A face invisível do sistema prisional: um chamado urgente à ação
Uma pesquisa encomendada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), intitulada "Letalidade prisional: uma questão de justiça e saúde pública", lança luz sobre os inquietantes problemas de saúde e ameaças à vida presentes no sistema penitenciário brasileiro, o estudo revela, de forma contundente, que a letalidade é uma possibilidade real para aqueles que se encontram sob a custódia estatal, isto é, os detentos e detentas que cometeram crimes. A taxa de detecção de tuberculose nas prisões é alarmantemente 30 vezes maior do que na população em liberdade, e o risco de morte por caquexia é assustadoramente 1.350% maior entre os indivíduos encarcerados do que na população em geral.
O relatório, fruto de um esforço conjunto das coordenadoras acadêmicas Maíra Rocha Machado, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e Natália Pires de Vasconcelos, do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), expõe a realidade dos espaços de privação de liberdade no Brasil: um ambiente marcado por altos índices de mortalidade, escassa investigação e registro negligente dos óbitos, ausência de responsabilização e reparação. Mesmo após a liberação, os efeitos nefastos da passagem pelo cárcere persistem. O tempo médio de vida das pessoas após a saída da prisão é de apenas 548 dias, e 28% dessas mortes ocorrem em eventos violentos.
Durante o Seminário de Pesquisas Empíricas Aplicadas a Políticas Judiciárias, promovido pelo CNJ e transmitido pelo canal do órgão no YouTube, o juiz auxiliar da Presidência Luís Lanfredi, responsável também pela coordenação do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF) do CNJ, destacou a vulnerabilidade das pessoas sob custódia e os danos infligidos a elas no ambiente prisional, é incontestável a letalidade do sistema prisional, não apenas no que tange ao risco de vida, mas também na sua capacidade de desumanizar o indivíduo.
O secretário Especial de Programas, Pesquisas e Gestão Estratégica do CNJ, Ricardo Fioreze, também participou do seminário e enfatizou a importância estratégica da pesquisa, que busca embasar as políticas judiciárias por meio de abordagens empíricas. Os estudos permitem a aplicação do conhecimento acadêmico e científico por aqueles diretamente envolvidos na atividade jurisdicional, no entanto, a pesquisa não deve se restringir à teoria ou doutrina, mas deve também propor aperfeiçoamentos nas políticas judiciárias.
O relatório do CNJ busca detalhar a gravidade dos problemas que assolam a gestão carcerária e socioeducativa no Brasil e aponta para a subnotificação de mortes, destacando a necessidade de aprimoramento na administração penitenciária, sobretudo no que diz respeito à oferta de serviços de saúde para aqueles sob custódia estatal. Dentre as 36 providências recomendadas no documento, destaca-se a urgência de enfrentar e superar violações graves e sistemáticas dos direitos humanos por meio de ações coordenadas, com ênfase na mobilização de juízes, juízas e tribunais para garantir direitos e adotar medidas estratégicas.
As pesquisadoras ressaltaram, na apresentação dos dados, as causas da letalidade prisional decorrentes de doenças como tuberculose, sífilis, suicídios e outras mortes violentas. Estar encarcerado agrava os indicadores de saúde a longo prazo, acelerando o envelhecimento precoce das pessoas. Nesse contexto, as chamadas mortes naturais são, na verdade, resultado de um processo prolongado e doloroso de deterioração, negligência assistencial, definhamento e óbito. Dos óbitos ocorridos nas prisões e analisados pela pesquisa, 62% foram causados por insuficiência cardíaca, sepse, pneumonia ou tuberculose. Asfixia mecânica, estrangulamento, sufocação indireta e outras formas de asfixia representam 15% dos casos, enquanto mortes por armas de fogo, agressões com objetos cortantes ou contundentes dentro das unidades prisionais, bem como enforcamento indireto, correspondem a 25% do total.
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A equipe de pesquisa enfrentou desafios ao lidar com problemas comuns na comunicação e registro dos óbitos, na garantia de direitos dos indivíduos sob custódia e de seus familiares, além da produção de estatísticas confiáveis sobre mortes em estabelecimentos prisionais, hospitais psiquiátricos ou durante saídas temporárias. O relatório aponta a inexistência ou ineficácia no controle de informações sobre mortes em instituições de custódia e violações dos direitos humanos, muitas das quais resultantes da violência estatal ou da precariedade das ações de promoção da saúde. Essa face invisível e extremamente dramática do estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro, declarado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2015, revela-se como uma triste realidade.
Durante o debate, a juíza auxiliar da Presidência do CNJ, Karen Luise Vilanova Batista de Souza, destacou a sensibilidade da equipe de pesquisa ao trazer relatos de histórias com as quais entraram em contato. A magistrada salientou que tais relatos ilustram a ausência de números, certidões de óbito e informações sobre as pessoas privadas de liberdade que perderam suas vidas dentro ou fora das prisões. Ela também ressaltou a questão de gênero das pessoas falecidas no ambiente prisional, indicando que 1,7% delas eram do sexo feminino e mais 1,7% correspondiam a outros gêneros não especificados, como pessoas trans, travestis e indivíduos LGBTQIA+, esses números semelhantes, apesar da população feminina ser substancialmente maior, demonstram a extrema vulnerabilidade desses sujeitos com identidades diversas dentro do sistema prisional, representando um alerta preocupante.
Outro ponto destacado pela juíza Karen refere-se às divergências em relação à questão racial. As informações contidas nos registros desses indivíduos durante as investigações policiais, processos judiciais e execução penal não estão alinhadas com a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Além disso, não é possível traçar o perfil racial das pessoas falecidas, mesmo que a maioria dos encarcerados no país seja negra ou parda. Essa situação demonstra a negligência do Estado não apenas em relação aos dados, mas também aos próprios indivíduos, refletindo um acúmulo de omissões lamentável.
Durante sua intervenção, a debatedora Valdirene Daufemback, psicóloga e coordenadora geral do Programa Fazendo Justiça (CNJ/Pnud), avaliou o tratamento dispensado pelo Estado aos indivíduos envolvidos em processos judiciais e sob vigilância, ela ressaltou que a custódia, em um sentido amplo que inclui não apenas a prisão, mas também o monitoramento eletrônico, revelou-se um ambiente de morte. A ocorrência desses casos, que não são comuns ou triviais em outros contextos, ocorre em um ambiente que permite a ocultação dessas situações perturbadoras.
A pesquisa também analisa as condições precárias de higiene e permanência nas prisões, que propiciam a disseminação de doenças. Durante a pandemia de coronavírus, destacou-se a fragilidade da assistência prestada pelas instituições penitenciárias, resultando na suspensão de visitas, interrupção de atendimentos médicos e distribuição de medicamentos, aumentando o número de desnutridos e óbitos. Essa observação, presente em um relatório do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro (Mepct/RJ), foi mencionada na pesquisa encomendada pelo CNJ e está relacionada ao quadro de monotonia alimentar agravado pela falta de alimentos levados pelos familiares aos detentos.
Em suma, o relatório do CNJ sobre a letalidade prisional no Brasil expõe de maneira contundente os graves problemas de saúde e ameaças à vida enfrentados por indivíduos custodiados no sistema penitenciário. Os dados revelam altas taxas de mortalidade, subnotificação de óbitos e a necessidade urgente de aprimorar a administração carcerária e garantir serviços de saúde adequados. Além disso, a pesquisa destaca a vulnerabilidade das pessoas sob custódia e ressalta a responsabilidade do sistema prisional e do sistema de Justiça Criminal em abordar essas questões de forma efetiva. A pesquisa fornece recomendações valiosas para ações coordenadas visando a proteção dos direitos humanos e a melhoria das políticas judiciárias no Brasil.