A eterna crise do jornalismo, a inteligência artificial, os algoritmos, as redações se esvaziando e o que isso implica. E tem solução? Sim.
Um problema grave intrinsecamente ligado a evolução das tecnologias digitais: as novas gerações estão sendo blindadas e afastadas do jornalismo profissional.
Provavelmente, uma das indústrias mais afetadas pelo avanço implacável das tecnologias digitais foi, e ainda continua sendo, a da produção de conteúdo e notícias.
Desde o surgimento da internet e o advento da chamada internet 2.0, onde o leitor passou a ser também um produtor de conteúdo, entre outras definições e características marcantes, a distribuição de notícias e conteúdo tornou-se uma tarefa bastante complexa e difícil. Andrew Keen, autodenominado o anticristo do Vale do Silício e autor de livros como "A Internet Não é a Resposta" e "O Culto do Amador", juntamente com outros grandes nomes como Jaron Lanier e Nicholas Carr, já alertava sobre as implicações negativas da descentralização da produção de conteúdo. A ironia reside no fato de que o pai da internet, Tim Berners-Lee, desde o início imaginava a internet descentralizada como o mundo ideal, dando poder a todas as pessoas. O problema é que ele não considerou o pesadelo em que essa descentralização poderia se transformar.
Porém, é leviano culpar pura e simplesmente a tecnologia pela epidemia de fake news, pós-verdade, deep fake, polarização, algoritmos tendenciosos e o esvaziamento e sucateamento das redações profissionais.
Tudo o que vivemos hoje é consequência de uma rede super complexa de fatores ligados tanto a tecnologia quanto a nós mesmos. Afinal, uma tecnologia só pode trazer malefícios se nós a utilizarmos da maneira errada.
Antes de qualquer outra consideração, vale lembrar que jornalismo imparcial não existe. É utopia pura. Todo veículo de comunicação tem seus anseios, objetivos e vieses e isso naturalmente vai guiar sua linha editorial tanto em termos de posicionamento político quanto de valores éticos e morais (ou a ausência parcial ou total deles). Absolutamente todo veículo de comunicação, dos menores aos maiores, tem uma agenda.
Esses vieses, antes da internet 2.0 e das poderosíssimas redes sociais, ficavam limitados a círculos relativamente pequenos e cabia ao leitor filtrar e avaliar. Mas quando o leitor passou também a produzir conteúdo, os vieses literalmente se tornaram virais, afetando o julgamento de muito mais pessoas e com muito mais intensidade.
E as gerações mais jovens? Onde entram nisso? Basicamente, elas não entram. Ou ao menos não entram da forma que deveriam. Os jovens não consomem mais notícias. E isso se deve a muitos fatores interconectados. Hoje vivemos por muito mais tempo e isso, simplificando muito, gerou um fenômeno (inclusive estudado academicamente) de infantilização de adultos. A coisa dos 40 serem os novos 20 e assim por diante. É cada vez maior o número de pessoas que querem evitar qualquer tipo de responsabilidade. Aí entra a demora em sair da casa dos pais (também devido ao terrível cenário econômico), o imediatismo, a ansiedade generalizada, a cultura da gratificação instantânea fruto dos algoritmos das redes sociais, a construção de uma realidade virtual paralela, a edição cuidadosa da própria vida nas redes e, no final das contas, a consequente infantilização do consumo de notícias. As novas gerações consomem notícias de maneira passiva, esperando o que o algoritmo das redes vai entregar a elas baseado em seus interesses e suas bolhas de relacionamento. E para que elas cheguem para estas pessoas, as notícias precisam se mimetizar em “entretenimento” em uma espécie de novo jornalismo gonzo, o que se tornou quase uma regra. Se não é rápida, se não corrobora com minha linha de pensamento e se não me entretém, não é para mim.
As gerações anteriores tinham de ir atrás das notícias, literalmente. Tinham de ir à banca de jornais ou ligar a TV em seu noticiário predileto para entender o que estava acontecendo no mundo. Os sites também tinham esse papel. Hoje o site praticamente está morto. Os mais jovens jamais vão ir a barra de endereços do seu navegador e digitar nytimes.com, por exemplo. E sabemos que a briga entre redes sociais e meios de comunicação é longa e antiga. E ela está longe de ser resolvida. Os meios de comunicação precisam estar nas redes sociais pra serem vistos. Mas só serão vistos se o algoritmo decidir que aquele conteúdo é de agrado do leitor. Mesmo iniciativas como o Google News também sofrem com o mesmo problema. Ele só me mostra os assuntos que tenho interesse e coisas de minhas bolhas. Mas se eu quero uma opinião diferente ou algo que ainda não demonstrei ao algoritmo que tenho interesse, tenho de ser ativo na busca da informação.
Todo esse descolamento da realidade no mundo real também migrou para o mundo virtual, mundo que acho interessante chamar de pós-realidade paralela. Não à toa as pessoas aprenderam a se vender nas redes como algo que não são. Tudo é cuidadosamente editado. O grave é que essa edição da própria realidade também se tornou uma edição e manipulação da realidade a nossa volta e daqueles que nos acompanham das redes. É a viralização e o efeito de potencialização da pós-verdade agora na mão de qualquer um. Uma prova disso está bem diante de nós. Por incrível que pareça, o candidato a presidência da Argentina, Javier Milei, mesmo com suas sandices e postura caricata ( lembra do "entretenimento"? ) é preferência, surpreenda-se, entre os eleitores mais jovens. A BBC escreveu sobre esse fenômeno aqui: Tiktok e economia: como Geração Z virou o motor da campanha de Javier Milei na Argentina
As consequências estão aí para quem quiser abrir os olhos e ver. O melhor exemplo é o recente conflito no oriente médio. Na era da pós-verdade a arma mais poderosa no conflito é a opinião pública. E temos visto claramente uma guerra de narrativas e vieses, tanto dos dois lados do conflito quanto dos meios de comunicação dependendo de seus interesses e também de nossas bolhas de convivências nas redes.
Os algoritmos das redes trabalham justamente no sentido de blindar as pessoas de consumirem notícias. Mark Coddington e Seth Lewis, em um artigo interessantíssimo do Niemanlab, trazem um experimento que comprova o quanto o algoritmo, especificamente do Tik Tok, não distribui notícias aos usuários. Você pode lê-lo aqui: The news will not find you on TikTok
O pior de tudo isso é estarmos vivendo plenamente na era da pós verdade onde cada um acredita no que quiser acreditar. Não importa se é fato ou não. Junte a isso as tecnologias perigosíssimas de deep fake e geração tanto de imagens quanto textos com inteligência artificial e o caos está instalado.
Aqui vale um comentário importante sobre o uso de IA no jornalismo. Já sabemos que as tecnologias de IA, apesar do avanço vertiginoso, emulam todas as nossas tendências e comportamentos. Portanto, a IA também vem com um grau de todos os preconceitos e vieses negativos que ainda temos. O que não é de surpreender já que o combustível da IA é justamente o que nós escrevemos e, em um mundo onde cada um acredita no que quer e manipula tudo para seus próprios fins, a tecnologia de IA esta utilizando esse insumo distorcido para escrever.
A inteligência artificial, além de legítima oportunidade, é também um problema para a indústria da notícia. Os oportunistas de plantão tomaram a tecnologia de assalto. Um fato interessante é que, assim que o CHATGPT, por exemplo, se tornou onipresente nas manchetes, no dia seguinte já apareceram "especialistas" oferecendo cursos ou palestras pagas sobre o assunto. E, como já comentei, sabemos que a IA ainda tem seus problemas muitas vezes inventando fatos, delirando ou sendo orientada por fake news e coisas do tipo. A IA na produção de conteúdo pode ser uma ferramentas incrível de produtividade se utilizada do jeito certo e para as tarefas certas. Vale lembrar que o O Knight Center for Journalism in the Americas, iniciativa dos cursos de comunicação e mídia da universidade do Texas, está ministrando um curso online dedicado ao uso da IA nas redações. Aqui: Como Utilizar o ChatGPT e Outras Ferramentas de IA Generativa Nas Redações
Essa disseminação massiva de como utilizar a tecnologia por todo tipo de gente gera uma espécie de retroalimentação. Mais conteúdo produzido por IA de baixa qualidade servindo de insumo para mais conteúdo gerado pela própria I.A.
Mas, no final as contas, o que é exatamente a notícia? O resumo é que essa definição, paradoxalmente, deve vir do leitor e não do produtor de notícias. E, sem surpresa, a definição do que é notícia, depende muito de se o leitor se vê ou não naquela notícia. Coloque nessa conta a questão que já comentei aqui da bolha de "realidade" fabricada e também a questão do acreditar no que se quer acreditar e não necessariamente no que é fato.
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Um artigo que explica muito bem essa questão está também no Nieam Lab: What is news, anyway? Readers’ answers depend on how much they see people like themselves in the story
E, nessa definição de acordo com a perspectiva do leitor, entra novamente a questão do uso da inteligência artificial.
Os consumidores mais interessados em opinião ou conteúdo voltado especificamente para a sua comunidade tem menor tolerância ao envolvimento da IA na produção de notícias.
Enquanto isso, as pessoas que buscam satisfação informativa (leia-se gratificação, entretenimento e chancela de bolhas) são muito mais abertas à presença da IA no processo de notícias. Essa é uma das conclusões da interessante pesquisa conduzida pelo MDPI (Multidisciplinary Digital Publishing Institute) na Suíça. A pesquisa está aqui: Consumer Trust in AI–Human News Collaborative Continuum: Preferences and Influencing Factors by News Production Phases
Então, aparentemente estamos perdidos e não podemos confiar em mais nada e ninguém? Não necessariamente. Existem soluções.
O problema é que deixamos os problemas crescerem exponencialmente ao longo do tempo. Um dos grandes facilitadores dessa nova realidade distorcida é justamente a completa falta de responsabilização das redes sociais sobre o que nelas é publicado. Hoje, governos, principalmente na Europa, tentam legislar sobre o poder incalculável que as redes sociais adquiriram. Mas é uma luta de Davi contra Golias. As big techs tem todo o dinheiro do mundo e os melhores juristas que o dinheiro pode comprar a seu favor. Mas é uma luta que vale a pena ser lutada. Mas governos sozinhos pouco podem fazer, é preciso apoio da opinião pública, da educação e muito mais. E tudo isso leva tempo.
Curiosamente, Andrew Keen, citado anteriormente aqui, não é bem visto nos meios da tecnologia pelo fato de ser quase um tecno fóbico e ser muito duro e crítico em seus argumentos e apontamento de dedos. Mas é justamente dele, em seu livro How To Fix The Future, que vem ideias interessantíssimas no sentido de ajustar os ponteiros da sociedade diante das tecnologias que não param de surgir sem muito filtro, ética, método e freios. Uma leitura interessantíssima que recomendo fortemente. Resumindo muito, os pontos que podem nos colocar no caminho correto novamente são: Regulação, Inovação Competitiva, Responsabilidade Social, Escolha do trabalhados e do Consumidor e, ora vejam só, EDUCAÇÃO.
E o jornalismo? Acabou? Teremos de conviver com realidades paralelas para sempre? Não exatamente.
Tenho observado um fenômeno bastante interessante. Enquanto os grandes meios de comunicação definham e enfrentam muita dificuldade diante dos novos tempos, os jornais e rádios locais de cidades médias tem prosperado enormemente. Falo isso observando o cenário Brasil pois, em outro artigo que vale a leitura, do Nieman Lab, a que se conta é que o jornalismo local nos Estados Unidos, está morrendo também: Local newspapers are vanishing. How should we remember them?
Talvez o segredo do jornalismo local é justamente sua capacidade de falar sobre a comunidade específica onde seu leitor está. Ou seja, é onde o leitor se sente representado na notícia. E aí entra o papel importantíssimo do jornalismo de serviço como vagas de emprego, problemas na cidade, questões políticas locais etc.
Também tem o fato de que veículos menores tem muito mais agilidade e pouco a perder se adaptando aos novos meios como as redes sociais. Conseguem se adequar rapidamente. Trabalhando por anos em grandes redações, vi de perto a dificuldade que grandes empresas de mídia tiveram para tentar se mover para a produção de conteúdo digital com velocidade suficiente.
E no caso dos jornais locais, o algoritmo acaba sendo um aliado. Pense comigo. Eu consumo muito o conteúdo do NY Times e o Washington Post. Mesmo seguindo suas contas nas redes, eles pouco aparecem para mim nestas mesmas redes (recorro ao recurso pré-histórico de feed de RSS). E quanto menos aparecem, menos relevância para mim, segundo o algoritmo, eles têm. É um ciclo vicioso. Já um veículo regional está diretamente ligado ao lugar onde vivo. Essa informação, de minha cidade atual, é uma das coisas que alimenta o algoritmo. E em um cenário muito menos populoso das cidades médias e pequenas, isso acaba dando muito relevância para um conteúdo local e para a possibilidade de ele ser exibido para mim.
Eu acredito muito que o que pode salvar o jornalismo é justamente um movimento de volta ao regional em detrimento do global e do mundo hiper conectado. É um paradoxo enigmático.
Mas é preciso ter cuidado. Nem tudo são flores. Os veículos de comunicação de cidades medias e pequenas estão muito mais vulneráveis a atenderem interesses duvidosos e misturarem perigosamente o que os jornalistas mais antigos chamavam de Igreja e Estado. Houve uma época em que o que ditava grande parte da ética jornalística era justamente separar interesses comerciais de linhas editoriais. Hoje, em muitos lugares, ambos andam de mãos dadas sem vergonha alguma. E pelo fato dos veículos regionais estarem "longe demais das capitais", dificilmente algum tipo de movimento antiético, corrupção ou mesmo algo ilegal pode ser detectado facilmente.
Ao final de tudo, por mais que todo tipo de movimento, pós-verdade, tecnologia, ou seja lá o que for continuarem ameaçando o jornalismo sério, correto e, na medida do possível, transparente e ético, é essencial que ele continue lutando. Principalmente com o apoio de governos e opinião pública.
Diante de toda essa nova, complexa e dinâmica realidade, o bom jornalismo nunca foi tão importante para a sociedade.
E você? Consome jornalismo regional? Vê os jovens presos em bolhas e pouco expostos ao jornalismo profissional? Vê algum movimento interessante que possa desfazer esse nó? Conta pra mim, de preferência sem edição e sem filtro ;)
Head de Carreira FECAP | Top Voice | Consultor e Professor de MBA - FIA-USP e FECAP | Desenvolvimento de Liderança | Transição de Carreira | Mentoria | PCC - ICF |
1 aquantas informações interessantes Guilhes Damian
Corporate Communications and Public Relations Director
1 aGuilhes. Esse seu artigo é sensacional!!!!!!