escute seu corpo 👂
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escute seu corpo 👂

delongas | meditando de olhos abertos 🧘♂️

ignorar experiências corpóreas não é uma boa ideia. nunca é. entretanto, a gente vive em um mundo que tem diversos faniquitos pelo metafísico — e olha que, apesar de cético, eu tô longe de ser uma pessoa não religiosa.

acho que muito costumeiramente a gente põe nossa vida física, o corpo mesmo, em segundo plano, visando alcançar algo maior, uma elevação de mente, de alma, de intelecto, de carreira, de grana etc.

principalmente etc. 

ignorar, porém, essas experiências corpóreas não é uma boa ideia. afinal de contas, este é o único corpo que temos e as experiências não-corpóreas que podemos vir a ter em vida só acontecerão se este corpo estiver vivo.

a crônica (conto, se preferir) de hoje, é sobre isso também.

então, sem mais delongas

ao texto!

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o texto | escute seu corpo 👂

com o novo cargo e as novas responsabilidades, a grana aumentou e a carga também. afinal de contas, há um peso maior em gerenciar uma equipe com pouco mais de cinquenta pessoas. é como domar um pequeno bicho de sete cabeças. todo dia.

havia, é verdade, um conforto em fazer parte da equipe e tão somente executar aquilo que era proposto. mas as coisas estão melhor agora. ainda assim, sinto falta de não precisar chegar antes de todo mundo e de as minhas pequenas desculpas para pequenos atrasos serem mais facilmente toleradas. agora eu tenho que dar exemplo.

primeiro a chegar. último a sair. vestir a camisa. encher os olhos de sangue e de brilho. enfim, confesso que era mais fácil ter essa gana toda quando eu não precisava ter toda essa gana.

mas, da forma como eu vejo, posso reclamar, ou aproveitar as oportunidades. tem uma mocinha nova no escritório, Rosângela, sempre muito bem vestida: saias longas e roupas bem compostas, bem profissional. deve comprar tudo na Shein. perdemos a hora no cafezinho esses dias.

"passa lá na minha igreja, qualquer dia desses."

"claro".

a resposta foi mais por educação mesmo. não que eu tivesse algo contra igreja, religião e Deus. eu mesmo não ia desde criança e acho que essa parte da minha vida estava no stand by. mas respondi mais por educação, mesmo. a princípio.

aquela semana ia se espalhando, porém, e eu ia me desencontrando nela. nada parecia dar certo e a cobrança estava cravada sobre mim. para melhorar, no sábado, enquanto fazia uma volta de bicicleta pra me distrair, sofri um pequeno acidente e luxei o pulso. uma urucubaca desgraçada. lembrei do convite da Rosângela. passei uma mensagem, ajeitei tudo e fui. morava sozinho e, naturalmente, não tinha lugar nenhum para ir.

as músicas foram muito bonitas e tudo foi muito agradável, embora longo. contudo, num dado momento, um homem com um terno cinza e gravata vinho, de pele escura e cabelo baixo que estava sentado nas cadeiras que ficam atrás do púlpito me fitou — tão penetrante que fiquei sem graça. durante a última oração, ele se levantou e veio até mim.

"não sei como você veio aqui e quem é você, irmão, mas eis que te digo, o Senhor manda que você escute seu corpo."

"amém?" respondi usando uma daquelas entonações que ficam entre ser cortês e estar em dúvida. ele retornou ao seu assento balbuciando palavras que eu não conseguia compreender.

dormi bem naquela noite com uma sensação muito boa de que o culto havia mandado as coisas ruins que estavam me rondando embora. amanhã será diferente.

ledo engano.

tive de ser responsável por uma demissão coletiva. como a demanda de serviço aumentou, a equipe queixava-se para mim e começou a não render como o esperado. tentando conseguir ajuda da mesa de diretores, tive de receber um "você é muito bem pago para solucionar esse tipo de problema" e já no final da terça-feira, cheguei em casa passando mal. um sono absurdo, misturado a dores no corpo e de cabeça e nenhum apetite. dormi com roupa de trabalho e tudo.

ao acordar, tive a visão mais esquisita — à frente da minha cama, apareceu uma outra cama e nela um homem igual a mim dormia. estava de pijamas, limpo e dormia profundamente. quando ele acordou, me deu bom dia, como se me conhecesse e foi tomar café da manhã.

ele não respondeu nenhuma das minhas perguntas e quando terminei de falar, horrorizado dizendo que iria ligar para a polícia porque ele havia invadido meu apartamento, ele apenas me olhou e perguntou "você está bem?"

como em um transe respondi que "não! o trabalho estava me matando, havia perdido a vontade de fazer tudo o que gostava lá e até as coisas de que gostava de fazer para esquecer do trabalho haviam perdido o prazer." "interessante". respondeu, sentou-se a mesa com um prato de ovos mexidos e suco de maracujá. dividiu comigo e comemos em silêncio. como poderia ligar para a polícia e dizer que eu mesmo havia invadido meu apartamento e acabara de ouvir a mim mesmo me lamentar pelo meu trabalho? era melhor manter as coisas como estavam.

"você precisa ir ao médico". disse enquanto lavava os pratos. "eu não tenho tempo. hoje tenho duas reuniões muito importantes e alguns modelos de relatórios para pensar e redigir". "ok." disse isso com os olhos fixos na jarra de suco.

enquanto eu tomava banho e me arrumava para ir para o trabalho, não ouvi nada. "está saindo?" "sim", disse, pegando algumas pastas. Quando terminei de abrir a porta, ouvi o som estridente de vidro quebrando, muito perto dos meus ouvidos e senti uma forte dor de cabeça. desmaiei.

acordei em um quarto cuja temperatura era agradável e estava vestindo algo muito leve, aberto atrás. meu traseiro roçava na roupa de cama branquíssima. estava em uma cama de hospital, um enfermeiro completava algumas informações no prontuário. "quanto tempo eu dormi?", o enfermeiro olhou no relógio, "umas 9 horas. você parecia exausto". "como eu vim parar aqui?" com o olhar intrigado, descrente o enfermeiro respondeu.

"o senhor mesmo se internou".

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em suma | desculpe o transtorno (especialmente o dos outros) 🛑

"tem muito narcisismo no ódio a si mesmo". essa frase foi dita por David Foster Wallace em um making of de uma entrevista. um adendo é que existe muita coisa externa no ódio a si mesmo.

quando eu tava no último período de faculdade, lembro de estar andando pela rua e fantasiar como seria ser atropelado. fazia contas para pensar em qual tipo de veículo, distância e velocidade me colocariam apenas de molho durante uns dias. uma desculpa perfeita para descansar de dois empregos que me tomavam manhã e tarde, mais a faculdade à noite.

é claro que era impossível pensar isso sem sentir culpa, sem me sentir um psicopata egoísta. sem alimentar ódio por mim mesmo.

no filme Demolição, o personagem principal escapa de uma espiral de pensamentos ruins puxando a alavanca de segurança do metrô, o transtorno causado é inevitável, mas parece ser inevitável também que pausas abruptas assim encontrem a falta de compreensão alheia, que se soma à nossa.

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✍️ João Victor Fiorot é professor de português, literatura e redação e escritor. pode ser encontrado tomando café, nas redes sociais, gritando com as nuvens na praça etc.

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