ESCUTA, AMENDOEIRA
Não sei se vocês sabem, mas o jeito mais fácil de arrancar um sorriso da boca de Deus é fazer planos. E, olhaí, a vida me fazendo mudar tudo outra vez.
A vida = leia-se a agência que me empregava e o senhorio da casa que alugamos.
Tudo ia como tudo vinha, trabalhando remoto aqui no Guarujá. Até que, no espaço de 30 dias, tudo mudou: eu e meu chapa Rafael Maia fomos demitidos e, sincronia, o proprietário pediu a casa de volta.
No turbilhão, ainda não houve tempo para currículo ou portfólio atualizado neste Linkedin. Ao menos, outro teto, num precinho mais camarada, conseguimos descolar. Partimos neste sábado: Dona Meg, este criado, Borges o Labrador (bezerro?) amarelo, Galeano, o Vira-lata Magricela e, conosco, se os prestadores de serviço caiçaras honrarem a palavra, mais uns dois paus-de-arara com nossas plantas, móveis e tralhas.
Afora o custo, o mais notável acerca da nossa residência não é o fato dela se encontrar pertinho do triplex do Lula; ou só a quatro quarteirões da famosa Praia do Tombo. O que a transcende, ao menos até este momento, é que à frente dela – e com a fronde projetando-se sobre o quintal – mora há muitos anos uma grande, soberba amendoeira.
Chapéu de Sol para uns, Sete-copas para outros. Mas é a nossa velha Terminalia Catappa. Espécie exótica trazida da Malásia pelos colonizadores e considerada hoje imprópria para a arborização urbana devido às raízes insubordinadas.
A sombra que proporciona, porém, é maravilhosa; fresco alento nessas veredas tropicais. É também apreciada pelos morcegos, que se regalam da polpa agridoce de suas amêndoas. Mas, aí é que está: eles vão se divertir, mas eu não vou poder morcegar. Diz a minha sábia vizinha, proprietária da casa: catar folhas e varrer frutos do chão é trabalho de Sísifo.
Segundo conta, nossa amendoeira é britânica com as estações. Caducifólia, bate o reloginho com rigor – sobretudo agora que o outono nos une e o inverno se aproxima.
Sem querer, o plural é perfeito. O outono que nos une.
É o que me transporta a uma crônica, de 1957, do Carlos Drummond de Andrade – "Fala, Amendoeira".
Tá lá o poeta a observar uma amendoeira que insiste, resiste, persiste no asfalto da grande cidade "e que ninguém ainda se lembrou de arrancar talvez porque haja outras destruições mais urgentes".
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A certo momento, o itabirano devaneia, E imagina um diálogo com a amendoeira. Esta então lhe diz:
"- Não vês? Começo a outonear. É 21 de Março, data em que as folhinhas assinalam o equinócio do outono. Cumpro meu dever de árvore, embora minhas irmãs não respeitem as estações.
- E vais outoneando sozinha?
- Na medida do possível. Anda tudo muito desorganizado, e, como deves notar, trago comigo um resto de verão, uma antecipação de primavera e mesmo, se reparares bem neste ventinho que me fustiga pela madrugada, uma suspeita de inverno.
- Somos todos assim.
- Os homens, não. Em ti, por exemplo, o outono é manifesto e exclusivo. Acho-te bem outonal, meu filho, e teu trabalho é exactamente o que os autores chamam de outonada: são frutos colhidos numa hora da vida que já não é clara, mas ainda não se dilui em treva. Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza.
- Não me entristeças.
- Não, querido, sou tua árvore-da-guarda e simbolizo teu outono pessoal. Quero apenas que te outonizes com paciência e doçura. O dardo de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso: parábolas, ritmos, tons suaves... Outoniza-te com dignidade, meu velho."
Bem. Drummond é Drummond. Mas até eu, que sou um zé-ninguém, me identifiquei. Só faria uma coisa diferente do poeta: nas manhãs em que estivermos ali sozinhos, com meu suor a beijar o chão vestido de suas folhas, ao invés de exortá-la a falar, me faria bem tê-la como ouvinte. Escuta, amendoeira: vou te segredar esperança, alguns temores e poucos desejos.
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2 aSempre bom ler seus textos. :)