Fahrenheit 451 – Saindo da Caverna de Platão

Fahrenheit 451 – Saindo da Caverna de Platão

Imagine um mundo onde ler livros é proibido e onde o senso comum suprime o senso crítico de tal modo que faz você seguir a vida de maneira inercial. Não é preciso pensar muito em algumas analogias para ver que esse cenário distópico não está tão longe da nossa realidade atual. Mesmo publicado originalmente há mais de seis décadas, Fahrenheit 451 não apenas permanece atual como se torna – assustadoramente – mais contundente com o passar do tempo.

Escrito por Ray Bradbury (As Crônicas Marcianas) e lançado em 1953, Fahrenheit 451 mostra um futuro pessimista da América em que os livros são proibidos e o pensamento crítico é considerado hedonista e perigoso. Pessoas flagradas com essas obras ilícitas são capturadas e colocadas em hospícios enquanto seus livros são queimados por bombeiros, cuja principal função não é mais apagar incêndios, mas atear fogo em títulos literários. Aliás, 451 graus na escala Fahrenheit é a temperatura em que o papel começa a queimar.

A narrativa acompanha o personagem Guy Montag, um bombeiro comum que acredita que seu trabalho traz um benefício real pra sociedade. Sua vida, assim como a da maior parte da população, é tão pacata que ele nem percebe a passagem do tempo e também não possui recordações vívidas de momentos importantes. Tudo começa a mudar em uma noite, quando Montag se encontra com a nova vizinha, Clarisse McClellan, uma adolescente com caráter questionador e personalidade peculiar. No dia seguinte, durante uma inspeção na casa de uma senhora que guardava inúmeros livros, Montag acaba lendo sem querer uma frase que dizia “O tempo adormeceu sobre o sol da tarde”. Sem entender o que aquilo queria dizer, mas tomado por curiosidade, ele resolve levar o exemplar escondido. Ao se negar a abandonar sua coleção, a senhora é queimada viva junto com os bens mais preciosos que tinha. Abalado com o suicídio da mulher, Montag inicia sua jornada cultural e reflexiva sobre a vida e a sociedade.


Ray Bradbury

(1920-2012)


Repleto de simbolismos e metáforas, Fahrenheit 451 abre um enorme leque de possibilidades para discussão que nem o próprio autor imaginava. Muitos falam que a história trata sobre censura, mas o próprio Bradbury declarou que é sobre “como a televisão acaba com o interesse pela leitura”. Independente do que o autor tenha afirmado, uma obra de arte, após apresentada, pertence ao público e cabe a ele interpretá-la. Desse modo, a narrativa se torna uma ótima base para questionamentos e reflexões que transcendem sua motivação inicial. Se você ainda não o leu, aviso que a partir de agora o texto apresentará alguns spoilers para que a análise seja mais profunda, mas adianto que mesmo sabendo de certos eventos-chave da narrativa, a qualidade e o prazer da leitura permanecerão no mais alto nível.

Em 10 de maio de 1933, vários livros de escritores alemães foram queimados em praça pública por serem considerados inconvenientes ao regime. Esse dia marcou o auge da perseguição dos nazistas aos intelectuais, principalmente aos escritores.

Quando paramos para analisar os personagens e o que representam, notamos que são personificações de conceitos ou de determinado estado que a sociedade se encontra. A esposa de Guy por exemplo, Mildred Montag, é uma personagem que vive dentro de casa assistindo aos programas de televisão – que na história são grandes telas que ocupam toda a extensão da parede. O programa que ela assiste se resume a um grupo de pessoas que agem “aleatoriamente” e que interagem com quem os vê. Mildred os considera sua própria família e sua relação com eles é muito mais intensa do que com o marido. Ela pode ser interpretada como a personificação da grande parcela da sociedade que adentra mais e mais no mundo virtual (não no sentido estritamente tecnológico, mas sim do não-real). Além de três televisões que cobrem três paredes, ela ainda pede a Montag que pague por uma quarta, dando a entender que ela quer cobrir o único ponto de fuga para a realidade que ainda lhe resta, que seria a quarta parede.

Outro personagem muito simbólico é o Capitão Beatty, chefe dos bombeiros. Como não há nenhum personagem que assuma um cargo político na trama, Beatty é a representação do Estado e da liderança. Longe de ser uma figura autoridade como um ditador ordinário, Beatty é aterrador pelo fato de entender a mente das grandes massas e ter um discurso falacioso, mas carismático. Em uma conversa com Montag, Beatty afirma que a sociedade suprimiu a leitura porque ela oferece uma interpretação aberta e isso atrapalha a busca da felicidade. Dessa forma, considerando esse um ato hedonista, as próprias pessoas se censuraram. Com um discurso sofista, o capitão dos bombeiros consegue persuadir seus liderados a acreditarem no que fazem. Além disso, Beatty ainda mostra possuir um vasto conhecimento cultural quando faz citações literárias para Montag, unicamente para provar seu ponto de que as coisas “sem sentido” da literatura só fazem mal à sociedade. Portanto, o personagem mostra-se o mais perigoso possível, pois ele não precisa forçar ou obrigar ninguém a fazer suas vontades. Todos já estão fazendo.

Imagem da adaptação cinematográfica de 1966, dirigida por François Truffaut.

Com o avanço da narrativa, Guy Montag passa a guardar livros em sua casa, até que sua mulher avisa o corpo de bombeiros sobre o crime. Montag consegue fugir e vai procurar um grupo de pessoas isoladas longe da cidade. Nesse refúgio, estão aqueles que não abandonaram os livros e tentam preservá-los até o momento em que a leitura volte a ser permitida para então reescrevê-los. Para evitar serem pegos, cada um deles decora uma obra e depois a queima para eliminar qualquer prova.

Com o início de uma guerra nuclear nas cidades, podemos entender que dessas cinzas uma nova sociedade se erguerá através dos exilados. Por mais soturno que seja, não deixa de ser um final otimista – talvez o único relance de otimismo. Aqui, a comparação com o mito da Fênix (ave mitológica que volta à vida a partir das cinzas) é quase literal. Temos uma sociedade que além de queimar livros, também queima a si mesma, mas dessas cinzas tudo voltará. Como voltarão? É um bom questionamento.

Pensando na comunidade de Fahrenheit 451, também podemos relacionar a obra ao mito da Caverna de Platão. Assim que a população se rende as emulações do mundo real e rejeita qualquer tipo de pensamento que foge dessa visão limitada e unilateral, ela está entrando mais e mais fundo na caverna. Guy Montag é a representação do indivíduo que estava vivendo dentro dela e consegue sair.

Representação ilustrada da alegoria da Caverna de Platão

Em muitos casos, autores de ficção-científica optam por contar histórias futuristas, mas que na verdade falam sobre o presente. Podemos afirmar que muita coisa mudou de 1953 para cá, mas muitos dos conceitos que Bradbury colocou estão mais vivos que nunca. É claro que muitas coisas são tecnologicamente diferentes, o que faz com que determinadas passagens da obra a tornem datadas. Porém, o subtexto por trás da narrativa, além de sobreviver, ganha mais força atualmente.

Se pararmos para pensar na quantidade de informação supérflua que é disseminada no lugar de coisas mais substanciais e na veneração do virtual no lugar do real, vivemos no mesmo cenário aterrador que a esposa de Montag. O pior de tudo é que a própria sociedade está, por livre e espontânea vontade, escolhendo essa situação. Dentre inúmeras discussões que vão de assuntos políticos até culturais, percebemos como grande parte da população optou por ter apenas o conhecimento superficial de algo, ou nem isso, e mesmo assim pretende-se um orador eloquente, sem ter ao menos completado a primeira idade. Afinal, é muito estranho, de uma hora para outra, todos tornarem-se politicamente engajados ou afirmarem que sempre foram leitores assíduos de histórias em quadrinhos. É provável que – em breve – a caverna fique lotada e a escolha de sair dela se torne cada vez mais individual e menos coletiva.


Este texto foi originalmente publicado no site Formiga Elétrica.



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