Faça como Boechat

Sempre que tragédias como a de ontem inundam os telejornais, nosso coração fica constrangido: vem uma avalanche que traz o medo da morte, a impotência, a compaixão, a confusão da mente, a dúvida sobre o amanhã. A partida do Boechat, tão às tontas e melando um almoço com sua “doce esposa” e duas filhas ainda pequenas, pegou a gente brutalmente tal qual um soco firme no estômago.

Depois de enxugar as lágrimas, chegam sempre as reflexões: uma delas dá conta do quanto a vida é urgente, traiçoeira e imprevisível; a outra diz que nos restam poucos heróis. É tempo de extinção, de carência, de lacuna dessa gente que força o nosso mundo a girar com sua fibra e presença.

Se legado é o que ainda vive depois que a gente morre, convoco você, que não quis ligar o rádio hoje pra não sentir dor, a ser como o Boechat. Sim, porque a maior malcriação que podemos praticar com a morte é driblá-la, fazendo aquilo que é mais incrível em alguém se manter vivo, aceso, perene. A gente tá aqui pra fazer, dessa trajetória que findou sem aviso, um mantra pessoal, uma filosofia de bem-viver.

Mãos a obra, meus caros: façam como Boechat, que declarava o amor à família da forma mais bonita, honesta, inteira e cafona. Reinventem-se nos seus trabalhos, e façam dos seus “palcos” um lugar em que os outros se sintam mais seguros e representados - ele fazia assim no rádio. Concordando ou discordando, fazendo chamamento pro debate, criem força e criem voz pra quem, ao nosso redor, está se sentindo invisível ou espremido. Digam a verdade, façam dela seus estandartes, não durmam com o barulho do que não é justo, do que não é fruto da equidade, do que é absurdo e desaforado.

Sejam acessíveis, assim como ele, que dava seu celular aos ouvintes. Que defendia a classe caminhoneira e os taxistas com afinco e empatia. Sejam leves, espalhando humor, causando o riso, fazendo chacota de si mesmos, olhando o mundo de forma mais fértil, adoidada e feliz. Quebrem regras, desafiem as normas, assim como Boechat fazia com a programação da rádio quando a nossa população precisava dele por um bocado a mais de minutagem, alento e pensamento em uma manhã mais cinza ou turbulenta.

Tenham orgulho de suas origens assim como ele, que saudava "São Sebastião, do Rio de Janeiro", todo santo dia. Sejam centelha de Deus - e olhem lá que ele era ateu! Carreguem de pouco peso as suas vidas, afastem-se da ostentação vazia - ele andava até 2014 num Twingo 2001, sabiam? Depois, desmanchou o carro, transformando-o em vários objetos, como uma cadeira, por exemplo, doando-o a um artista plástico. Comprou outro Twingo do mesmo ano pouco depois, andava em garupa de moto, não tinha cerimônias pra chegar aos lugares em que queria estar.

Usem seus dons e coloquem-nos a serviço, assim como ele fazia com as palavras, enfileirando-as de maneira tão precisa, cirúrgica e oportuna. Briguem pelo conforto do seu povo com unhas, dentes, energia, vigor, decisão. Sejam imparáveis, incansáveis, amigos, íntegros, amorosos.

Hoje cedo, li textos daqueles que cortam a carne abordando como a morte pode chegar em diferentes enredos, mas com exata e similar agudez. Que a morte é a conclusão óbvia da vida, mas que a gente ignora essa premissa, e vive na anestesia, sem questionar essa cilada. Com gente como o Boechat vivendo à potência máxima, a gente não deveria andar por aí, morrendo em vida, perdendo a chance de marcar, mudar e servir.

Só de raiva da morte, rezo para que o legado desse camarada tão genial sirva de escola e exemplo pra gente ‘tocar o barco’. Vou tocar o meu por aqui, prometo.