Eu fui camelô!
Quem me conhece hoje com um carreira construída, morando num bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro e fazendo excelentes viagens sequer imagina: É verdade! Eu fui camelô!
Na adolescência e também durante a faculdade, trabalhei vendendo refrigerantes com meu pai numa feira de roupas aos finais de semana. O verão era a época das vacas gordas. Teve um ano que vendi 24 engradados de água. Uau! Foi o auge! Em outras épocas do ano, a gente só rezava para que não chovesse e a gente pudesse vender o mínimo para pagar as contas. Sempre que eu subia a ladeira de paralelepípedo lá de casa com o isopor amarrado com elásticos num carrinho, fazia tanto barulho que chamava atenção de todos. Um vizinho sempre gritava pela janela: "Lá vai a formiguinha". E eu nunca sabia se era um incentivo ou uma zoação. Teve também a época das mini-pizzas, das quentinhas e do suco natural.
Eu sentia um pouco de vergonha. Era uma realidade muito diferente dos meus colegas da Universidade Federal, que aproveitavam o final de semana para ir ao cinema ou conversar pelo ICQ, enquanto eu sequer tinha um computador para fazer os projetos e ficava à margem daquela socialização virtual.
Parecia que eu estava insistindo em estar em um lugar que não era para mim.
Meus pais sempre fizeram todo o possível e se apertaram para que eu e meu irmão tivéssemos um bom nível de educação. Por muitos anos estudávamos na mesma turma e comprávamos um livro só para os dois. Era um revezamento. Até que chegou o tempo que minha mãe precisou ir até a escola pedir uma bolsa, justificando que eu tinha excelentes notas. Meus pais não tinham mais condição de pagar escola para duas crianças.
No último ano do meu 2º grau em um curso técnico federal em alimentos que passei em concurso (nem era o que eu gostava apesar do meu bom desempenho), minha mãe disse que eu só poderia prestar vestibular no ano seguinte. Meus pais não tinham como pagar a inscrição no exame. Eu queria muito fazer na mesma época que os meus colegas de turma, sem ficar pra trás. Então juntei uns documentos e fui lá naquela fila de comprovação de pobreza para conseguir a isenção da taxa. Estudei em casa sozinha e fiz todas as provas somente para uma instituição. Um dia desci o morro cedinho para comprar o jornal com o resultado. Passeeeeeii! Na rebarba das últimas vagas. O motorista da kombi foi o primeiro a saber. Meu irmão saiu contando para os amigos da rua, que sequer tinham a dimensão do que aquilo significava. Muitos dos nossos amigos de infância iam seguir a vida como motoristas de kombi, exército ou balconista de loja. Sem desmerecer essas funções, mas desde pequena eu adorava brincar de escritório e só queria continuar estudando para ter uma profissão ligada a desenho ou comunicação. para terem noção, em um dia das crianças eu não pedi uma boneca. Pedi uma prancheta de desenho daquelas grandes com plástico verde.
Eu mal sabia que teria muitas dificuldades para me formar em um curso superior de horário integral. Naquela época as instituições federais viviam um momento de trevas para estudantes carentes. As bolsas haviam sido cortadas. O bandejão, fechado. Algumas vezes eu não tinha dinheiro de passagem para chegar ao campus de aula. Então usava o jaleco do 2º grau e contava com a boa vontade do motorista do ônibus em não exigir uma carteirinha da escola. Não existia ainda passe de transporte gratuito para universitários. Meu pai fez um acordo no trabalho para pegar o FGTS e meu irmão contribuiu com um pouco mais para comprar um computador para mim. Fui a primeira a fazer estágio na turma. Precisava bancar passagem, alimentação, materiais caríssimos de fotografia. Fiz 4 estágios, 2 simultâneos.
Ainda assim, eu tinha alguma dose de privilégios. Eu era uma jovem branca.
Nós tínhamos um único colega preto numa turma de 30 estudantes, refugiado de Angola, que foi jogado no curso de Design, porque não tinha vaga na Arquitetura, curso que ele fazia em seu país. Ele abandonou o curso no 2º período.
Somente quando eu estava me formando é que as bolsas retornaram. Minha vizinha conseguiu fazer um curso superior com um pouco menos de obstáculos. Ainda assim estávamos longe de ter debates sobre meritocracia, cotas e diversidade. Por isso acho incrível termos hoje muitas medidas de apoio para que os jovens pobres alcancem uma vida melhor por meio do estudo. Só não podemos esquecer que, ainda assim, o caminho percorrido por eles é muito difícil.
Não vou dizer que imaginava onde eu chegaria. Eu até sonhava alto. Alto para a minha origem. Só que não eram sonhos bem definidos. Tudo parecia inalcançável. Eu tinha objetivos genéricos como melhorar de vida, construir uma carreira, ter estabilidade e independência financeira. Qualidade de vida nem entrava na lista. A única certeza que eu tinha é que me dedicar ao estudo e ao trabalho era a minha única chance de chegar lá. O plano para isso também não era muito específico: aproveitar todas as oportunidades que surgissem e me esforçar ao máximo para entregar o meu melhor onde quer que eu estivesse.
Depois de formada, vieram outros obstáculos. Certa vez em meu primeiro emprego, sugeri a minha chefe que financiasse um curso para mim, o mesmo que havia sido oferecido e rejeitado por uma colega.
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A resposta foi: "Aqui não é empresa de caridade". Fiquei arrasada!
Após esses primeiros anos como designer, me apaixonei por Branding e queria muito trabalhar com isso. Achei que o caminho seria uma pós. Só existia em São Paulo e custava o dobro do meu salário. A exemplo da minha mãe, combinei com o coordenador do curso que, se eu conseguisse o número mínimo de alunos para formar uma turma no Rio, eu teria uma bolsa. Não rolou. Poucos se interessavam por pós, muito menos por Branding. Foi frustrante!
Passou um tempo e acabei sendo indicada para uma vaga por um professor da faculdade. Não imaginava que ele se lembraria de mim. Fruto da minha dedicação quando ainda era estudante. Eu só queria um novo lugar para trabalhar, em Branding ou não, pois passava dias consecutivos até a madrugada no escritório, com gestores achando isso normal e saudável. Nessa época qualidade de vida começou a fazer parte das minhas metas, porém não podia me demitir, já que os boletos continuavam chegando. Fui a última a ser contactada para a entrevista. Concorri com cerca de 15 pessoas, virei noite fazendo um portfólio "diferentão" e passei. Lá estava eu, coincidentemente, trabalhando numa área de Branding. E melhor! Numa das maiores empresas do país.
Aí sim: um verdadeiro auge. Aquele "cheguei lá"!
Me desenvolvi, cresci, me especializei pela experiência, viajei de avião pela primeira vez a trabalho, toquei projetos globais, virei referência na área e até dei cursos.
Hoje minha vida e carreira mudaram. O trabalho e a estabilidade me permitiram pagar por novos passos de evolução. Cursei Engenharia de Produção, fiz dois intercâmbios e agora estou na fase 2 da minha vida profissional. Me reinventei: deixei o design gráfico, migrei pra UX. E sigo me esforçando, estudando e crescendo em busca de um novo "cheguei lá".
Meu irmão seguiu por caminhos diferentes e também "chegou lá". Bancou seus estudos de nível superior. Fez tecnólogo, se tornou bacharel em Engenharia, passou em um concurso, comprou uma casa... e os planos continuam. Nossos pais estão muito orgulhosos. Especialmente minha mãe que chegou a começar uma faculdade de Letras, mas teve que abandonar para trabalhar.
Nossas histórias não são diferentes ou melhores que muitas outras. Conheço algumas parecidas. Infelizmente não tantas como gostaria. Nem todas estão visíveis para inspirar os jovens com sonhos que parecem distantes. E nem todas são encontradas em qualquer ambiente corporativo. Somente nos mais diversos. Por isso é importante que as empresas pensem em diversidade e criem políticas inclusivas. Uma das coisas que me deixou feliz ao ser contratada onde estou hoje foi ter encontrado no escritório mais pessoas pretas e moradoras de diversos bairros, não apenas da Zona Sul como era comum nos lugares em que trabalhei. Lá encontrei mais histórias como a minha.
Porém, mais do que o posicionamento das empresas, é preciso que cada profissional, individualmente, tenha empatia e consciência das jornadas um pouco mais "complicadas" de alguns de seus colegas para chegar até ali.
E que, principalmente os que tiveram privilégios, reflitam de verdade sobre isso.
Que encarem a importância de estudar sem preguiça, pois muitos precisam largar os estudos para ter comida na mesa. Que façam um bom uso do inglês que aprenderam quando crianças sem serem arrogantes com os colegas que não tem fluência e contribuindo com o mercado através da tradução de artigos para o português. Que valorizem estar na carreira que escolheram, porque nem todos poderão fazer o curso com o qual se identificam. Que realmente valorizem "ter um trabalho", especialmente em um país com milhares de desempregados numa época de recessão ocasionada pela pandemia. Que, mesmo sem a pressão de contas para pagar e com a facilidade para se recolocar, dêem o seu melhor sem corpo-mole, sem se demitir ou fugir para uma outra empresa no primeiro momento de tédio ou desconforto profissional. Existem pessoas brilhantes por aí que gostariam muito de estar na sua vaga para alcançar um futuro inimaginável. Elas só não tiveram a mesma preparação que você ao longo da vida.
DfAM. Pesquisador e Designer de Produto na Área Médica | Especialista em Fabricação Digital, Eletrônica e Montagem de Equipamentos de Monitoramento
2 aQuanta força no que você relata e faz. Obrigado por compartilhar.
Creative Director at Visualscribing.com
2 aQue história de sucesso maneira, Nibia. Impressionante!
Parabéns pela trajetória e reflexão, Nibia!
Arquiteto
2 aQue história de vida legal! Não sabia disso Nibia, muito valoroso!
Modelista de Roupas Afetivas & Criativas | Operadora de CAD
2 aEu gosto muito das nossas conversas sobre carreira e mesmo sabendo da sua trajetória pessoalmente, que máximo ver aqui registrado a sua história!