma linha. Mas acredito que para ter uma visão mais profunda de alguns assuntos, o romance pode ser muito importante. O romance nos permite navegar por um lado que a não-ficção não permite. Possibilita estar ao lado íntimo e pessoal dos acontecimentos. O romance nos aguça a sensibilidade em todos os sentidos.
Não é a toa que romances provocaram problemas a muitos autores consagrados. Cito notícia veiculada no jornal Estado da Bahia, em 17 de dezembro de 1937, que mostra a marginalização de romances de Jorge Amado. A notícia tratava da incineração de 808 exemplares do livro "Capitães da areia", 223 exemplares de "Mar morto", 89 exemplares de "Cacau", 93 exemplares de "Suor", entre outros livros. A queima dos romances de Jorge Amado se deu no dia 19 de novembro de 1937, em frente à Escola de Aprendizes Marinheiros, em Salvador, Bahia, sob a presença dos "senhores membros da comissão de buscas e apreensões de livros, nomeada por ofício número seis, da então Comissão Executora do Estado de Guerra".
A incineração se deu às vésperas da decretação do Estado Novo, com a suspensão das liberdades e direitos dos cidadão, com imprensa censurada e tudo o mais. Todos os livros queimados mostravam a realidade do proletariado, dos marginalizados, dos esquecidos, através de lindos e importantes textos ficcionais.
Comunista de carteirinha, a posição ideológica levou Amado a muitos percalços em sua vida. Os livros banidos outrora ocupam hoje o rol das obras clássicas brasileiras. Eram e são a mais pura realidade narrativa de fatos verdadeiros. Mas mostrados por personagens ficcionais. À época, Graciliano Ramos disse em Memórias do Cárcere que "começamos oprimidos pela gramática e terminamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social".
Não ouso dizer que hoje vivemos situação semelhante. Mas citei esses fatos para mostrar que obras de ficção baseadas em fatos reais, com a presença de personagens verdadeiros e outros criados pelo autor são capazes sim de ser tão bons quanto livros reportagem, biografias e documentários.
E o que pode ser mais subversivo do que a leitura? Termino citando a professora e escritora Guiomar de Grammont: "Afinal de contas, a leitura é um poder, e o poder é para poucos. Para obedecer não é preciso enxergar, o silêncio é a linguagem da submissão. Para executar ordens, a palavra é inútil. Ler pode tornar o homem perigosamente humano".
Quero mais leitura de ficção e também de reportagens, de biografias. Afinal, o que há de mais real do que a ficção de Machado de Assis, considerado o maior representante do realismo no Brasil?
O Brasil precisa de mais e melhores leitores. De todos os tipos de literatura.
E sobre o título deste artigo digo que escrever ficção é subversivo sim. É revolucionário, transformador.
Eduardo Reina, autor de "No Gravador" (2003); integrante de "O Conto Brasileiro Hoje, Volume 5" (2007); integrante de "Contos e Casos Populares (introdução de Paulo Freire)" (1984).
Senior Director @ LinkedIn | Journalist, Master's in Political Science
9 aColoca uma fotinho no topo do artigo, que aumenta em 10X a leitura das pessoas