Eu não gosto de me explicar
Tomie Ohtake | Pinturas, quase todas, sem título para o espectador imaginar e participar

Eu não gosto de me explicar

Seja amigável e enigmático, e quando perguntarem a respeito da história por trás de uma tela, diga: “Não posso revelar.” Mas, pelo amor de Deus, dê a entender que há uma história. É a história que eles estão comprando.

Um artista talentoso e bonitão

O trecho acima é do conto Detalhes de Cassandra, do livro Alerta de risco de Neil Gaiman. Aqui o autor fala de um artista que, segundo seus marchands, é um cara talentoso e bonitão. Há no conto um pouco dos bastidores de como funciona as galerias de artes, os artistas e os marchands que tentam vender o que produzimos. Fala também de como as galerias, museus e os próprios artistas inventam histórias para encantar o público, ou possíveis compradores. Claro que é apenas um conto e nesta narração curta não dá para falar de todo esse processo. Mas dá para termos uma pálida ideia de como tudo funciona.  Você provavelmente já se deparou com alguma exposição em que os títulos são enormes, complicados e filosóficos demais. Você lê o título e pensa: este artista é inteligente pra caralho. O cara é bom mesmo. O mesmo acontece com alguns títulos de quadros que o artista muitas vezes, para encobrir alguma deficiência, apela para as palavras difíceis e intraduzíveis.

As pessoas do mundo das artes dizem bobagens

Uma amiga minha acha que tudo que fazemos como arte tem que ter uma explicação. Chega até a ironizar e fazer brincadeiras com aqueles artistas que não têm nada a dizer. O que ele tem a dizer, em minha opinião, está em sua arte e não no que ele escreve sobre ela. No livro Isto é arte?, de Will Gompertz, que já citei no meu artigo Você é artista ou irmã de caridade? O autor nos diz no capítulo 11. Neoplasticismo, página 203: Algumas vezes, aqueles de nós envolvidos no mundo das artes falamos e escrevemos dispares pretensiosos. É um fato da vida: estrelas do rock destroem hotéis, esportistas se machucam; as pessoas do mundo das artes dizem bobagens. Entre os principais culpados estão os curadores e museus, que têm uma tendência a escrever passagens algo pomposa e inteiramente incompreensíveis em guias de exposições e painéis de textos de galerias. Na melhor das hipóteses, o que eles dizem sobre “justaposições rudimentares” e “práxis pedagógicas” desconcerta visitantes; na pior, humilha, confunde e afasta as pessoas da arte para sempre. Nada bom. Em minha experiência, porém, os curadores não estão tentando ser deliberadamente obscuros; eles estão sendo envolvidos pelo medo.

Provavelmente essas pessoas não tem o que fazer e, inventar termos, padrões e normas, são os seus passatempos prediletos.

Vamos ouvir o que Zé Ramalho e Zeca Baleiro têm a nos dizer sobre a bienal
           Mandriam ganha medalha de ouro por confusão ao tentar explicar sua própria arte abstrata

O artista deve ser livre para conduzir sua obra da maneira que achar melhor. Se ele achar que não deve explicar nada, isso tem que ser respeitado. Se ele achar que deve explicação sobre sua arte, isso também deve ser respeitado. O que eu não concordo é com esse excesso de pseudo-intelectualismo que vemos por aí.

           Retornando ao livro de Will Gompertz, ele nos conta que apesar de determinados artistas passarem a vida eliminando detalhes, principalmente na arte abstrata, esses são os mais propensos a usar uma linguagem empolada e imprecisa para descrever seu trabalho. Malevich falava de naves espaciais e ocorrências cósmicas. Kandinsky, sobre ouvir o som de suas pinturas. Até Tatlin, tão pé no chão, discorria sobre a materialidade do volume e a tensão gerada pelo espaço tridimensional. Mas a medalha de ouro em confusão ao tentar explicar sua própria arte abstrata vai para o pintor holandês Piet Mondrian (1872-1944).

Não tem explicação

           Quando entrei na faculdade, pensava que o curso de arte serviria para ampliar nossos horizontes (termo bastante usado) e nos libertar de nossos preconceitos, para que pudéssemos fazer uma arte original e livre. Nenhuma coisa nem outra. A faculdade quer que façamos nossa arte, claro, no entanto temos que explica-la, rotulá-la e justificá-la se quisermos viver de arte e como artistas, aqui e lá fora. Praticamente somos obrigados a isso, do contrário temos que correr os ricos que isso implica.

           Tenho a sensação de que o que veio do surrealismo pra cá não valeu de nada. Uma de nossas artistas mais conceituadas, Tomie Ohtake, foi muito criticada por um de nossos professores e alunos, em um dos semestres, por não saber, ou não querer explicar suas obras. Quando perguntada a esta artista sobre seus trabalhos, dizia: Só pinta, né. Só pinta.

           Que sorte ela tem, ou teve: artista conceituada, com trabalhos maravilhosos e para completar, tem seu próprio instituto. Ou seja: ela nunca precisou explicar nada a ninguém. Que inveja! Ela conseguiu passar pelo mundo das artes sem justificar nada e sem por títulos em seus trabalhos, outra escolha sua. Pra quê? Dizia ela. Quando você coloca título, você induz o observador a sua própria ideia e proposta.

           Porém para nós, simples mortais, se quisermos expor em algum lugar, temos que nos explicar. Não chega nos explicarmos para nossos filhos, para nossos país, para nossa (o) esposa(o), para nossos padrões, para a receita federal. Agora temos que explicar o inexplicável: a arte.

           O que tento expor e criticar aqui, não é simplesmente implicância de minha parte. Vou muito às exposições e o que vejo quase sempre são belos discursos sobre artistas e suas obras. Na maioria das vezes estes discursos supera o que o artista faz e expõe. Haja vista alguns artistas das bienais.

           Então posso deduzir que não é preciso fazer um bom trabalho de arte, aliás, não é preciso nem fazer arte: basta escrever, ou contratar alguém para falar da arte e seu artista.

           Para concluir, pois não quero me estender a ponto de ficar chato, gostaria de terminar com uma história que contam sobre Picasso. Se é verdade ou não, não posso afirmar. Dizem que, numa exposição sua alguém perguntou a ele o que ele queria dizer com determinada pintura. Ele respondeu: se eu quisesse dizer alguma coisa, não pintaria; escreveria.

Explicando Guernica

Acima eu citei Picasso sobre a recusa em explicar uma de suas obras. No entanto Guernica tem uma história. Tem uma explicação e esta, como alerta, deve ser explicada à humanidade para que absurdos como este não ocorram mais. Não creio que seja necessário eu discorrer sobre esta tragédia.

           Há trabalhos que tem uma história. Há trabalhos que ganham novo sentido quando explicados. Estes trabalhos devem ser coerentes e não devem se perder em termos acadêmicos que ninguém compreende. A arte deve ser feita pra todos. Para que todos possam usufruir, se deleitar e compartilhar, não para meia dúzia de pessoas metidas a besta, como diz minha mãe.

Acreditamos na distância entre nós

A propósito do título deste artigo, eu me apropriei (termo muito usado hoje em dia em arte) de uma música que gosto muito do Capital inicial chamada Independência, de 1987. Deleite-se com ela.



Rubens Cavalcanti da Silva

Artista plástico, fotógrafo e poeta. Tem três livros publicados: Crua como veio ao mundo e outros poemas (Clube de Autores), Nenhuma poesia e Consciência líquida (estes dois últimos pela Amazon). Atualmente faz pós-graduação em Arteterapia na FATEA (Faculdades Integradas Tereza D'Ávila), Graduou-se em Educação artística pela FAINC (Faculdades Integradas Coração de Jesus), em Santo André/SP. Estudou Letras (incompleto) na UNIESP, em São Caetano do Sul/SP. Participa de várias exposições no Brasil e no Exterior. Trabalha como arte-educador elaborando projetos voltados para o meio ambiente, sustentabilidade e inclusão de jovens no mercado de trabalho e 3ª idade.

Seus trabalhos estão nos seguintes acervos: Biblioteca Nacional do Rio de janeiro/RJ, Pinacoteca Aldo Locatelli/Porto Alegre/RS, Museu Barão de Mauá, Mauá/SP e Pinacoteca do Estado de São Paulo/SP

Oficina de monotipia no YouTube

Meu primeiro romance pela Amazon (clique na imagem ou no logo abaixo)


Entre para ver ou adicionar um comentário

Outros artigos de rubens cavalcanti da silva

  • Quem precisa de guerras?

    Quem precisa de guerras?

    Nunca quis se soldado Quando eu era criança, numa das conversas que ouvi entre meu pai e alguns amigos, ele dizia: este…

  • Sobre a Guerra

    Sobre a Guerra

    Nos dias 06 de agosto e 09 de agosto de 1945, na Segunda Guerra Mundial, os EAU lançaram em Hiroshima e Nagazaki…

  • Autorretrato ou selfie

    Autorretrato ou selfie

    Eu também quero passar pra história Em toda a história da arte, mas precisamente na pintura, os artistas sempre se…

  • Próximo Lance

    Próximo Lance

    Uma exposição por um bilhete de Metrô Por mais que não queiramos admitir, a arte sempre foi e sempre será elitista. As…

  • Van Gogh vai cinema

    Van Gogh vai cinema

    Um papo sobre arte, ou não Gosto, em minhas oficinas de arte, de conversar com meus alunos descontraidamente e falar de…

  • uma exposição onde só entra gente bonita

    uma exposição onde só entra gente bonita

    Na arte não se inova, isso acontece em uma indústria. A arte não é nem criativa nem inovadora.

    2 comentários
  • Hoje vou falar do que me incomoda

    Hoje vou falar do que me incomoda

    O grande escritor norte americano Ray Bradbury, diz que mais ou menos isso: “se você quer escrever bem e ser…

    1 comentário
  • Arte Verde

    Arte Verde

    Em 18 de maio de 2011, entrou em vigor, em São Paulo, a lei de Nº 15.374 que proibia o uso de sacolas plásticas nos…

    1 comentário
  • Maquiar sua Barbie é muito importante

    Maquiar sua Barbie é muito importante

    Dia desses minha mulher ficou indignada pois, querendo ajuda na cozinha, pediu auxilio para nossa filha e ela se…

    4 comentários
  • Meu pai é artista; ele não trabalha

    Meu pai é artista; ele não trabalha

    Não sei se é pratica comum em outros países, ou outras culturas achar que artista não trabalha. Aqui, no Brasil…

    2 comentários

Outras pessoas também visualizaram

Conferir tópicos