Estamos no meio da era da pós-verdade.
Se você frequenta o LinkedIn, com certeza já ouviu falar sobre o momento em que "estamos vivendo". Mas quais são as reais consequências desta transformação tão brutal na forma como nos comunicamos e percebemos o mundo?
Neste ano, após ver algumas recomendações de amigos e fazer algumas pesquisa$, decidi me matricular no curso de MBA em Marketing da ESALQ/USP. O curso traz uma estrutura interessante, valorizando a interação e a discussão de tópicos de relevância entre os alunos e com os professores. Guardem esta informação: há fórum qualificado para a discussão.
O estalo que me faz contar fatos da minha vida em um texto de análise surgiu durante a aula do professor Caetano Haberli Junior. Entre métodos de planejamento estratégico como fio condutor de diversos cases de mercado e crônicas pessoais, nos deparamos com análises bastante favorávies sobre agrotóxicos (ou "defensores vegetais", termo eufemista usado pelo professor) e a situação do desmatamento da Amazônia.
A aula foi gravada e transmitida no dia 6 de agosto, uma terça-feira de noite amena, bem diferente da tarde que tivemos 13 dias depois, quando o dia virou noite em São Paulo. Naquele momento, ainda era possível o surgimento e a manutenção de diferentes narrativas no que tange à qualidade dos esforços de preservação ambiental no Brasil.
Aliás, aí reside uma característica fundamental para reconhecimento da pós-verdade. Enquanto a argumentação encadeia fatos consolidados em formato conveniente para a criação de realidades factíveis e a opinião é, dentre outras coisas, a interface entre o consenso e nosso ponto de vista, a pós-verdade necessita da criação ou alteração dos fatos, em si.
Aqui tornamos clara uma das bases de sustentação deste fenômeno: o desconhecimento geral do contexto público. Causada pelo aprofundamento da desigualdade, que distancia e polariza atores sociais relevantes e também pelo consumo da maior parte das nossas horas em atividades produtivas de baixa qualidade, a dificuldade de compreender e transitar por diferentes realidades diminui, consequentemente, a quantidade de fatos que vemos e vivemos. Ao fazê-lo, torna as populações mais suscetíveis às notícias falsas, fundação da pós-verdade.
Diferentes "acontecimentos" aparentemente isolados tem capacidade, quando organizados, de formar uma nova e bastante sedutora realidade, que nega sistematicamente problemas cujas tangentes ainda não estão próximas e propõe soluções simplórias àqueles impossíveis de negar. Por ser tão prazerosa, encontra pouca resistência ao se espalhar, ressonando com facilidade em diferentes setores, acirra defesas emocionadas e instiga ações de silenciamento perigosas em quem discorda. A sistematização da violência age, neste contexto, como ferramenta radical para a mitigação de refutações.
A junção entre a falta de pontos de convergência interpessoais, que prejudica a visibilidade do contexto, e a dificuldade na apresentação de contrapontos encontram ainda um terceiro fator de natureza imagético-tecnológica. A facilidade na criação e manipulação de fotos, sons e vídeos empodera agentes tecnicamente avançados, portanto altamente financiados, a enganar nossos sentidos e transforma a narrativa verbal de outrora em novos formatos audiovisuais. A grosso modo, narrativas irreais ganham outros terrenos além do texto escrito com a popularização do deep fake.
No entanto, as características apresentadas até aqui não tem, por si só, a força necessária para transformar tanto nossas vidas, pois carregam consigo um raciocínio linear. Inicia-se, então, a destruição dos grandes produtores de conhecimento formais e/ou consensuais. Institutos de pesquisa, governos, associações de classe, regras formais e informais e até a constituição são questionados e silenciados para a criação de controvérsia e a subsequente formação de vácuos narrativos onde as realidades recém criadas possam se encaixar, trazendo ciclicidade ao processo transformador da pós-verdade.
Customer Experience Specialist
5 aÓtimo ponto, e muito relevante no cenário político desse ano. Ver como a população é levada a descrer de dados científicos apresentados por órgãos governamentais, sem bases concretas para contestação, é muito alarmante. Também levanta a questão de como lidar com a pós-verdade e suas consequências sociopolíticas