Estratégia, Conhecimento e Inovação – uma conversa entre as perspectivas do Japão e do Ocidente
Me lembro bem, quando, em 2008, em uma manhã de um domingo chuvoso de outono na capital japonesa, tive o privilégio de participar como palestrante de um evento sobre Knowledge Management. Maior privilégio ainda foi ouvir a figura quase mítica do Dr. Ikujiro Nonaka abrindo o evento. Nonaka, reconhecido mundialmente por suas contribuições para a disciplina de gestão do conhecimento e gestão de inovação, tinha sido reconhecido um pouco antes, pelo imperador japonês, como um “Tesouro Vivo do Japão” - distinção importantíssima em um país que cultiva sua história, seus mitos e sua cultura.
Os primeiros minutos da palestra de Nonaka dão o tom de sua abordagem: não é possível falar de Gestão do Conhecimento sem abordar todos os aspectos filosóficos e epistemológicos associados ao Conhecimento. E neste contexto, os indivíduos como seres sociais inseridos no grupo, na empresa, na sociedade e no mundo são os agentes centrais da criação de conhecimento da inovação e do futuro.
A realidade está sendo criada pelos indivíduos de forma contínua, e ela só existe a partir da interação entre o sujeito e o objeto. E a cada instante ela é diferente, assim como a água no leito de um rio nunca é a mesma. Da mesma maneira deve ser vista a estratégia empresarial. Os indivíduos devem se guiar menos por análises estáticas do presente e mais pela capacidade humana de criar novos futuros interessantes para a empresa. E como são criados os futuros da empresa? Segundo Nonaka a teoria da criação de conhecimento é essencial. Ela se expressa por meio da criação de múltiplos “Bas”, ou espaços para socialização e criação de conhecimento organizacional. As empresas líderes elas se inserem em seus mercados e ambientes de modo a estabelecer processos altamente dinâmicos de aprendizado coletivo, isto é co-aprendizado.
Por que as empresas diferem entre si? Esta é a essência da estratégia. Com isso, Nonaka quer dizer que empresas com processos estratégicos robustos têm mecanismos para diferenciação contínua de seus concorrentes por meio do conhecimento e inovação. Na prática isto se traduz em processos de planejamento que enfatizam o qualitativo e não o quantitativo, embora este não possa ser ignorado. Estas empresas reconhecem, ademais, o mercado como orgânico e em constante evolução e seus líderes empresariais não apenas alocam recursos e aprovam orçamentos, mas participam e fomentam processos de aprendizado e reinvenção a partir do uso freqüente de metáforas, histórias vividas e histórias sobre o futuro da organização.
As visões de futuro são fundamentais, porém não estáticas. Elas se recriam de múltiplas maneiras, múltiplas perspectivas, múltiplos atores e vários níveis organizacionais interconectados via pessoas, em uma corrente infinita. Isto significa, ademais, que aprender e atender aos clientes requer que o conhecimento tácito dos indivíduos (contextualizado como “verbo” por ser dinâmico) seja transformado em processos de negócio e produtos (“substantivos” por ser a materialização) e guiado tanto pela visão de futuro, como pelas atitudes, valores e cultura organizacional.
Segudo Nonaka, a experiência compartilhada, inserida fortemente na realidade e compartilhada tacitamente é a principal fonte de criação e aplicação do conhecimento e da estratégia organizacional. Na prática, o que isto significa? E mais ainda, qual o papel dos líderes da organização e da estratégia empresarial? Abaixo minhas notas sobre sua exposição nesta conferência de 2008. Além disso, procuro fazer uma ponte com alguns dos métodos, práticas e ferramentas mais atuais que são comuns em grandes e avançadas empresas do Ocidente
1. Buscar o que é bom
Parece até ingênuo começar falando de bondade em uma conferência internacional sobre gestão empresarial. Segundo Nonaka, no entanto, o objetivo de uma organização não pode ser simplesmente de “ganhar dinheiro”. Isto seria apenas uma consequência. E há uma grande diferença entre estes dois posicionamentos. Fazer o bem e obter lucros não é contraditório. Mas fazer o bem requer ir além de uma atitude passiva de bondade, requer uma busca contínua de excelência para atender e surpreender o cliente.
As estratégias organizacionais de empresas inovadoras não podem ser guiadas estritamente com a finalidade do lucro. Dinheiro é apenas um meio. A estratégia deve ser vista, sobretudo, como uma história, um enredo que terá altos e baixos, sucessos e obstáculos. As histórias provêm o contexto nos quais os indivíduos de dentro e fora organização co-criam o futuro a partir de múltiplas perspectivas.
As organizações e os indivíduos precisam se engajar em seu trabalho como verdadeiros artesãos, que se dedicam à sua prática e arte de corpo e alma, sabendo que a excelência é mais do que um padrão: é uma busca contínua de aprimoramento que, por si só, já denota um estado de espírito e uma maneira de viver. Buscar o bom e atender ao cliente, portanto, são objetivos que só podem ser atingidos quando toda a organização se engaja fortemente na busca contínua e interminável da excelência.
Esta é uma linguagem que talvez seja filosófica demais para as empresas e ambiente ocidental. Creio, no entanto, que a ponte para a perspectiva ocidental atual é o crescimento da discussão em termos do propósito e missão da organização. Além disso, o movimento crescente em torno de ESG, traz a questão de atender não apenas o cliente, mas fazer o “bem” para o entorno e para a sociedade. Qual a contribuição e legado da empresa?
2. Habilidade de criar novos “Bas” em compasso com as condições mutáveis do ambiente externo
Segundo Nonaka, o papel da liderança fomentar novos “Bas” que permitam a contínua reinvenção do conhecimento organizacional. O verdadeiro novo conhecimento, no entanto, aquele que vai atender às necessidades dos clientes, é criado a partir de mecanismos tanto contratuais, como que fomentem graus elevados de intimidade que permitam o efetivo compartilhamento de experiências e conhecimentos tácitos.
Segundo Nonaka, a essência da gestão é contexto e julgamento. O futuro não é previsível, contudo, a busca pela verdade e pela essência de fazer o bem são guias suficientemente relevantes para mostrar o caminho aos indivíduos na organização. Os verdadeiros líderes não deixam as incertezas deprimirem os indivíduos na organização. Eles são otimistas e fomentam muitos “Bas” criadores do futuro.
O conceito de “Ba” como um espaço para socialização pode ser traduzido para a perspectiva ocidental em práticas como mecanismos de governança, comunidades de prática, grupos de trabalho e equipes de projetos que surgem, se comunicam e se dissolvem de maneira natural, conforme a organização se adapta e coexiste com o seu ambiente. De forma sistêmica também, há uma crescente preocupação com a gestão, interação e mesmo diálogo com partes interessadas – stakeholders. Se isto antes era algo mais difuso, hoje é uma prática discutida nos conselhos das empresas mais sofisticadas do mundo.
3. Fomentar a co-experiência
É preciso atenção aos detalhes, é neles que surgem os insights. Os detalhes, no entanto, são particularmente percebidos na medida em que há uma imersão empática, de corpo e alma, nos ambientes dos clientes. A criatividade e inovação podem ter uma justificativa racional, mas surgem quando há aprendizado com os cinco sentidos.
Organizações inovadoras criam contextos e missões que vão muito além dos produtos existentes, pois estes são apenas objetos temporários. É a partir da forte adesão dos colaboradores à missão organizacional que se consegue apoio e mecanismos para se engajar em processos de coexperiência e co-criação de conhecimento.
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Interessante que na última década proliferou pelas empresas ocidentais o conceito de design thinking. Acredito que a parte tanto a ênfase na empatia, como na rápida prototipação, pontos centrais desta metodologia estão totalmente alinhados à visão de Nonaka de co-experiência.
4. Traduzir instintos e insights para guiar a organização
A realidade só existe a partir da interpretação de cada indivíduo. Esta simples afirmação, embora possa parecer trivial, tem, segundo Nonaka, conseqüências muito práticas para as lideranças das organizações. A criação de conhecimento ocorre a partir das múltiplas interpretações da realidade que distintos indivíduos fazem de certo contexto, projeto ou iniciativa organizacional. Assim, a criação de significados comuns e conhecimento organizacional requerem um grau de alinhamento mínimo entre os indivíduos. Isto é conseguido a partir de diálogos verdadeiros e da criação de metáforas e analogias que sejam ao mesmo tempo simples e profundas.
A visão e a língua japonesa me parecem muito embasadas no uso de simbolismos extremamente tácitos que são de difícil tradução para o contexto dos modelos de gestão atuais. Apesar disso, há um reconhecimento crescente do papel da cultura e valores organizacionais como fundamentais para a execução da missão e da visão da empresa. Como dizia Peter Drucker, a “cultura come a estratégia”.
Desde a década de 80, quando o movimento da Qualidade Total se espalhava pelo Brasil e pelo mundo além das fronteiras do Japão, já se discutia a importância dos aspectos filosóficos e culturais que engendravam e sustentavam com sucesso esta abordagem nas empresas japonesas. As práticas garantiam, a partir de técnicas e ferramentas relativamente simples, graus de qualidade e produtividade de difícil replicação. Muitas empresas ocidentais falharam de forma vexatória em seus esforços de copiar tais práticas por nunca terem mergulhado fortemente nos traços da cultura oriental.
5. Alinhar e evitar resistências à mudança
Criar conhecimento, serviços e produtos inovadores demanda consenso das várias partes interessadas. O futuro não é linear e as opiniões podem ser contraditórias. Líderes devem buscar uma liderança que favoreça a dialética e a discussão sem deixar de comunicar suas próprias perspectivas de maneira evidente, mas modesta.
A verdade sempre traz múltiplas perspectivas. No final, elas precisam ser combinadas dialeticamente, tornando-se partes de uma mesma verdade. O melhor jeito é sempre o meio do caminho. Criar processos de comunicação e discussão robustos e participativos, portanto, é o papel dos líderes.
Esta perspectiva de Nonaka para um gestor ocidental talvez seja uma daquelas com maior desafio de tradução e mesmo correspondência. O modelo ocidental, principalmente, inspirado nas histórias de heróis empreendedores americanos, me parece muito mais top-down. Enquanto no Japão, segunda a perspectiva de Nonaka, os líderes vão apontando o futuro, mas ampliando o consenso a partir de ondas de diálogo. No Ocidente, vejo muito mais o “roll-out” da visão estratégica da liderança, com relativamente pouco espaço para diálogos. Talvez mais prático e mais ágil. Qual a vantagem de um modelo e de outro? Bela discussão para outro momento.
6. Criar um modelo organizacional no qual cada indivíduo assume um papel de liderança em sua área de influência
Finalmente, o modelo organizacional é o que garante a perenidade, a resiliência e a constante diferenciação da organização. O desenho organizacional precisa fortalecer um forte sentimento e uma atitude voltada ao protagonismo e ao coletivo. As organizações se beneficiam muito de líderes inspirados e visionários. Estes, porém, serão verdadeiramente sábios se fortalecerem modelos organizacionais no qual cada colaborador consiga visualizar seu papel em relação ao todo e se sinta motivado e comprometido com a missão da organização.
Esta visão de inclusão de todos, a partir de uma visão filosófica de sociedade e gestão de Nonaka, se traduz, a meu ver, nos movimento mais recente de diversidade e inclusão nas empresas ocidentais, mas sem a profundidade com que Nonaka pensava na inclusão dos indivíduos como agentes fundamentais da transformação e da estratégica interconectados entre si, com forte viés coletivo. A influência, segundo Nonaka, se dá pelo coletivo, pelo tácito e pela construção coletiva. No ocidente, há uma visão mais pragmática, mas individualista, focada em valores como igualdade e/ou equidade.
xxxx o xxxx
Não há dúvida que, como quase todo mundo, processo uma diversidade e quantidade de informação muito maior do que a relativamente pouco tempo atrás. E, em vários formatos, cada vez mais sintéticos, efêmeros e visuais. Talvez para compreender melhor o contexto seja melhor se distanciar do que se aproximar. Voltar ao passado pode ser saudosismo, mas também um refúgio para a reflexão. Na velocidade estamos perdendo a essência do pensamento estratégico? Na abundância de inputs estamos perdendo a capacidade de produção criativa e reflexiva?
Às vezes para entender o presente e o nosso contexto, precisamos de perspectiva. Esta visita às minhas notas desta manhã chuvosa de outono em Tokyo foi uma tentativa de trazer perspectiva para o mundo que vivo em que quase todos vivemos: velocidade incrível de transformação, disrupção tecnológica, inteligência artificial e mudança constante. No meio do turbilhão: O que muda? O que é permanente?
Embora a contribuição teórica de Nonaka tenha ocorrido principalmente em uma outro época, com seu ápice quase 30 anos atrás, suas reflexões e seu modelo de conhecimento, ainda podem trazer contribuições extremamente relevantes. Em um mundo cada vez mais digital, as trocas tácitas e profundas não podem ser relegadas a um segundo plano. Acessar o Google ou ChatGPT não é sinônimo de adquirir conhecimento e transformar conhecimento individual em conhecimento organizacional. Inovar a partir da tecnologia e não a partir de profunda empatia com as necessidades do cliente não me parece uma receita de sucesso.
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1 aBelíssimo texto, Zé. Muitos pontinhos foram sendo ligados na minha cabeça enquanto ia lendo. Obrigado por compartilhar!
Consultor de Inteligência Estratégica Antecipativa | Foresight | Estrategista de Negócios e Inovação | Palestrante | Empreendedor
1 aMuito rico este material Claudio Terra! Principalmente quando você traz a importância do conhecimento e da construção coletiva.
Global Product Development VP at Whirlpool Corporation
1 aQue legal, Terra, não sabia que você havia conhecido o mago. Que bela recordação. A leitura de “The knowledge creating company” e de vários outros papers dele me influenciou muito, quase 20 anos atrás. Sim eu tenho pensado nas teorias dele quando reflito sobre AI, que acredito potencializa a Combinação mas não substitui o caráter humano das demais dimensões da espiral do Prof Nonaka, ao meu ver. Abraço
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1 aIncrível, Claudio Terra! Lembro que só conseguia me referir como Nonaka & Takeuchi haha, tamanha influência e impacto de The Knowledge-Creating Company na minha formação, carreira e vida. Imagino você conhecê-lo em um domingo no Japão! Lembrança gratificante. Valorizo muito seu artigo. E destaco 2 pontos - apenas dois para não me estender muito porque o considero realmente relevante. 1) As perguntas que fizeste no início do seu post. Percebo (e pode ser percepção míope exclusivamente minha) uma superficialidade e empobrecimento conceitual e técnico dos debates e práticas de aprendizagem e inovação nas corporações e mercado. Sempre bom cutucar. 2) Como os conceitos filosóficos do devir e da fluidez líquida (que tanto admiro) permeiam todo o seu texto sem ser professoral ou enfadonho, mas pragmático. "A realidade está sendo criada pelos indivíduos de forma contínua, e ela só existe a partir da interação entre o sujeito e o objeto. E a cada instante ela é diferente, assim como a água no leito de um rio nunca é a mesma. Da mesma maneira deve ser vista a estratégia empresarial. Os indivíduos devem se guiar menos por análises estáticas do presente e mais pela capacidade humana de criar novos futuros interessantes para a empresa."