Faça o bem independente de qualquer coisa
Eu nasci numa conservadora e tradicional família brasileira. Nunca soube de algum parente que fosse gay, usasse drogas ou tivesse sido preso, por exemplo. Aparentemente, minha família toda, entre tantos tios, tias e dezenas de primos, viveu sempre nas mil maravilhas e dentro do "padrão".
Quando era bem pequeno lembro de ter uma vida bastante confortável com meu pai trabalhando como bancário. Dessa época as únicas lembranças tristes que tenho são a perda da minha irmã e as descobertas de alguns problemas de saúde da minha mãe. Mas parece que conforme eu ia crescendo as coisas iam ficando mais difíceis. Foram várias crises financeiras e semanas e mais semanas em hospitais. O importante é que depois tudo deu certo e, entre altos e baixos, fomos e somos felizes. Meus pais são, sem dúvida, as pessoas que mais admiro e me inspiram.
Pra entender como eu não me tornei mais uma pessoa que seguiu as ideologias da família Tellis, por parte da minha mãe, ou da família Pereira, por parte do meu pai, preciso contar que estudei a minha vida toda em escolas públicas e comecei a trabalhar aos 18 anos sabendo que se quisesse ter ensino superior precisaria pagar meus próprios estudos. Meus pais não têm formação acadêmica.
Entrei numa universidade particular em 2010 para cursar jornalismo depois de não ter passado numa instituição pública. Saía de casa às sete da manhã, pegava dois ônibus pra entrar no trabalho às nove e sair às cinco da tarde; depois ia andando pra faculdade e chegava em casa de novo só perto de meia-noite. Nessa época eu trabalhava, inclusive, nos finais de semana por ser vendedor numa loja de shopping. Pra pagar a faculdade cheguei a trabalhar em quatro lugares ao mesmo tempo: como estagiário de um jornal, como locutor numa rádio, como atendente numa loja de assistência técnica de celular e como garçom num restaurante. Ainda assim, tive que trancar o curso por um ano por não ter dinheiro pra pagar a mensalidade. Numas das tardes que saí do trabalho e fui pra faculdade andando sofri duas tentativas de assalto seguidas: primeiro um grupo de meninos de rua me cercou e tentou levar meu celular e depois um homem que ofereceu ajuda pra me livrar desse grupo de garotos também agiu de má fé, me levou para um lugar desconhecido e se eu não tivesse fugido por um momento de distração dele, talvez o fim desse episódio tivesse sido diferente.
Na minha vida toda sempre vi meus parentes julgando drogados, fazendo piadas racistas e homofóbicas, votando em partidos de direita e defendendo políticos com ideologias conservadoras.
Hoje, aos 25 anos, eu sou independente, moro sozinho, pago minhas próprias contas, tenho um carro pago na garagem e, comparado a maioria das pessoas da minha idade, sou bem sucedido profissionalmente. Tenho orgulho de dizer que conquistei tudo isso sozinho e com o suor do meu trabalho.
Eu até teria alguns motivos pra acreditar em meritocracia ou sair por aí fazendo discursos de ódio gratuitos. Eu poderia dizer que quem quer estudar deve trabalhar e pagar sua faculdade. Podia dizer que esses adolescentes que estão na rua são todos vagabundos e que bandido bom é bandido morto. Podia concordar que um adolescente que supostamente tentou furtar uma bicicleta mereceu ser torturado e ter a testa tatuada pra mostrar pra sempre pra todo mundo um erro que cometeu. Mas eu mesmo já cometi vários erros. É por isso que eu não posso e não consigo. Seria puro egoismo.
Eu sei que, apesar das situações difíceis pelas quais eu e minha família passamos, nós somos muito privilegiados e não passamos nem a metade dos problemas que a maioria das famílias brasileiras passam. Eu nasci e sempre morei em boas casas, tenho psicólogos, empresários, bancários e policiais na minha família, não vi ninguém sendo morto por uma bala perdida na minha rua, não sou negro, não sofro de dependência química, não sou mulher, não estou em situação de rua e não sofro com tantos outros problemas que a maioria dos brasileiros sofrem.
Invés de julgar e não ter esperança no ser humano, eu prefiro pelo menos tentar tornar as coisas mais fáceis pra quem não teve e não vai ter as mesmas oportunidades que eu; prefiro explicar pra minha mãe como funciona a transexualidade e como pessoas morrem espancadas na rua tentando serem aceitas; prefiro tentar abrir a cabeça e os olhos do meu pai sobre o grupo de políticos mentirosos e corruptos que ele votou e defendeu; prefiro divulgar que um dependente químico precisa de ajuda e tratamento e não merece ser morto por um trator que quer deixar a cidade mais bonita e limpa; prefiro apoiar causas que vão dar oportunidades pros negros, mulheres, gays, trans, deficientes e tantas outros grupos; prefiro abaixar o vidro do meu carro, dar atenção para um morador de rua e ver o sorriso no rosto dele toda vez que me vê chegando no sinal; prefiro sentir uma coisa incrível ao ouvir que não tem problema eu não ter uma moedinha pra ajudar ele porque "o que importa é nossa amizade, parça". Na verdade, isso não é nem questão de preferir. Essa é só minha obrigação!
Até quando o ódio vai tomar conta das pessoas? Até quando vamos ter representantes que usam a meritocracia como desculpa pra manter a desigualdade? Até quando vamos ter no poder políticos defendendo tortura e disseminando preconceito? Até quando vamos viver num mundo em que os ricos só pensam em ter cada vez mais dinheiro e poder, enquanto pessoas passam fome, morrem em hospitais e não têm seus direitos sendo respeitados? Até quando esse mundo doente vai sobreviver?
Agora mais do que nunca a ordem é ajudar o próximo e espalhar o amor. Só o amor vai curar esse mundo. Só o amor!