FAZENDA DA BARRA: Uma Imersão na Infância.
PREFÁCIO
Hoje estou verdadeiramente aposentada. Isso porque, mesmo depois da aposentadoria, ainda ministrei aulas para cursos de pós-graduação.
Quando começou a pandemia da Covid19, parei de trabalhar.
Esse livro busca homenagear as pessoas que foram as mais importantes na minha vida: meus pais.
É na infância que nossa personalidade começa a se formar. Eles puderam proporcionar uma infância maravilhosa para nós: filhos e netos.
Esse livro irá contar algumas passagens da nossa infância até a maturidade na “Fazenda da Barra”, de propriedade do nosso pai. Do momento da sua aquisição até sua venda e posterior destruição pelo novo dono.
Ao invés de fazer tricô ou crochê, resolvi escrever.
Já havia compilado apostilas acadêmicas, escrito artigos técnicos, textos para o Linkedin, e um livro bibliográfico em prosa e verso, que continua engavetado.
Esse eu resolvi publicar.
Dizem que “recordar é viver”. Acredito piamente nisso!
Espero que gostem da leitura, tanto quanto eu gostei de escrever.
Tânia Mara Valério
29/10/2023
PRÓLOGO
No alto da montanha, com suas paredes brancas e janelas azuis, ela reluzia.
De sua varanda dava para ver o pântano, depois do pomar, lá embaixo, todo plantado de arroz.
Olhando para cima avistava-se o gado pastando capim gordura e, mais acima, à noite, via-se um mar de estrelas cintilantes. Muita estrela!
Deitada na rede, no escuro, só para admirá-las, podia sentir o perfume das flores que emanava do jardim.
Da porta da cozinha, no terreiro, olhando para baixo, ficava o moinho, labutando o milho na pedra para virar fubá.
Dos fundos da casa podia-se sentir o cheiro do estrume que vinha do curral.
Andando mais um pouco, algum desavisado poderia esbarrar em uma goiabeira, cujos frutos abrigavam bichos brancos, imperceptíveis.
Parada, degustando a goiaba, vigiando os indesejáveis intrusos, podia-se ouvir o barulho do riacho que levava água para o moinho. O barulho chamava o olhar, nos presenteando com a visão de uma família de patos nadando no fiapo de riacho.
Andando mais para o fundo, voltando para o terreiro, podia-se sentir o cheiro da quitanda assando no forno de barro. Nesse momento as pernas pediam um descanso.
Enquanto os biscoitos e broas eram assados nas folhas de bananeira, o café era torrado na panela de ferro, socado no pilão, moído na máquina manual e só depois podia descansar seu pó no coador de pano, aguardando a água fervida na chaleira para poder exalar seu delicioso perfume, chamando todos para o lanche da tarde.
Sentados ao redor da grande e retangular mesa de madeira curtida, coberta por uma toalha desenhada de frutas, os olhos saciavam só de olhar o queijo fresco, o café quente, o leite da manhã, as broas e biscoitos.
De barriga cheia, as lembranças continuam a caminhar em direção aos fundos do terreiro da fazenda.
À esquerda, de porta e janela cerradas, podia se deparar com a casinha de barro, feita pelo vovô, para a gente brincar de casinha e poder aprender a cozinhar na miniatura de fogão de lenha.
À direita, o barulho ensurdecedor das galinhas e galos empoleirados no galinheiro. A produção era diária. Comia-se ovos frescos todos os dias.
Mais à frente ficava a casa do caseiro, esposa e filhos. Depois dela o chiqueiro, onde ficavam confinados os porcos descansando seus pesados corpos no cimento e os porquinhos em volta, usando seus pequenos focinhos para cutucar seus pais, chamando-os para brincar.
Deixando a preguiça de lado, caminhando mais um pouco, avista-se o cafezal e a mina d`água.
Na divisa das terras deparava-se com a casa do Zé Branco, sua mulher e filhos. Ela tecia lindas colchas no tear.
Voltava para casa cansada, tomava banho no chuveiro de serpentina e, depois de vestida, esquentava o corpo sentada em uma cadeira que era colocada em cima das sobras frontal do fogão de lenha.
Ao escurecer, ligava o motor para acender as luzes, iluminando, assim, a cozinha para o jogo de canastrão.
Em noites frias, colocava-se uma bacia com brasa embaixo da mesa, para esquentar os pés.
Na hora de dormir, lia um dos livros de bolso da “Sabrina”: propiciava sonhos românticos e acalentadores.
No domingo era hora de partir. A Rural era carregada com laranjas, limões, mexericas, abóboras, couve, alface, cheiro verde, ovos, queijo, leite....
Chegava em BH com dor de cabeça e as narinas congestionadas. Os cheiros eram fortes e se misturavam.
Que saudade....
Hoje chego no Sacolão e não sinto de cheiro de nada!
CAPÍTULO PRIMEIRO: Que Fartura!
- "O que vocês querem comer no almoço"?
Era assim que começava o dia na fazenda.
Podia-se escolher: galinhada, feijoada, carneiro assado, carne de panela, canjiquinha, linguiça de porco....
O feijão já ficava no fogão de lenha do dia para noite cozinhando e as linguiças defumando, dependuradas em cima dele.
Se chegava visita de última hora para o feriado ou final de semana, era só colocar mais água no feijão e tirar mais um pouco da carne de porco que ficava adormecida na gordura dentro de uma lata na despensa.
Na horta tinha de tudo.
O pé de couve até envergava.
A alface tinha de ser comida antes de amarelar. Tinha salada todo dia.
Já tomate era difícil. Dava muito bicho.
Abóbora sobrava até para alimentar os porcos.
O milho era cozido verde, na espiga, ou ralava e fazia doce. Quando madurava, era debulhado e seguia para o moinho para virar canjiquinha ou fubá. Bastava manobrar a pedra. Era servido angu no almoço todos os dias. A sobra servia para alimentar as galinhas.
Sobremesa também podia escolher: doce de leite, arroz doce, mingau de milho verde e quando a Tia Neusa ia, era uma festa! Ela fazia doces de abóbora, batata doce, banana da terra, laranja e até de mamão verde. Ela enchia as compotas com esses doces!
Tio Tião enchia um prato fundo com arroz doce. Comia sem piscar, quente mesmo, e se você piscasse os olhos, ele já estava lambendo o prato. É o doce que ele mais gosta!
O queijo, há o queijo....
Adorava fazer para acompanhar os doces ou derreter na chapa do fogão de lenha para comer com pão, acompanhado com café quentinho, coado na hora.
Aprendi a fazer queijo e diziam que ficavam bons, porque tenho as mãos quentes. É bom para dar liga à massa.
Deixava o leite coalhar com um produto, coava com um pano limpo para tirar o soro, misturava sal grosso, colocava a massa dentro de círculos de metal ocos e os deixava curando por alguns dias do lado de fora da janela da cozinha, em cima de estrados de madeira.
Tinha de passar sal grosso dos dois lados todos os dias, para ficar bem salgadinho.
Já o segredo do doce de leite, aprendi com minha mãe: tem de fazer em uma caçarola de cobre; colocar açúcar cristal no leite fresco, um pires no fundo, para não precisar esquentar a barriga na beirada do fogão. Ir botando lenha e mexendo com colher de pau por algumas horas até ficar cremoso.
Dia de festa tinha quentão, matava cabrito ou bezerro para fazer cabritada ou churrasco.
O terreiro da frente da casa era todo enfeitado com bandeirinhas.
Toras de madeira eram cortadas para fazer uma grande fogueira, para durar até o dia clarear.
O sanfoneiro e violeiro eram chamados para tocar a noite inteira.
Vinha gente de toda a região.
A fartura acontecia até nós velórios da fazenda: café, biscoito e cachaça a noite inteira. Dessa fartura eu não gostava.
Hoje abro a geladeira e/ou freezer e sirvo o que tiver. Não pergunto.
Saudades da roça!
CAPÍTULO SEGUNDO: Banho de cachoeira
Quando crianças, não reclamávamos do calor. Pelo contrário: a gente gostava.
Ficávamos ansiosos para as férias de verão chegar, para poder ir nadar nos riachos e cachoeira nas proximidades da fazenda.
Vestíamos nossas roupas de banho, bem cedo, logo depois do café.
Não levávamos nada. Só nossa vontade de mergulhar nossos corpos nas águas e brincar.
Era uma aventura!
Tínhamos de atravessar o riacho, que margeava as terras da fazenda, em cima de um coqueiro propositalmente cortado e colocado para não precisar molhar os pés nas águas, apesar dos covardes preferirem isso.
Equilibrávamos o corpo em cima do coqueiro estreito, apoiando as mãos em um corrimão de bambu, que tinha sido amarrado em árvores localizadas nas matas nos dois lados do riacho.
A altura era pequena, não chegava a dois metros, mas o rio era raso, cheio de pedregulhos. A queda poderia ser dolorosa.
O coqueiro era estreito. Tínhamos de ter paciência, andar ou parar devagar, com um pé atrás do outro.
Sempre aparecia um engraçadinho para balançar o bambu e rir da nossa expressão de medo.
Depois de transpor as margens do rio, ainda tínhamos uma boa caminhada pela frente.
A cachoeira não era natural. Sua queda foi provocada pelo proprietário do sítio vizinho, que represou o rio com pedras, para acumular água e molhar a plantação.
Não importava. Era a única cachoeira da região.
A vazão da água era suficiente para enfiar nossos corpos debaixo da queda d'água gelada!
Tínhamos de entrar no rio com cuidado, pois as pedras eram cobertas de lodo e musgos. Mesmo assim, vira e mexe escorregávamos nelas, provocando vermelhidão e posterior roxo em nossas nádegas.
O vizinho era legal. Não se importava com nossa presença. Também não pedíamos permissão, visto que os terrenos, que margeavam o rio, pertenciam a diferentes vizinhos.
Tínhamos medo de cobras d'água, que teimavam em nos dar as “boas vindas”.
Não são venenosas, mas ficávamos nervosos e temerosos em receber um bote, por estar invadindo seu habitat.
O barulho da queda d’água não era impedimento para a conversa fiada: gritávamos para poder ser ouvidos.
Não queríamos ficar quietos. Só fazer barulho, zoar, jogar água no outro, pular das pedras n'água e competir para ver quem perdia o fôlego primeiro debaixo d'água.
Quando o rio começava a correr mais rápido, trazendo galhos e folhas, era hora de ir embora: sinal que estava chovendo no pé da serra. A tromba d'água estava chegando...
De volta à fazenda, molhados, exaustos e famintos, ouvíamos nossa mãe gritar lá da cozinha:
- "Vão direto para o chuveiro. Estão molhando o chão".
Cabisbaixos e encorajados pelo cheiro da comida que era exalada das panelas, obedecíamos, sem pestanejar.
A chuva, ao pé da serra, continuou seu curso, chegando para molhar a terra.
Não tem nada melhor do que cheiro de terra agradecida.
Ela se animou e continuou a despejar seu néctar, que teimava em se enfiar pelos buracos das telhas.
Vovô, sentado, cheirando rapé, olhou para água abençoada que caía do céu e comentou:
- "Esse bem o homem nunca vai vender: pertence à terra. A água que cai hoje é a mesma desde que o planeta foi criado por Deus".
Ele deve ter virado no túmulo, desde que o homem começou a engarrafar água para vender.
Um urubu, querendo se abrigar da chuva, fazia barulho em cima do forro.
Tia Almerita resolveu o problema: tirou o 38 da cintura, que havia acabado de usar para caçar cascavel, silenciando-o definitivamente.
Ela já morreu, mas o medo e respeito por ela continuam.
Nunca mais vi uma mulher com um 38 na cintura. Só em filmes de cowboy.
Sem poder brincar lá fora, papai conectou a bateria do carro à televisão. Estava sendo transmitida uma novela, em cuja cena a protagonista morreu. Dona Maria Arminda, a cozinheira, na época, começou a chorar. Ela achava que era de verdade! Foi tão engraçado... O difícil foi explicar para ela que se tratava apenas de uma encenação.
As estações eram bem definidas naquela época: no verão chovia; na primavera florescia; no outono caiam as folhas; e no inverno fazia frio.
Hoje eu acredito naquela frase: "fomos feitos à imagem e semelhança de Deus": o homem desenvolveu o poder de mudar o clima, sem autorização divina.
Tem chovido demasiado em algumas regiões e em outras as secas são extremas, em qualquer época do ano.
O Pai vai nos castigar?
Qual será o castigo divino?
Dizem que a Terra, que é a verdadeira dona de tudo, já está nos castigando: o planeta está febril para expurgar a bactéria, que somos nós, os humanos.
Teremos tempo de nos corrigir e consertar os estragos?
Quem viver, verá...
CAPÍTULO TERCEIRO: Dia de Cigano
Os dias eram sempre uma surpresa. Não tinha um dia igual ao outro. Sempre aconteciam coisas diferentes.
Lembro do dia que o vovô comprou um cavalo nas mãos de ciganos.
Nunca tinha visto uma família de ciganos. Eles estavam acampados perto da fazenda.
Vestiam roupas coloridas, lenços nas cabeças, fartos e brilhantes colares no pescoço, argolas de ouro dependuradas nas orelhas e vários anéis nos dedos, com unhas grandes e pintadas de vermelho.
Imagem inesquecível!
Vovô, compenetrado na negociação, dobrou para trás a perna do cavalo, para verificar a situação do casco e da ferradura. Repetiu o processo por mais três vezes, em um incômodo e demorado silêncio. A testa dele chegava a enrugar de seriedade.
Depois abriu a boca do cavalo, com as duas mãos, para poder verificar o estado dos dentes. Ele encostou tanto sua cabeça na boca do animal, que quase acreditei na possibilidade dele engolir meu avô.
Momento sinistro!
Ele dizia que se conhecia um cavalo pelos dentes (depois disso, nunca mais deixei de escovar os dentes antes de dormir).
Negociou o valor por infinitos minutos com o cigano.
A tensão pairava no ar. Achei que não ia dar negócio.
Deu as costas para o cigano e seguiu em direção à fazenda.
Fiquei ali, olhando para o cigano, na esperança que ele fizesse o mesmo, em sentido contrário. Só que não. Ficaram no mesmo lugar, ele e o cavalo: empacados.
Não demorou muito para o meu avô voltar. Trazia um saco de papel em uma das mãos. Entregou para o cigano e ficamos ali esperando ele contar as notas de dinheiro.
Depois apertaram as mãos e disseram um uníssono adeus.
O cavalo ficou.
Segui meu avô até o curral, sem demonstrar a alegria que sentia, que chegava a apertar o peito.
Ele batizou o cavalo de cavalão. Era alto, robusto, forte, castanho e de crinas volumosas e macias.
Vovô esquentou o brasão de metal, que tinha as iniciais do meu pai (GV), na brasa do fogão de lenha, segurando pelo cabo e marcou a anca do animal.
Fiquei com dó: a fumaça tinha um cheiro forte de carne queimada.
Depois, amarrou sabugo de milho nas patas do animal.
Eu ali, sentada em cima da grade de madeira do curral, vidrada, sem entender nada.
Depois ele arreou e colocou o cabresto no animal, calçou suas botas de montaria, colocou esporas, pegou o chicote e montou no Cavalão com certa dificuldade. O bicho estava bravo e arisco.
O curral estava cercado. Porteira fechada.
Meu avô domava o animal com rédeas curtas. Parecia que ia enforcar o bicho, de tanta força desprendida no cabresto.
Aquele processo foi lento. Tenso para todos nós.
De repente o animal tinhoso e nervoso encurralou meu avô contra a cerca.
Tinha um prego grande lá, já enferrujado pelo tempo. Rasgou a calça do meu avô. A cerca ficou manchada de sangue.
Acabou o treino. Ele desceu do animal, seguindo arrastando a perna esquerda em direção à fazenda. Fui atrás dele.
O Cavalão foi amansado e aprendeu a trotar à duras penas.
Foi o melhor cavalo da fazenda.
Toda vez que eu ia para lá, arreava o Cavalão e saía galopando pelas estradinhas de terra, para o lado da igrejinha, sentindo os cabelos voarem e o vento no rosto. Foi minha primeira sensação de liberdade!
Dava uma parada na venda para tomar um refrigerante e poder refrescar. O valor do produto era anotado na caderneta, no nome do nosso pai. Ouvia as prosas e voltava.
Do Cavalão só tenho boas lembranças. A melhor delas é meu avô, ao entardecer, montado no Cavalão, vestido com sua capa grossa, cinza e comprida, calçado com suas botas de montaria, de chapéu e chicote na mão direita. Seguia pela estradinha de terra não sei para onde. Nunca perguntei. Não importava. Não era da minha conta.
Pena que não sei pintar. Gostaria de eternizar aquele momento: ele montado no cavalo, de costas, seguindo seu caminho....
Descanse em paz, meu avô!
CAPÍTULO QUARTO: E as formigas subiram na parede
A primeira vez a gente nunca esquece. Sempre tem uma primeira vez para tudo. Quando se é criança, então, é mais fácil. A mente está vazia. As lembranças encontram muito espaço vago para se assentar. Sejam elas boas ou ruins...
Esse dia levarei para o túmulo (mentira: quero ser cremada).
Minha mãe sempre dizia que se as formigas estivessem subindo nas paredes, sinal que alguém ia morrer. Verdade! Triste constatação. Nesse dia as formigas estavam subindo na parede, ao lado da janela da cozinha. Meu estômago começou a doer, apreensiva.
De repente chega a notícia que o bebê da vizinha, que eu havia conhecido há poucos dias, havia morrido.
Fui ao enterro da criança com meus pais.
Era a primeira vez que eu ia entrar em um cemitério, ver um caixão e gente morta.
O cemitério ficava no alto de um morro, no distrito de Suzana, próxima à fazenda.
Papai estacionou a Rural na porta do cemitério, aonde o corpo estava sendo velado.
Caminhamos por uma terra batida, vermelha, seca, até chegar próximo ao caixão.
Minha vontade era não olhar. Desviei os olhos para os meus sapatos sujos de terra, com medo de encarar a triste cena: a mãe do bebê soluçava, debruçada em cima do pequeno caixão. Meu coração cortou de tristeza. Não consegui segurar as lágrimas, que correram em meu rosto se misturando com a poeira que o forte vento trazia.
Depois do enterro, voltamos para a fazenda em silêncio. Só se ouvia o barulho do bater de asas de uma mosca no carro. Ela pegou carona. Também queria sair dali.
Chegando em casa, ainda atordoada pelo acontecido, perguntei para minha mãe para onde iria o bebê. Ela disse que os anjos vieram buscar. Não retruquei, mas não acreditei, pois aprendi, durante as aulas de "Primeira Comunhão", que somente vai para o céu aquele que foi batizado. Fique sabendo que o batismo dele seria realizado no próximo mês.
Ajoelhei aos pés da cama, antes de dormir, pedindo à Nossa Senhora que relevasse o batismo e levasse aquele bebê nos braços dela para o Céu. Para mim ele era um anjo.
Depois daquele dia, procuro evitar velórios, cemitérios e enterros.
A única certeza que temos nessa vida é que iremos morrer um dia. Deixo para pensar nisso quando chegar a hora.
Enquanto isso...
CAPÍTULO QUINTO: Truco
Em dias chuvosos, na fazenda, sem luz elétrica, só sobrava jogos de tabuleiro e baralho para gente brincar dentro de casa.
Em um dia desses, chuvoso, tinha acabado de almoçar, quando escutei gritos vindo do terreiro, nos fundos.
- "Seis, ladrão de milho"!
Fui curiosa para lá. Eram os empregados, que já tinham chegado da labuta para almoçar. De vez em quando eles se juntavam para jogar baralho, depois do almoço. Estavam sentados em volta de uma mesa, jogando cartas. Bagos de milho estavam espalhados em montes pela mesa.
Curiosa, perguntei que jogo era aquele.
Responderam, em uníssono: "TRUCO".
O tempo que fiquei parada, atenta, assistindo, foi o suficiente para entender a dinâmica do jogo.
Pedi para jogar.
Eles olharam para o meu pai, que também estava assistindo, sentado em um banco comprido de madeira, no canto, preparando um cigarro de palha, para pedir autorização. Além de criança, eu era filha do patrão.
Papai autorizou, é claro. Afinal era um jogo inocente e não tinha dinheiro envolvido.
Todas as vezes que eu ia à fazenda e tinha oportunidade de encontrá-los jogando, aproveitava para treinar com eles. Com o tempo, fui pegando o jeito.
Serviu, mais tarde, quando eu estava na faculdade, para enturmar. Formava duplas com meus colegas, no barzinho, lá perto, nos intervalos e depois das aulas. Só não subia na mesa. Sabia trucar.
Tem anos que não jogo Truco. Tenho jogado só Canastrão.
Tempos bons aqueles....
Meu avô não jogava. Ele contou que perdeu sua fazenda, em Vargem Grande, no jogo de "Marimbo".
Quando meu pai veio fazer a vida na capital, assim que ele conseguiu ganhar dinheiro, comprou uma fazenda para nosso avô poder morar e administrar.
Foi sua última morada.
CAPÍTULO SEXTO: Casamento na roça
Como esquecer aquele casamento?
Não sei se rio ou se choro.
Tinha chegado o dia do casório da cozinheira com o caseiro da fazenda.
Ela trajava um vestido de noiva, que ela havia previamente alugado de uma loja na cidade: longo e tradicionalmente branco. Em sua cabeça ela colocou um véu, que chegava a encostar na cintura. Em suas mãos, visivelmente trêmulas, ela segurava, um buquê de flores silvestres. Em seus pés, encobertos pelo vestido, ela usava sapatos brancos, com pequenos saltos.
O noivo vestia um terno cinza e uma gravata com risco de giz, emprestada pelo nosso pai, que sobressaia debaixo da gola branca da camisa. Ele não sabia fazer nó em gravata. Nunca tinha usado. Meu pai que fez o nó para ele. Nem se deu ao trabalho de ensinar, pois sabia que ele ia demorar anos para usar gravata novamente. Os sapatos apertavam seus pés. Só tinha costume de usar botas largas de borracha para lida na fazenda. O terno estava um pouco apertado, formando frisos embaixo dos braços e na virilha.
O casal estava bonito, bem trajado, mas quando ficaram lado a lado para posar para a foto, mesmo de salto baixo a noiva sobressaía. Ela era mais alta que ele.
O dia amanheceu bonito: céu claro e poucas nuvens. De repente foram surgindo nuvens escuras, carregadas.
Da varanda avistamos a serra, lá no alto, bem distante, e percebemos que ela estava coberta de nuvens. Sinal que lá estava chovendo e que a chuva não ia demorar a chegar à fazenda.
Papai apressou todos, chamando para entrarmos no carro.
Nosso pai sentado na frente, no banco do motorista, a noiva no banco ao lado. No banco detrás estavam o noivo, mamãe e minha irmã. No bagageiro, sentados no chão do carro, eu e meu irmão brigávamos para acomodar nossas pernas compridas.
Enquanto nos acomodávamos no carro, começou a chover.
Papai ligou o carro, mas não pôde dar partida, pois o noivo lembrou que esqueceu as alianças. Ele desceu para busca-las e aproveitou para pegar o guarda-chuva.
Nesse intervalo, a chuva já tinha virado tempestade.
Papai gritou chamando o noivo para se apressar.
O carro derrapava ao descer o morro pela estrada de terra cascalhada. Parecia quiabo, de tão escorregadio.
A porteira estava fechada. Olhares foram trocadas dentro do carro: quem iria descer, debaixo daquela chuvarada, para abrir a porteira? Meu pai nos dirigiu um olhar constrangedor. A contragosto, desceu e abriu a porteira.
Nossos olhares se dirigiram em direção a enxurrada de água, misturada com lama e cascalho, que descia do alto do morro, da estrada de terra, em nossa direção.
Nosso pai tinha muita experiência e destreza ao volante para enfrentar esse tipo de situação. Engrenou a primeira e acelerou.
Cruzei meus dedos, torcendo para dar certo, pois o casamento já devia ter começado.
Os pneus atolaram no meio do morro. Papai pediu para todos descerem. Corremos para casa da Dona Dirce, que ficava no alto do morro. Chegamos encharcados à casa dela.
Enquanto meu pai persistia em tentar desatolar o carro, nos secávamos em toalhas e panos, na cozinha da vizinha, ao redor do fogão de lenha.
A espera era angustiante. Sabíamos que ele não ia conseguir desatolar o carro: cada vez que ele insistia em acelerar, os pneus afundavam ainda mais na lama.
Foi aí que Sr. Tonico interveio. Ele era nosso vizinho, marido da Dona Dirce.
Ele vestiu capa de plástico, botas de borracha e saiu para ajudar nosso pai. Da soleira da porta, escutamos o diálogo dos dois.
Encontraram uma solução para o problema: Sr. Tonico subiu o morro a pé em direção à fazenda, debaixo da tempestade, para pegar o carro de boi.
Alguns muitos minutos depois, chega o Sr. Tonico em cima do carro de boi, com as rodas cantando, sendo puxado por dois bois.
A noiva parou de chorar: ia ter casamento.
Sr. Tonico desceu, ajudou meu pai e os noivos a subir no carro de boi.
O noivo segurou o guarda-chuva para a noiva não molhar mais do que já estava.
O carro ficou lá, atolado.
Nós voltamos para a fazenda, atolando nossos pés na lama.
Tio Tião e Tia Neuza, que tinham ido mais cedo para à igreja no carro deles antes da chuva, tiveram de ser os padrinhos.
Casaram, continuaram trabalhando na fazenda e tiveram dois filhos.
Novamente, as formigas subiram pela parede: anos depois ela foi encontrada desacordada ao lado do fogão de lenha, na cozinha da fazenda. Estava cozinhando, quando teve um enfarte fulminante. Ela tinha doença de Chagas. A irmã dela havia falecido anos antes, devido mesma doença.
Descanse em paz, Tereza!
CAPÍTULO SÉTIMO: Benditas árvores
- "O que você vai fazer com esse balde e essa faca, menina"?
Era incrível: mamãe era de poucas palavras, silenciosa, mas não desgrudava os olhos da gente um minuto!
Respondi, sem olhar para trás:
- Estou indo para o pomar.
Adoro laranja Serra D'água, principalmente se ela for colhida madura e fresca no pé. Chega a dar água na boca, só de lembrar!
Colhia as laranjas até encher o balde. Sentava ao pé da árvore, debaixo de suas saias, descascava e chupava até o bagaço. O suco escorria pelos cantos da boca, respingando em meu vestido. Quando a barriga enchia, levava as sobras para colocar na fruteira.
Minha irmã gostava de laranja Bahia. Mais azeda. Comia com sal.
A laranja Pêra era ainda mais amarga que a Bahia. Só servia para fazer doce ou suco de laranja adoçado.
Além dessas três qualidades de laranja, tinham, também, duas espécies de limão: galego e caipira, o qual chamávamos de “capeta”.
O limão caipira é maior e é conhecido como limão "capeta", porque é muito azedo. Ele era usado para fazer doce e, também, para lavar panela de ferro ou alumínio. A cozinheira espremia o limão e misturava com areia e sabão. As panelas reluziam.
Tinha, também, pés de mexericas (ou tangerinas). Eu gostava mais da ponkan. Sua casca grossa facilita descartar e retirar os gomos, além de ser mais doce.
A plantação de abacaxi era bonita de se ver, mas a fruta ardia na língua. Dizem que o abacaxi havaiano é o melhor do mundo. Sua doçura é inigualável. Nunca provei.
Não tive a oportunidade de ver uva na parreira. Acho que nunca deu fruto.
Plantaram bucha na cerca do pomar. Eu achava tão esquisito....
Muitos gostavam de colher Fruta do Conde na árvore. Até hoje não gosto. Apesar de bonita, o gosto é sem graça.
Goiaba tinha da branca e vermelha. Sempre gostei mais da vermelha. É mais cheirosa e saborosa. A branca dá muito bicho. Acho que isso se deve ao fato da casca ser mais fina, fácil de penetrar.
Bananeira era igual praga. Onde plantava um pé, nascia vários em volta. Igual ao bambu. A diferença é que um dá fruto e o outro não.
Procurava passar longe de bambuzal: tinha cobra lá. Acredito que seja pelo frescor que o bambu proporciona e, devido a cor e espessura da planta, fica mais fácil delas se enroscar, ficando, assim, camufladas, protegidas de predadores.
Será que cobra tem predador? Já vi, lá na fazenda, uma sucuri engolir um bezerro e ficar dias degustando o animal. Ela deve ter medo do bicho homem ou da Tia Almerita, que vivia de revólver na cintura atrás delas, quando ia nos visitar. Ela matava cobra, tirava o couro com uma faca afiada e colocava na cerca para secar.
- O que será que ela fazia com esse couro? Sapatos, bolsa e/ou cinto? Vendia?
Quando encontrar com ela lá em cima, vou perguntar.
As mangueiras eram lindas: altas, formosas, sabiam ocupar seu espaço. Estavam espalhadas por todo o terreno da fazenda, não só no pomar. Uns gostavam de manga coquinho, por ser fácil de colher. Davam várias em um só galho. É pequena, arredondada e mais escura, parecendo um coquinho mesmo. Faziam um furo nela para chupar seu doce néctar.
Eu e o Cavalão preferíamos a Manga Rosa, apesar do pé ficar em um pasto mais distante.
Eu ficava em pé, equilibrando em cima do cavalo, para poder colher as mais maduras, geralmente nos galhos mais altos. Levava um canivete, descascava e cortava em fatias para comer. Não tem fibra e é docinha. O segredo é escolher a fruta que tiver com algum buraquinho de bicho. Sinal que está no ponto.
Já o Cavalão, arrancava a manga que estivesse mais próxima de sua boca com seus enormes dentes. Ruminava e depois cuspia o caroço.
- Pode isso?
Ele era demais!
Existiam várias espécies de coqueiro, mas tinha de subir no pé para colher. Eu tinha medo de altura. Pegava os que estavam espalhados no chão.
Ipê tinham poucos: do roxo e amarelo. Eles davam um colorido especial para a mata.
Da janela da cozinha podia se avistar uma árvore bem alta. Tia Neuza gostava dela. Para zoar a gente, ela gritava assim:
- "Desce daí, Bedeu"!
Era só para gente olhar para o alto e ficar procurando esse tal de "Bedeu". Nunca vi ele descer da árvore.
Jabuticabeira só tinha no sítio da vizinha. Na época da fruta, pedíamos autorização pra Dona Dirce para poder subir no pé e colher jabuticaba. Podia escolher: tinha uns cinco pés, em fileira, um atrás do outro.
Não engolíamos o caroço, para demorar a ficar saciados. Depois, ainda, colocávamos nos cestos de vime para levar para a fazenda.
Hoje, além da admiração, tenho um respeito enorme pelas árvores, sejam frutíferas ou não.
O difícil está sendo encontrá-las.
CAPÍTULO OITAVO: Onça pintada
Éramos oito: pai, mãe e seis filhos. Todos tínhamos de caber no espaço pequeno da Rural do meu pai. O pai no banco do motorista, a mãe no banco ao lado, quatro filhas no banco detrás e dois filhos no bagageiro.
Eu era uma das bagagens. Meu irmão também.
Felizes íamos curtir finais de semana, férias ou feriados na fazenda.
Era a única oportunidade que tínhamos de sair da cidade grande, desde que papai a comprou.
Não nos importávamos de estar todos espremidos, como se estivéssemos fechados dentro de uma lata de sardinhas.
A curta viagem poderia durar uma eternidade, principalmente em dias de chuva. A estrada de terra podia se transformar em um perigoso riacho cascalhado e escorregadio.
No porta luvas do carro descansava um antigo 38, que nunca precisou ser usado, até àquela noite sinistra.
Todos cansados, em silêncio, dentro do carro, em direção à fazenda, para curtir mais um final de semana feliz, em família.
Papai de repente breca o carro.
Estava escuro. Só se ouvia o piar das corujas.
A chuva havia dado uma trégua.
Estávamos procurando identificar o que provocou a curiosidade de nosso pai:
- Pneu furado?
- Vontade de fazer xixi?
De repente avistamos uma onça pintada, com seus olhos vermelhos nos encarando, do lado de fora do carro, atravessada na estrada.
Gritamos de medo!
Meus pelos dos braços ficaram em pé.
Ele abriu a porta do carro, já descendo devagar e cauteloso: ia abater a onça com seu 38, que tremulava em sua mão direita.
Imploramos, aos gritos, para ele não descer do carro.
Então ele voltou, acomodou-se no banco, fechou a porta, a janela, apagando os faróis.
Mansamente, sem pressa, a onça atravessou a estrada em direção à mata fechada, iluminada pelo clarão da lua.
Foi a única vez que vi uma onça.
Foi a última vez que meu pai pegou numa arma.
Anos depois, em 2003, ele entregou o 38 e a espingarda para o governo (Lei do desarmamento).
As onças não mais correriam perigo (será?).
Naquela mesma noite, faltando poucos quilômetros para chegar à fazenda, eu e meu irmão iniciamos uma discussão no bagageiro.
O espaço era pequeno para as nossas pernas compridas. Queríamos esticar as pernas, invadindo o espaço do outro.
Meu pai, ainda assustado pelo encontro com a onça ao descer a serra da Moeda, parou o carro, desceu, abriu o bagageiro e mandou eu e meu irmão descer.
Descemos, achando que ele só ia "passar um pito" na gente.
Só que não.
Ele voltou para o carro, dizendo para nós dois seguir o resto do caminho a pé.
Olhamos para o nosso pai incrédulos, assustados e suplicamos, em uníssono, para ele não fazer isso, prometendo ficar quietos.
A súplica saiu rouca e nervosamente alta.
Não adiantou.
Ele acelerou, seguindo em frente, sem olhar para trás.
Deu para ouvir a voz de súplica de nossa mãe, para ele não fazer isso com a gente.
Depois sobrou o silêncio da noite. Ficamos ali, parados, incrédulos, olhando os faróis sumindo na estrada. Trocamos olhares, apertamos nossas mãos e corremos atrás do carro, na esperança dele ter atendido aos apelos de nossa mãe e estar nos esperando depois da curva. Ficamos sem fôlego, de tanto correr.
Não adiantou. Ele não esperou.
Desanimados, cansados e ofegantes, meu irmão teve de reduzir os passos. Eu não aguentava mais correr. Sentia que meus pulmões iriam estourar.
Paramos. Meu coração estava disparado. A respiração ofegante.
E se a onça estivesse por ali?
Comecei a chorar.
Meu irmão aninhou eu em seus braços, dizendo que ele não iria deixar nada de mal acontecer comigo.
Enquanto estávamos abraçados, ouvimos um motor de carro. Achávamos que era nosso pai retornando para nos buscar.
Reparamos que o barulho vinha de trás da estrada e não da frente. Era o barulho do motor de uma picape.
Nos posicionamos perigosamente na frente do carro que vinha em nossa direção, no meio da estrada, balançando os braços levantados.
O carro parou.
Da janela o motorista perguntou o que estávamos fazendo na estrada, sozinhos, àquela hora da noite, no escuro.
Explicamos.
Ele nos deu carona.
Velozmente o carro ganhou a estrada.
O motor da picape era mais potente que o da Rural. Não demorou muito tempo para ultrapassar o carro do meu pai.
Da janela meu irmão olhou para trás, colocou os braços para fora e fez um sinal de adeus, com um sorriso maroto e infantil, para o meu pai.
Chegando à porteira, que dava acesso à fazenda, pedimos para o motorista parar.
Agradecemos pela carona e descemos.
Subimos na porteira para esperar nosso pai.
Ao avistarmos a Rural, descemos e abrimos a porteira.
Meu pai adentrou e parou o carro.
Fechamos a porteira, seguindo em direção a ele.
Papai saiu do carro carrancudo, nos dirigindo olhares gelados, perguntando se conhecíamos o motorista que nos deu carona.
Respondemos, cabisbaixos, que não.
Ele ficou ainda mais nervoso com nossa resposta, pensando, provavelmente, no perigo que havíamos corrido, nos dando um grande sermão, ali mesmo na estradinha, iluminada pelos faróis do carro.
Abriu o porta malas e mandou a gente entrar, para acabar de chegar.
Ainda, naquela noite, antes de nos recolher, ele nos contou a história do "homem da porteira":
Que existia um homem velho, segurando um cachimbo na boca, que ficava sentado na porteira esperando algum transeunte para pedir para acender seu cachimbo.
Nunca mais fomos à porteira à noite.
Hoje eu acho que ele contou aquela história para gente ter medo de sair sozinhos a noite, porque se passaram anos e nunca vi esse tal de "homem da porteira".
Já meu irmão, ele cumpriu a promessa: foi meu amigo, companheiro e conselheiro até seu leito de morte.
Morreu aos 33 anos, com a idade de Cristo.
Descanse em paz, meu irmão!
CAPÍTULO NONO: Tira leite da vaquinha
A noite ia se despedindo, saudando uma nova manhã, deixando em seu rastro uma névoa branca, densa e gelada!
O orvalho da manhã iniciava o dia regando árvores, jardins e plantação.
O caseiro começava a laborar por volta das cinco horas, todo paramentado para o trabalho no curral: galochas, chapéu e o banquinho, de apenas um pé, amarrado na cintura e dependurado por cima das calças, na altura das nádegas.
A cena era inusitada!
Com o caneco em uma das mãos, seguia atrás. Ficava ali por um bom tempo, espiando o trabalho dele junto às vacas, no curral. É um serviço arriscado: ele amarrava as pernas da vaca com uma tira de couro, deixava o bezerro mamar um pouco, para poder descer o leite, afastava o bezerro, sentava no banquinho e tirava o leite das tetas da vaca com uma destreza impressionante.
Essa cena fez eu lembrar de um trecho da música de Caetano Veloso: "Vaca de lindas tetas".
Ele iria repetir o processo em todas as vacas que estavam cercadas no curral. Eu não tinha paciência de esperar: logo que o primeiro balde encheu, pedi a ele para colocar um pouco no meu caneco. Por cima só se via espuma. O leite ainda estava quente. Descia macio pela minha garganta. Sentia saciedade e disposição para iniciar o dia.
Às sete horas os latões de leite tinham de ser colocados na carroça, puxada por um burro ou mula, e entregues na porteira, para aguardar o caminhão da Cooperativa.
Finais de semana não tinha coleta. Nesses dias o leite era utilizado para fazer queijos e doces. Bom demais!
Havia combinado, no dia anterior, brincar de queimada com irmãos e primos que estavam visitando a fazenda.
Naquele dia, enquanto esperava que eles tomassem o café da manhã, peguei uma folha de bananeira, diretamente na árvore, sentei nela e desci o morro, aproveitando que estava ainda úmido pelo orvalho.
Entrei na cozinha, tentando esquivar dos olhares de minha mãe, mas não adiantou. Ela percebeu que meu short estava todo sujo de lama.
Depois desse dia, nunca mais brinquei disso. O sermão da mamãe ecoa nos meus ouvidos até hoje!
Hoje em dia não bebo mais esse líquido que colocam na caixinha e dizem que é leite.
Também não faço mais doce. O pudim de leite, depois de assado, fica mole e branco.
Saudades dos doces, queijos e pudim da fazenda. Só sobrou a lembrança.
CAPÍTULO DÉCIMO: Folia de Reis
Naquela manhã fui acordada pelo barulho alto de tambores e cantorias.
Sentei, assustada, na beirada do beliche, pensando que deveria estar sonhando. Apurei os ouvidos e esfreguei os olhos para terminar de acordar.
Constatei que era de verdade.
O barulho vinha de fora da casa e ia ficando cada vez mais alto.
Levantei apressada, ainda de camisola. Corri para abrir a janela da sala.
O dia estava claro, ainda com névoa, indicando que era muito cedo.
Da janela não deu para ver de onde vinha o barulho. Abri a porta e fui para a varanda.
Olhando para o lado da estradinha de terra, descendo o morro, vi várias pessoas, com roupas coloridas, um estandarte tremulando alto e uma cantoria que ia ficando cada vez mais perceptível.
Ao meu lado, já estavam meus pais e irmãos admirando a incrédula cena.
O silêncio cotidiano das manhãs na fazenda havia sido abruptamente quebrado.
Curiosos, perguntamos ao nosso pai do que se tratava.
Papai, olhando para o terreiro, onde os foliões aos poucos se juntavam, explicou que se tratava da "Folia de Reis", uma festa celebrada pelos cristãos desde o século XIX, que tinha sido introduzida no Brasil pelos portugueses e espanhóis.
Entre os dias 24 de dezembro e 6 de janeiro esse grupo, composto por um mestre ou embaixador, um contramestre, três Reis Magos, palhaços, alferes e foliões, visitavam as casas, sítios e fazendas da região, para comemorar a visita dos três Reis Magos (Gaspar, Belchior e Baltazar) a Jesus, logo após seu nascimento.
Na ocasião eles avistaram no Céu a estrela de Belém e foram ao encontro de Jesus, levando incenso, ouro e mirra para presenteá-lo. O ouro representa a realeza, o incenso a divindade ou a fé, e a mirra a imortalidade.
A tradição recomenda receber os foliões com comida e prendas.
Nesse momento, papai interrompeu a deliciosa e fascinante explicação para dirigir seus olhares para minha mãe e pediu para ela ir para cozinha preparar café e biscoitos para oferecer para os foliões.
Nos dirigimos em direção aos foliões para poder admirar a cantoria e dança de perto.
Foi bonito de se ver! Inesquecível!!!
Cantaram, dançaram e tocaram músicas que relembrava os Reis Magos e menino Jesus.
O som da viola, acordeão, reco-reco, violão, pandeiro, caixa e bumbo estava em perfeita sintonia, ecoando alto, acordando a vizinhança e alegrando a manhã.
Meus olhos, vidrados, não perdiam uma cena.
De repente o mestre levantou a batuta e o silêncio se fez, como mágica!
Papai começou a aplaudir o grupo e a família seguiu seu exemplo.
O caseiro, já acostumado com esse evento, aproveitou o momento para distribuir canecas pequenas, esmaltadas na cor branca, seguido pela cozinheira que, carregando um grande bule abastecido de café quentinho, derramava o líquido nas canecas, enquanto minha mãe distribuía biscoito de polvilho em um cesto grande de vime.
Ao término do lanche, papai agradeceu, cumprimentando um a um do grupo.
Desceram o morro, refazendo o caminho por onde vieram, cantando e dançando ao som dos instrumentos musicais.
Curiosa, perguntei ao meu pai para onde eles estavam indo.
Papai prontamente respondeu:
- "Para a próxima casa".
Acrescentou que a festividade duraria o dia inteiro e seria repetida por dias a fio, em todas as casas, sítios e fazendas da região, até o dia seis de janeiro.
Pensei comigo: esse grupo já tem lugar reservado no céu!
Fiquei ali, parada por infinitos minutos, olhando o pessoal descer o morro e depois subir o outro morro, até a cantoria desaparecer no ar.
Era véspera de Natal. A magia perdurou no ar aquela noite, chegando até às estrelas. O céu estava carregado delas. Parecia que estavam ao alcance de minhas pequenas mãos.
Depois da Ceia de Natal e da distribuição de presentes, fui dormir de janela aberta, olhando para o céu, procurando a estrela de Belém.
Anos depois, em 2017, o Conselho Estadual de Patrimônio de Minas Gerais, declarou a festividade como Patrimônio Imaterial do Estado.
A felicidade estava completa.
Gratidão, Reis Magos!
Agradeço por ter se sacrificado por nós, Jesus!
Os homens estão em guerra, mas a maioria pede paz.
Que a paz volte a reinar no mundo.
CAPÍTULO DÉCIMO PRIMEIRO: Santo Grão
Da varanda, bem cedo, se avistava os trabalhadores chegando.
Era época de colheita de café.
As mulheres cobriam suas cabeças com um pano branco e os homens usavam boné ou chapéu de palha.
O sol já levantava animado para esquentar o dia.
Acordei bem cedo, nesse dia, disposta e animada para conhecer o processo de colheita do café.
Vesti uma blusa de malha de mangas compridas, calça jeans, botas de cano alto de couro e chapéu de palha.
Não existia creme bloqueador solar naquela época, pois a camada de ozônio ainda estava lá para nos proteger.
Quem poderia imaginar que, em um futuro próximo, teríamos de nos proteger da intensa exposição à luz solar, para evitar câncer de pele?
Que os carros e fábricas iriam expelir tanto gás carbônico na atmosfera, provocando, assim, a destruição da camada de ozônio?
Custei a convencer minha mãe a deixar eu ir. Já meu pai não ligou. Pelo contrário, sentiu até orgulho por um de seus filhos se interessar pelos assuntos da fazenda. Autorizou, contrariando minha mãe.
A contragosto, ela preparou uma garrafa de água, caneco de alumínio e fez uma trouxa com pano de prato, com uma marmita dentro.
Estava atrasada, por ter tido de parar para ouvir vários conselhos de minha mãe antes de sair:
- "Fica debaixo da sombra de alguma árvore";
- "Beba água";
- "Não converse com os homens";
- "Volta cedo".
Peguei a garrafa com o caneco e a trouxa com meu almoço de suas mãos e saí correndo atrás do pessoal.
Chegando ao cafezal, segui um dos conselhos de minha mãe e procurei uma árvore com sombra.
Sentei em cima de uma pedra, debaixo das saias de uma árvore, coloquei a garrafa com caneco e a trouxa no chão, ao meu lado. De onde estava, tinha uma visão perfeita dos trabalhadores.
Eles pegavam uma galha carregada de grãos de café e com as duas mãos empurravam os grãos para cair propositalmente no chão de terra vermelha e batida.
Não usavam luvas! Papai não fornecia essa proteção e eles não tinham.
Eles iriam receber por dia, por saca colhida.
Depois de "depenar" todas as galhas da árvore, eles recolhiam os grãos que estavam no chão com uma pá, jogavam em uma peneira, peneiravam para retirar a terra, colocavam em um saco, amarravam e anotavam as iniciais dos seus nomes, com um pedaço de carvão, do lado de fora dos sacos, para poder indicar o responsável, podendo, assim, receber no final do dia.
Os sacos e o barbante eram fornecidos pelo meu pai. O caseiro levava os sacos e os rolos de barbante pela manhã, para o cafezal, de carroça, depois de recolher as vacas e bezerros no pasto, mas antes de ordenhar as vacas no curral.
Após fechar o saco e marcar, eles seguiam para o próximo pé de café.
As horas eram marcadas pela posição do sol. Ninguém tinha relógio. Nem eu. Quando o sol apontava em cima de nossas cabeças, era hora de parar e almoçar.
Procuravam uma sombra para sentar, desembrulhavam e destampavam as marmitas e, segurando um garfo com todos os dedos de uma das mãos, comiam de cabeça baixa, em um completo silêncio. Só levantavam a cabeça e a palma da mão para espantar mosca.
Hoje, quando escuto falar "boia fria", lembro daquele dia de labuta ao ar livre.
O suor caía da minha testa quente, em cima da tampa da minha marmita fria. Não gostei de comer comida fria.
Perguntaram se eu queria que fizessem uma fogueira, para esquentar minha marmita. Com medo da fogueira poder vir a provocar um incêndio e ouvindo o ronco de fome da minha barriga, respondi que não e agradeci pela gentileza deles.
Alguns voltavam para labuta e outros preferiram "tirar uma soneca". Como diz o espanhol: "fazer a siesta".
Os sacos cheios iam se acumulando debaixo dos pés de café.
Quando o sol começou a se pôr, era sinal que o dia de labuta havia terminado.
O caseiro chegava na carroça e os trabalhadores a carregavam com os sacos abarrotados de café.
Eles acompanhavam a carroça a pé e eu ia sentada no banco ao lado do caseiro. Olhando para trás, parecia até uma procissão, seguindo o "santo grão". Ao invés de velas, seguravam peneiras e pás.
Meu pai já esperava a carroça, fumando um cigarro de palha, com uma caderneta na outra mão e uma caneta, sem tampa, atrás da orelha.
Chegando em frente ao porão da fazenda, o caseiro puxou as rédeas, fazendo a mula parar, e eu desci.
Os trabalhadores descarregavam a carroça, colocando os sacos cheios e pesados empilhados no porão. Só dava "dois de alto". O porão tinha o "pé direito" baixo. Tinha no máximo dois metros de altura.
Papai acompanhava, anotando as iniciais e quantidade de sacos na caderneta.
Depois de todos os sacos estarem acomodados no porão e devidamente registrados na caderneta, papai seguia com os trabalhadores para o terreiro, na porta da cozinha, sentava na cadeira na cabeceira da grande mesa retangular e os trabalhadores nos bancos laterais.
Chamava o trabalhador pelo nome. Falava a quantidade que havia sido previamente anotada, retirava o dinheiro trocado da caixa de madeira e pagava.
Depois cada um seguia seu caminho.
Os solteiros geralmente seguiam o caminho para o botequim, para afogar o cansaço em uma garrafa de cachaça.
Já os casados, paravam na venda para poder comprar mistura para os filhos.
Eu fiquei cansada só de ficar sentada o dia inteiro, olhando eles trabalhar.
Não colhi um grão de café.
Os dias seguintes iriam se repetir até os pés de café ficarem aliviados do seu peso.
Eu não. Já tinha alcançado meu intento.
Depois, só na próxima safra. Eu não iria mais. Para mim chega!
O café colhido tinha de respirar. Ele era retirado dos sacos pelo caseiro e espalhados e revirados com uma enxada no terreiro cimentado em frente ao porão, para ir secando debaixo do sol quente.
Nos dias seguintes, o processo se repetia. A diferença é que não mais precisava retirar os grãos dos sacos.
Quando o café estava no ponto de venda ou armazenagem, ele voltava a ser ensacado e guardado no porão.
Papai acompanhava o preço da saca no mercado. Quando chegava no preço que ele almejava, ele negociava e vendia.
No porão ficava armazenada quantidade suficiente para o consumo, até a próxima colheita.
Tenho até medo de um dia esquecer o gosto do café torrado, moído e passado no coador de pano, quentinho e fresquinho.
Hoje, quando abro um pacote de café, é pura decepção: o cheiro e sabor são diferentes. Para pior!
Atualmente existem máquinas automatizadas para colher café.
Em terrenos irregulares, a colheita ainda tem de ser feita manual, mas utilizam luvas grossas e cobrem o chão com lona, para evitar contaminar o grão.
Os melhores grãos são exportados.
Apesar do café brasileiro ser reconhecido no exterior, são poucos os brasileiros que tiveram a oportunidade de experimentar um café tipo exportação.
E viva o café!
CAPÍTULO DÉCIMO SEGUNDO: Dia de procissão
Chegamos atrasados à procissão. Meu pai demorou para estacionar o carro, pois foi difícil encontrar uma vaga naquela pequena e curta rua principal de Piedade.
A fazenda ficava bem depois dela e antes de chegar em outro distrito: Suzana.
Esse distrito ficava situado perto da Serra da Moeda e da cidade de Brumadinho. Na realidade, era distrito de Brumadinho.
Tinha apenas a rua principal asfaltada, que cortava a cidade.
Lembro da secular Igreja da Nossa Senhora da Piedade, que sobressaía imponente, com suas largas escadarias, seus compridos bancos de madeira e santos no altar.
Antigamente as pessoas importantes da cidade, incluindo os padres, eram enterrados debaixo do piso da igreja e somente pessoas de cor branca poderiam adentrá-la. Os cristãos, de cor preta, frequentavam uma Igreja de pedra, localizada em uma ladeira.
Meu pai era um devoto cristão. Batizou e crismou todos os seus filhos na Igreja Católica.
Quando crianças, acompanhávamos nosso pai às missas de domingo. Mamãe ficava em casa fazendo companhia pra Márcia, nossa irmã mais nova, que era paralítica. Não tinha empregada aos domingos.
Em dias de festa, elas se arrumavam e se perfumavam para nos acompanhar. Márcia ia no colo, mais tarde de cadeira de rodas e, depois das cirurgias nas pernas e pezinhos, andava de muletas.
Dia de acompanhar procissão ela ficava em casa ou esperava na casa da Dona Maria, mãe do Antônio Casqueiro, com nossa mãe.
Nós, os cinco filhos, seguíamos atrás do nosso pai, de velas acesas nas mãos e cantando as músicas que eram puxadas pelas beatas, que iam comandando a procissão, atrás do padre.
Às vezes não conseguíamos segurar o riso e caíamos na gargalhada por algum motivo bobo que nos chamava atenção:
- A saia da moça que seguia à nossa frente, que ficou grudada na calcinha, na parte de trás;
- A dentadura da idosa, logo à frente, que teimava em não querer ficar na boca, quando ela cantava;
- Do grito do rapaz quando a vela derreteu, queimando sua mão (ele não colocou cone de papel na vela).
Ao ouvir nossas risadas, papai sempre nos chamava a atenção, nos mandando ficar em silêncio.
Quase chegando à Igreja, onde seria celebrada a missa, queimei, acidentalmente, distraída com a procissão, com a chama da minha vela, um chumaço de cabelo de uma moça que seguia à minha frente.
Horrorizada com o ocorrido, saí da fila da procissão e corri para dentro da igreja, sem olhar para trás. Não contei para o meu pai. Só para os meus irmãos.
Ficávamos entediados e ansiosos pelo término da celebração. Além do padre ficar de costas no altar, a missa era executada em Latim. Era uma alegria quando ouvíamos o esperado "Amém".
Dali seguíamos para o bar da Dona Maria, que ficava em frente à casa dela, para buscar mamãe e Márcia. Papai comprava refrigerantes, pastéis e salgadinhos para nós. Depois, exaustos, voltávamos para a fazenda.
Já nosso pai não pôde descansar naquela noite. Teve de voltar para o velório do morador que havia falecido eletrocutado em um poste. Disseram que o coitado virou carvão.
A igreja católica imperava no Brasil naquela época.
Hoje existem muitas igrejas protestantes.
O importante é não perder a fé e o respeito pela religião do outro.
Principalmente não discriminar as pessoas pela cor da pele, raça ou posição social.
Afinal, somos todos da mesma raça: HUMANA.
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CAPÍTULO DÉCIMO TERCEIRO: Dia de Quermesse
Era dia de quermesse na igrejinha, perto da fazenda.
Tia Neuza preparava a massa dos pastéis, que seriam vendidos na barraquinha.
Papai pediu para o caseiro matar um dos cabritos, para depois ser assado. Seria leiloado durante a quermesse, cuja renda seria revertida para a igreja.
Quando a noite chegava, já estávamos todos prontos para seguir de carro para quermesse.
A igrejinha estava toda iluminada e enfeitada de flores silvestres.
As barraquinhas já estavam montadas em frente à igreja, cheias de salgados, caldos, canjica, churrasquinho no espeto e bebidas para vender.
Cada uma oferecia um produto diferente.
Tia Neuza já estava lá com Tio Tião. Em sua barraca já haviam sido instalados o fogão portátil e o bujão de gás. Os pastéis de carne e queijo já estavam pulando no óleo, dentro da panela.
A fumaça do churrasquinho chamava os cachorros amarelos, que aguardavam ansiosos pelas sobras rondando a barraca.
O povo da região ia chegando aos bandos. A maioria chegava a pé mesmo, pois a distância era curta da casa deles até a igrejinha. Outros a cavalo, carroça ou bicicleta, para economizar energia ou evitar sujar os sapatos de poeira vermelha.
Eram poucos carros estacionados na proximidade da igreja.
As moças da região competiam entre si pela atenção dos solteiros que chegavam de carro. Eram chamadas, pelas "más línguas", de "Maria gasolina".
A posse de um carro estava distante da maioria dos moradores da região. Arrumar emprego na capital era o sonho dos jovens, mas era muito difícil. O salário era realmente mínimo naquela época. Ele só foi valorizado anos depois, no primeiro mandato do governo Lula.
O terreno da igreja estava todo enfeitado de bandeirinhas coloridas, que foram cuidadosamente dependuradas em cordas amarradas em varas de bambus.
O padre tocou o sino, interrompendo o falatório, chamando o povo para a missa.
Todos se dirigiam em direção à igreja, se amontoando dentro, em frente e nas laterais. Era muita gente para uma igreja tão pequena. Devia ter uma meia dúzia de bancos de madeira lá dentro, já amontoados de gente.
O altar era pequeno e rente ao piso. Tinha pouca imagem de santo e alguns quadros deles dependurados nas quatro paredes.
Nosso pai era o responsável, na época, pela condução do padre, do cálice e das hóstias de uma igreja em Belo Horizonte para a celebração da missa.
Depois da missa, era chegada a hora dos festejos. Acendiam foguetes e, em dias frios, também a fogueira.
Terminado o foguetório, era chegada a hora do leilão.
O povo da região era muito católico e colaborativo.
Uns levavam queijo, embalados e amarrados em folhas de bananeira; outros cestos de vime com biscoito de polvilho e broa de milho, previamente assados em fogão de barro; milho verde cru; banana em penca; galinha e porquinho vivos; saco grande contendo fubá; jabuticaba...
Era uma festa!
Quem desse o valor mais alto, levava o produto. Papai puxava o lance em todos os produtos. Todo produto arrematado, ele doava para ser leiloado novamente.
O valor arrecadado no leilão era destinado à manutenção e melhorias da igrejinha.
Tinha uma moradora, na época, que era a responsável por mantê-la limpa e bem cuidada.
O forró começava depois do leilão, ali mesmo, no terreno em frente à igreja. Sanfoneiros e violeiros tocavam a noite inteira, mesmo depois da igreja ter sido fechada e do padre já ter ido embora.
Era a ocasião propícia para unir moças e rapazes da região.
Querendo ficar, mas tendo de ir, não tivemos tempo de presenciar os beijos que certamente seriam roubados.
É disso que o mundo está precisando: fé, união e alegria.
Necessitamos valorizar e preservar as tradições, que fazem parte da cultura desse país, antes que elas sejam lembradas apenas nas páginas dos livros de história.
CAPÍTULO DÉCIMO QUARTO: Milagres existem
Até aquele dia só tinha visto monstros nos desenhos, filmes e pesadelos. Não sabia que eles existiam na vida real.
Fiquei ali, encarando, paralisada de medo!
Ela perguntou se o meu pai estava em casa. Soube que se tratava de uma mulher, por causa do vestido que trajava.
Ao seu lado, segurando-a pelo braço, reconheci um dos trabalhadores da fazenda.
O rosto dela estava totalmente inchado, deformado, irreconhecível! Os olhos saltavam para fora, a boca estufou, o rosto estava vermelho e meio quadrado.
De onde surgiu essa pessoa? Socorro, meu Deus!
- Paaaai....
Logo apareceram, assustados pelo meu grito, meu pai e atrás dele, enxugando as mãos em um pano de prato, minha mãe.
Perdi a voz. Não pude dar explicações.
Do corredor, indiquei a sala com o braço direito e o dedo indicador.
Encostei na parede, dando espaço para eles passarem, seguindo logo atrás, curiosa e temerosa.
Escondida, atrás da minha mãe, deu para ver o olhar de espanto do meu pai.
Reconhecendo o empregado, foi logo perguntando o que houve com a esposa dele.
O moço prontamente respondeu que ao acordar, pela manhã, o rosto da esposa estava inchado, mas que, com o passar das horas, foi só piorando. Acrescentou, muito nervoso:
- "O próximo ônibus para Brumadinho é só no final da tarde. Não tenho carro para poder socorrer minha mulher. Pensei se o senhor podia ajudar a gente".
Papai rapidamente, de forma quase inaudível, disse que ia pegar as chaves do carro.
De passos apressados, passou por nós em direção ao seu quarto.
Retornou rapidamente com as chaves e carteira nas mãos, conduzindo o casal para o carro, que estava estacionado no terreiro da frente.
Eu e minha mãe, mudas e assustadas, ficamos na varanda, acompanhando o carro descer o morro e logo passar pela estradinha do vizinho, deixando um vendaval de poeira no ar.
Da varanda só ouvíamos os latidos dos cachorros, que corriam atrás dos pneus do carro.
O dia se arrastou.
Almoçamos em silêncio, procurando entender o que havia acontecido com aquela mulher.
Mamãe só tinha uma resposta para todas as perguntas que fazíamos:
- "Não sei".
Foi frustrante. Angustiante!
Quase anoitecendo, escutamos a buzina inconfundível do carro do meu pai.
Ele tinha o costume de buzinar insistentemente depois que ultrapassava a porteira do vizinho, para avisar que estava chegando. Gostava de ver todos reunidos na varanda, esperando ele acabar de chegar.
Anos depois, reparei que meus tios e cunhados seguiram o exemplo.
Seguimos para varanda, apreensivos, aguardando notícias da mulher.
Desceram todos do carro: nosso pai e o casal.
De longe não dava para ver o rosto dela. Fiquei frustrada e até triste, pensando que não haviam conseguido atendimento médico para ela.
Ao se aproximar, pude reconhecer a mulher. Seu rosto, milagrosamente, tinha voltado ao normal. Era a mãe do bebê que havia falecido meses atrás, cujo enterro eu havia comparecido e que ficará eternamente em minha memória.
Papai nem esperou as perguntas. Foi logo explicando que ela foi prontamente atendida e medicada no posto de saúde de Brumadinho.
Ela ficou no soro, enquanto aplicavam uma injeção para combater os efeitos nocivos da alergia.
Com um sorriso de alívio nos lábios, mamãe ofereceu um café para o casal. Eles agradeceram, declinando da gentileza, despediram e saíram de mãos dadas, seguindo aliviados a pé, em direção à casa deles.
Uma lágrima correu pelo meu rosto. Minha garganta estava apertada. Olhei para o meu pai orgulhosa e agradecida.
Naquela noite incluí a mulher em minhas orações, pedindo a Deus para proteger aquele casal. Eles não mereciam mais nenhum sofrimento nessa vida!
No dia seguinte, depois do café da manhã, o assunto ainda era o mesmo. Papai comentou que havia saído com o talão de cheques, preparado para pagar consulta particular e remédios, caso não conseguissem atendimento no posto de saúde. Ele sabia que o empegado não tinha recursos. O salário mínimo mal dava para sustentar a casa e, para ajudar no sustento da família, a esposa dividiu o jardim, na frente da casa, e plantou uma horta. Nos fundos, ela criava galinhas e o marido plantava mandioca, arroz, feijão e milho para o sustento deles. A sobra ele vendia para o dono da venda da região.
Percebi, a partir daquele dia, a importância do SUS (Sistema Único de Saúde) para quase setenta por cento da população brasileira, que ganha até dois salários mínimos.
Deu até vontade de estudar medicina. Fui testemunha dos milagres que a ciência é capaz de fazer. Até aquele dia, achava que só Deus fazia milagres. Comentei isso para nossa mãe e ela respondeu:
- "Somos instrumentos de Deus".
Não estudei medicina. Descobri que não posso ver sangue: passo mal. Meu coração também é fraco para conviver com dor e sofrimento.
Tenho um enorme respeito pela ciência e admiração pelos profissionais da saúde!
Viva o SUS!
CAPÍTULO DÉCIMO QUINTO: Noite de fantasma
Haja cama para acomodar toda família na hora de dormir. Ainda bem que a casa era grande.
Apesar de ter sido construída na época dos escravos, os batentes das portas e janelas iriam durar séculos. Foram feitos de dormentes de madeira.
O porão da casa tinha sido utilizado para prender os escravos. Sobraram restos de ganchos enferrujados na parede de pedra, no fundo do porão, como prova desses idos e desumanos tempos. Quando adquiriu a fazenda, nosso pai o usava para estocar café.
O piso da entrada da casa era feito de pedras.
Ao lado, o jardim. Nele já existiam tímidas e frágeis árvores, da época de sua aquisição, com seus troncos e galhos finos, que facilmente envergavam durante as ventanias. Mamãe plantou roseiras de diversas cores: rosa, branca, amarela e vermelha. Na primavera era uma beleza: brotavam lindas miniaturas de flores azuis nas árvores e as roseiras floresciam, enfeitando a frente da casa.
Adentrando o portãozinho, à esquerda, tinha uma porta que vivia trancada por um cadeado. Só meu avô tinha a chave. Lá ficavam dependurados, em grandes e fortes ganchos nas paredes, os arreios e selas; cabrestos; esporas e chicote. Sua capa de chuva, casacão cinza de frio, suas galochas e botas de montaria também ficam guardados lá. Anos mais tarde derrubaram a parede que o separava do quarto ao lado, para poder ampliar e caber mais camas no quarto.
De frente dessa porta ficava a varanda. A paisagem era linda e convidativa. Em dia de calor, estendíamos uma rede, no canto esquerdo, para poder curtir a preguiça, só admirando a paisagem, ao som da revoada de pássaros.
A porta principal ficava no meio de duas grandes janelas de madeira. À noite, do alto do morro, com a varanda iluminada pela luz da lua, tinha-se a impressão que a casa tinha vida própria: as janelas pareciam olhos e a porta um grande nariz.
A janela da direita pertencia a um dos quartos da frente e a da esquerda dava para a sala.
Ao entrar, deparava-se com a sala: era pequena, o suficiente para receber visitas. Tinha dois simples e surrados sofás: um de frente para o outro. No canto esquerdo, uma pequena mesa. Na época do Natal, era usada para montar o presépio.
Na parede de frente da porta, o antigo proprietário dependurou um quadro, bem no alto. Mostrava uma paisagem triste e desconhecida. Não enfeitava. Só ocupava espaço. Ficou lá até a fazenda ser vendida. Ninguém tirou ou substituiu o quadro.
Nas laterais da sala tinham duas portas.
À da direita dava para o quarto dos meus pais. Tinha uma cama de casal, com a cabeceira encostada na parede, debaixo de uma janela que dava para o pomar e uma cômoda debaixo da outra janela, que dava para a varanda.
Em frente ao quarto dos meus pais, ficava o quarto do meu avô: tinha apenas uma cama, um guarda roupa de três portas e uma janela, que dava para o terreiro lateral, aonde ficava o antigo curral.
Anos depois meu pai construiu outro curral, no terreno de cima. O curral antigo, depois de lavado, era usado como garagem. Quando tinha festa, usávamos o comedouro como churrasqueira e o espaço cimentado para os forrós.
O corredor abrigava duas portas. Uma de frente para a outra.A porta da direita dava acesso à dois quartos. O primeiro tinha duas camas: uma era utilizada pela nossa irmã mais nova: Marcinha. A outra pela Nina, babá dela. Tinha uma janela de madeira, fechada por tramela, de frente das duas camas, cuja vista dava para os fundos. Dava para ver as janelas da cozinha e o galinheiro.
A outra porta, dentro do quarto da Márcia, ao lado direito da janela, dava para acessar o quarto dos fundos: tinha dois beliches, onde dormiam eu e mais três irmãs. A janela propiciava uma vista bem verde. Dava para o pomar. Quando as árvores frutíferas estavam carregadas de laranjas e limões, lembrava as cores da bandeira brasileira: verde das árvores, amarelo das laranjas maduras e o branco e azul do céu. Olhando à esquerda, podia se avistar a reserva florestal. Papai preservou. Não derrubou as árvores para fazer pasto. Ele já tinha responsabilidade ambiental desde àquela época, na década de setenta.
Se todos os fazendeiros e agricultores tivessem preservado uma parcela de suas árvores, talvez o clima também tivesse sido preservado.
Após o falecimento do nosso avô, meus pais se transferiram para o nosso quarto e nós passamos a ocupar o quarto que tinha sido do vovô. Nossa irmã mais velha já estava casada, nessa época, ocupando o antigo quarto dos nossos pais.
Voltando para o corredor, em frente à porta do nosso quarto, ficava o quarto do meu irmão, único varão da família: tinha duas camas: a dele e outra para um colega ou parente. Caso chegasse mais visita, uma cama de molas, portátil, era armada na sala ou entre nossos beliches.
Um dia chegou um amigo chato do meu irmão, que teria de dormir na sala, na cama de armar. Ao abrir a cama, ele deparou com um enorme besouro, que havíamos escondido propositalmente lá. Rimos bastante da reação de medo dele. Depois do ocorrido, ele nunca mais voltou, para nossa felicidade.
O chão da casa era de estrados de madeira crua, cuja abertura entre as ripas, podia se ver o porão.
O teto era coberto por esteira de vime, menos a cozinha.
Existia uma janelinha no teto, entre a esteira e o telhado, que de vez em quando a força do vento abria, propiciando a entrada de urubus e morcegos, a procura de abrigo. Nesses dias não conseguíamos dormir. Eles faziam muito barulho. No dia seguinte o caseiro tinha de colocar escada, subir, espantar os bichos e fechar a janelinha. Para felicidade deles, a Tia Almerita raramente ia à fazenda.
A janela do quarto do meu irmão ficava ao lado da janela do quarto do vovô. A paisagem era a mesma: o curral na lateral do terreiro e as goiabeiras.
O corredor terminava no vão aonde ficava o banheiro, à esquerda. O chão era de vermelhão, o chuveiro era esquentado pela serpentina do fogão de lenha e era iluminado por uma pequena janela de vidro.
Saindo do banheiro, tinha uma janela de madeira, de frente, que dava visão para a janela do quarto da Márcia, à direita, onde podia se avistar o moinho e uma parte do pomar.
O penúltimo cômodo era a cozinha, logo após a área que ficava o banheiro: à esquerda ficava o forno, logo acima a chaminé e em frente, o fogão de lenha, que tinha de ficar sempre aceso, durante o dia, para poder fornecer água quente para o banho, cozinhar feijão, defumar linguiças e chouriço, que ficavam dependurados em uma tora de madeira em cima dele, e água quente para coar café. Na frente do fogão tinha uma pia e embaixo dela ficavam guardadas as panelas de ferro, talheres e colheres de pau para cozinhar.
Logo depois da pia, ficava a lateral da despensa. A porta ficava na parte frontal. Lá dentro se guardava mantimentos e latas com carne de porco, que descansava na gordura fria e branca.
Não tinha luz elétrica. Então, não podia ter geladeira.
A cozinha era iluminada por duas janelas e uma porta que ficavam abertas durante o dia.
Em frente à primeira janela ficava uma grande mesa, com bancos ao redor, coberta por uma toalha de plástico, aonde fazíamos as refeições diárias e, nos intervalos, os jogos de canastrão. Podia se ver uma grande árvore, um pedaço do pomar e o moinho.
Entre as janelas da grande cozinha, ficava um armário de duas portas, onde se guardavam copos, canecos, xícaras e pratos. Em cima ficava uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, uma vela, o lampião e um rádio de pilha antigo.
Poucos metros à frente, ficava a outra janela, com duas ripas de madeira, onde ficavam depositados os queijos para curar, impedindo uma visão completa da área externa.
No lado externo da parede da cozinha, embaixo das janelas, papai teve de construir um reforço de pedras, tijolos e cimento, para dar sustentação à velha parede. Em dias de sol, sentávamos em cima para prosear ou deitávamos em cima de toalhas para bronzear. Se usava bronzeador na época. Chegamos a utilizar até óleo de avião, para poder bronzear a pele. Só que não: nossa pele ficava queimada. Ficava vermelha e, depois de alguns dias, retirávamos a pele fina e ressecada com os dedos.
Saindo pela porta da cozinha, ficava o terreiro, cimentado e coberto por telhas. Lá ficava o tanque.
Na parede externa da cozinha, ficava encostado um grande banco de madeira e na frente dele uma mesa rústica, retangular. Ali as carnes eram preparadas para poder ser fritadas na panela de cobre.
Papai construiu um forno de barro e um fogão a lenha com uma grande caçarola acoplada nele.
O pilão também ficava ali.
Nos fundos desse terreiro, do lado esquerdo, papai construiu um puxadinho coberto e um banheiro. Não tinha porta para sair para os fundos, na lateral da casa, para poder ir para o curral. Só uma abertura na parede.
A caixa d'água também ficava lá. Era abastecida com a água que era transportada por tubulação direto da mina. As sobras caiam em uma calha, seguindo em uma queda natural para poder gerar força para o moinho.
À noite, acendíamos lampiões e lamparinas. Quando as camisinhas dos lampiões queimavam, acendíamos velas e lamparinas, até papai trazer mais de BH para substituir.
Estávamos todos dormindo, naquela noite, quando fui acordada pela voz da Márcia. Ela estava sozinha no quarto. Será que estava sonhando alto? Já não bastava o sonambulismo da minha outra irmã? Uma vez deparei com ela de olhos fechados, andando em direção à porta da cozinha. Dizem que não se deve acordar uma pessoa sonâmbula. Ciente disso, encostava minhas mãos em seus ombros, conduzindo-a cuidadosamente de volta para cama.
Levantei, acendi a lamparina e fui até o quarto da Márcia para ver o que estava acontecendo. Chegando lá, ela estava sentada na beirada da cama, conversando sozinha. Não entendi nadinha. Esperei ela parar de falar e perguntei o que ela estava fazendo. Ela respondeu que estava conversando com a Nina, mas que ela já tinha ido embora.
Abri a porta do quarto e saí correndo em direção ao quarto dos meus pais. Bati na porta, nervosamente.
Papai, com voz rouca de sono, mandou voltar para cama, que já era tarde, sem perguntar quem era.
Mamãe, preocupada, levantou, abrindo a porta do quarto.
Perguntei a ela aonde estava a Nina.
Ela respondeu, confirmando o que eu já sabia: ela estava internada no hospital Felício Rocho para fazer uma cirurgia no coração que, à essa hora, já deveria ter sido realizada.
Informei a ela o ocorrido, tremendo de medo.
Ela passou correndo na minha frente e foi conferir o relato com minha irmã. Fui atrás e escutei Marcinha repetir toda história.
Ela ajudou minha irmã a se deitar, a cobriu e voltou para o seu quarto. A segui, sem entender nada.
Mamãe, para tranquilizar, disse que tudo não passou de um sonho e era para eu voltar para a cama.
Do meu quarto, no silêncio da madrugada, pude ouvir mamãe acordando meu pai, relatando o ocorrido para ele.
Pela manhã, papai falou que iríamos voltar mais cedo para capital. Não tinha linha de telefonia na região e naquela época ainda não tinham inventado o celular.
Chegando em BH, papai descarregou o carro e nós entramos em casa. Ele não. Foi direto para o hospital.
Mais tarde ele retornou com a notícia do falecimento da Nina. Ela não sobreviveu à cirurgia.
As formigas haviam subido na parede e não vimos. Passou despercebido.
Descanse em paz, Nina! Você foi um anjo na vida da nossa irmã.
CAPÍTULO DÉCIMO SEXTO: O melhor amigo do homem
A vida é um eterno sacrifício. Aprendi isso muito cedo.
Meu pai tinha um cachorro "vira lata", de cor amarela.
Além da sua fidelidade ao meu pai, tinha um excelente faro. Tomava conta da fazenda como se fosse um Pit Bull treinado. Não deixava nenhuma pessoa estranha passar da porteira. Latia e atacava, se necessário fosse. Seguia sempre atrás do meu pai por onde ele fosse, a pé ou a cavalo.
Um dia ele ficou doente. Já estava velho. Não levantava para nada. Ficava deitado perto da porta da cozinha, quietinho no seu canto.
Papai, condoído com a situação, colocou ele no carro e levou para o veterinário em Brumadinho.
Chegando lá, após examinar o animal e ficar sabendo da idade dele, aconselhou meu pai a deixar o animal lá, para ele poder dar uma injeção, para aliviar o sofrimento e abreviar a vida do cachorro
Nosso pai não deixou. Disse ao veterinário que ele mesmo o faria, no momento que ele achasse necessário. Colocou o cachorro no carro e voltou para a fazenda.
Chegando, deu remédio e um generoso pedaço de carne para o animal. Parecia que ele gostou do passeio, de dar uma volta de carro, de ter ficado sozinho com meu pai, da atenção e carinho que recebeu dele, pois milagrosamente ele estava mais disposto, correndo e até latindo.
Os dias foram passando e o animal voltou a ficar amuado, quieto. Meu pai resolveu que era chegada a hora de sacrificá-lo. Chamou o caseiro e pediu para ele segui-lo com uma pá. Pegou a espingarda e o cartucho.
O cachorro, inocente, coitado, os seguia lentamente.
Sabíamos o que iria acontecer. Corremos atrás do meu pai, implorando para ele ter clemência.
Ele continuou seu trajeto, determinado, mas sem coragem de olhar para trás. Se o fizesse, teria de encarar seus seis filhos, incluindo aí a Marcinha, em sua cadeira de rodas, chorando, cujas lágrimas chegavam a cobrir nossas expressões de súplica.
Nos abraçamos, em volta da Márcia, temendo o retorno de nosso pai.
Menos de uma hora depois nosso pai retornou, nos encontrando reunidos, sentados no banco do terreiro, na porta da cozinha. Atrás dele vinha o caseiro, segurando o cabo da pá em uma das mãos, amparada em um de seus ombros.
Milagrosamente o cachorro vinha lentamente os seguindo.
Papai entrou em casa e guardou a espingarda carregada. Na hora "H" ele não conseguiu.
Consideramos um ato de amor e compaixão. Nunca de covardia!
Nossa alegria durou pouco: ele deu água, um pedaço de carne para o cachorro e o colocou no carro. Ligou o motor, dando partida no carro, nos deixando ali, reunidos na varanda da fazenda, sem entender nadinha.
De uma coisa tínhamos certeza: ele não iria matar o cachorro: a espingarda ficou guardada, em cima do guarda-roupa. Da porta, deu para ver o cano dela.
Depois de algumas horas ele chegou.
Ficamos assustados com sua entrada abrupta na cozinha, pois não escutamos a buzina e nem o barulho dos pneus do carro. Ele não buzinou naquele dia. Ele estava com a testa franzida e mal-humorado.
Fomos lá fora procurar o cachorro. Chamamos pelo nome e ele não apareceu.
Ao nos ouvir gritando o nome do animal, papai apareceu na varanda mandando a gente parar de gritar.
Chegamos perto do nosso pai, perguntando aonde estava o cachorro. Ele respondeu dizendo que soltou ele na Serra da Moeda, no meio de uma mata.
- Por quê, pai?
Perguntamos, assustados.
Ele disse que o cachorro estava velho e doente. O melhor lugar para ele seria no meio de outros animais. Eles iriam entender o sofrimento dele e o cachorro poderia morrer em paz.
Durante a noite, enquanto esperava o sono chegar, tive a impressão de ouvir os latidos do cachorro, vindo lá da serra.
Noite sinistra.
Tive pesadelos com lobos e cachorros se atacando na mata.
Amanheceu chovendo. Até o dia estava chorando...
De repente escutamos o latido do cachorro.
- Seria um sonho?
Só por garantia, fomos para varanda. De lá avistamos o cachorro todo molhado, cansado, andando lentamente. Corremos debaixo da chuva ao encontro do cachorro.
Papai foi mais rápido: ele já estava em seus braços, lambendo seu rosto.
Nos abraçamos em volta do meu pai. Foi um momento mágico! Esse foi, sem sombra de dúvida, um dos momentos mais feliz de minha vida.
A chuva cessou, dando lugar a um lindo dia! A natureza também se alegrou.
Ele conseguiu voltar sozinho, usando apenas seu extraordinário faro para seguir os rastros dos pneus do carro do meu pai. A saudade e o amor pelo seu dono foram o combustível.
Depois dessa lição de amor, companheirismo e amizade, papai devolveu a tarefa pra Deus.
Passaram-se meses, até que, em uma manhã, o cachorro foi encontrado sem vida no seu canto preferido: do lado de fora da porta cozinha.
Ainda bem que ocorreu durante a semana: não estávamos lá.
O caseiro providenciou a cova, enterrou o cachorro, marcando o local com uma cruz, feita com dois pedaços de gravetos.
No final da semana, fomos ao local e nos despedimos dele.
Gosto de cachorro. Hoje tenho um em casa e minha filha tem dois Border Collie na casa dela, mas esse foi especial.
Algum tempo depois desse episódio, nosso tio, Joaquim, irmão do nosso pai, ofereceu um Dálmata, que o vizinho dele queria doar. Papai aceitou, buscou o cachorro, levando-o para a fazenda.
O animal ficou um bom tempo amarrado na cerca, porque era muito bravo. Tinha mordido a perna do caseiro. Não se adaptou à roça.
Papai tentou devolver para o antigo dono, mas ele não aceitou, explicando, somente naquele momento, que o Dálmata tinha mordido a mão de uma criança, no portão da casa dele.
Meu pai tinha seis filhos: crianças e adolescentes. Só de imaginar a filha mais nova, tentando fugir do cachorro de cadeira de rodas, ele não pensou duas vezes: doou o cachorro, não esquecendo de informar que ele era bravo.
Não foi difícil achar quem quisesse, visto que o cachorro era de raça, coisa rara na região.
A fazenda ficou desprotegida, sem cachorro, por algum tempo.
Um belo dia, ele estava voltando da Venda a cavalo, quando percebeu que estava sendo seguido por um cachorro. Não deu importância, pois era normal cruzar com cachorro na estradinha de terra vermelha e batida da região.
Chegando à fazenda, ele apeou do cavalo, dando de cara com o cachorro: ele era “vira lata", de cor amarela, parecido com nosso cachorro que tinha morrido.
Meu pai não entrou na casa. Passou por fora. Deu a volta e seguiu em direção à porta da cozinha. Entrou, colocou água em um pote de plástico que estava vazio e deu para ele beber. Depois foi à despensa, pegou um pedaço da carne, que descansava na gordura, dentro do latão, com uma concha, e ofereceu para ele. Ele cheirou e engoliu rapidinho. Nem mastigou. Devia estar faminto.
Papai pegou mais um pedaço, sentou na escada da cozinha e ofereceu para o cachorro, novamente. Dessa vez ele nem cheirou, mas mastigou. Papai afagou a cabeça do animal e entrou, deixando o animal lá fora.
Não esperava encontrar o animal na fazenda no dia seguinte. Achou que ele voltaria para o dono dele.
Estava enganado: o animal continuou, dia após dia, na fazenda. Como ninguém apareceu para reclamar o cachorro, ele resolveu adotá-lo.
A fazenda voltou a ser protegida. O cachorro parecia a reencarnação do outro: agia e reagia igualzinho.
Anos depois, papai vendeu a fazenda, mas o cachorro ele não deixou para trás, mesmo já estando velho. Levou para o sítio que ele tinha recebido para completar o pagamento.
Protegeu o sítio e fez companhia para o meu pai até o fim.
Ele não foi sacrificado. Morreu no dia que Deus chamou.
Dizem que "o cão é o melhor amigo do homem" (VEST, 1869).
Acredito piamente nisso!
CAPÍTULO DÉCIMO SÉTIMO: Cadê o dedo?
Isso só pode ser coisa de vampiro! Adoro caldo de cana, mas, misturado com sangue, não desce de jeito nenhum!
Vou explicar:
O caseiro estava moendo cana. Esperávamos, em fila, para encher nossos canecos com o caldo, que jorrava verde e espumante no balde.
O bagaço, depois, seria usado para alimentar o gado.
De repente ele se distraiu, moendo um de seus dedos da mão direita na máquina, quando colocava a cana, com ela em funcionamento.
O moedor era um modelo antigo, movido por um motor a diesel.
No mesmo instante o caldo verde vermelhou de vez, até a espuma acompanhou a cor.
As araras, que estavam "discutindo" em uma mangueira acima de nossas cabeças, se assustaram e emudeceram repentinamente, ao ouvir o grito alto de dor expressado pelo caseiro.
Usando a mão esquerda, ele desligou a máquina, pedindo que fôssemos chamar nosso pai. Corremos em disparada, aterrorizados, para pedir ajuda.
Entramos pela porta da cozinha que nem uma "bala", esbarrando nas pernas de nossa mãe, que estava em pé, no meio da cozinha.
Ela segurou meu braço, perguntando o motivo de tanto alvoroço.
Expliquei para ela.
Ela soltou meu braço e eu corri, para alcançar meus irmãos, na busca pelo nosso pai.
Chegando à varanda, o avistamos saindo do curral, vindo em nossa direção. Ele havia escutado nosso chamado. Até os vizinhos devem ter ouvido nossos gritos.
Fomos ao encontro dele, nos encontrando no meio do caminho. Relatamos o ocorrido.
Ele nem bem terminou de ouvir nossas explicações e foi saindo apressado em direção aos fundos do quintal, cortando caminho pelo lado esquerdo da casa. Fomos atrás, em um nervoso silêncio.
A respiração do meu irmão estava ofegante. Ele começou a tossir e ficar vermelho. Parou, tirou a bombinha do bolso, borrifou em sua garganta e nos seguiu. O nervoso fez surgir a crise de asma nele.
Chegamos ao mesmo tempo que nosso pai. Nossos corpos magros e pernas compridas nos tornaram mais velozes que ele.
O caseiro não estava mais gritando. Sua testa enrugada e sua boca cerrada entre os dentes, demonstravam que ainda sentia muita dor. Estava lívido. Branco, igualzinho um boneco de cera. Sentado em um banco, segurava a mão direita, já devidamente amarrada com um pano de prato.
Minha mãe tinha amarrado a mão dele, para estancar o sangue. Dava para ver que era muito sangue. O pano estava todo molhado.
Papai, cuidadosamente, desembrulhou a mão dele, para poder ver o estrago que a máquina tinha feito. Pediu minha mãe para substituir o pano.
Enquanto ela saía para atender o pedido, nosso pai começou a mexer na máquina, que estava desligada.
Ficamos parados a observar, sem perder um gesto dele de vista. Pensei com meus "botões": O que ele estava fazendo? Ele estava perdendo um tempo precioso!
De repente papai exclamou alto, com um sorriso nos lábios:
- Achei!
Segurava em sua mão direita, levantada, para que todos pudessem ver, o pedaço ensanguentado do dedo do caseiro.
Nossa mãe estava voltando com uma toalha de rosto limpa em uma das mãos, mas papai gritou para ela buscar um saco plástico com água fria e levar para o carro. Mamãe voltou a sumir dentro da cozinha, enquanto meu pai levantava o caseiro.
Seguiram para o carro, pelos fundos da casa, amparando o caseiro pelo braço esquerdo.
O deixou na porta do carro, colocou o dedo dentro de um saco plástico transparente, com água filtrada e fria que a mamãe tinha trazido, enquanto nossa mãe trocava o pano sujo de sangue pela toalha limpa
Entregou o saco para o caseiro segurar com a outra mão e entrou dentro de casa, apressado, para buscar as chaves e a carteira.
Voltou, já informando que ele iria parar na Venda para pegar gelo. Eles tinham um freezer horizontal, movido a gás.
Nos reunimos na varanda, para ver o carro descer o morro e subir a estradinha de terra. A velocidade era tanta, que só deu para ver a poeira vermelha subindo e espalhando no ar.
Ficamos um bom tempo conversando e trocando impressões sobre o ocorrido e tentando prever o que poderia acontecer com a mão do caseiro.
A mulher dele seguiu para cozinha com minha mãe. Ela estava visivelmente nervosa.
Anoitecia quando escutamos a buzina do carro do meu pai, anunciando que eles estavam voltando.
Fomos todos para varanda: nossa família e a do caseiro.
O caseiro desceu primeiro. Estava com a mão enfaixada, cujo braço descansava em uma tipoia.
Sua esposa e filhos correram para abraçá-lo.
Meu pai trancou o carro, deixando-os ali, abraçados, seguindo lentamente em nossa direção. Estava com os ombros jogados ligeiramente para frente, denotando cansaço. Agora não precisava mais correr.
Ele foi entrando pela portinha da varanda, já falando, antes que precisássemos perguntar:
- "Conseguiram costurar o dedo. Aplicaram anestesia, vacina antitetânica e antibiótico. Ficará alguns dias de repouso. Daqui três dias retorno com ele para tirar os pontos. Depois ele terá de fazer fisioterapia. Vou chamar o filho do vizinho para substituir ele no serviço".
Mais tarde entendi que o ocorrido tem nome: "Acidente de Trabalho". Onde o patrão, no caso meu pai, tem obrigação moral e legal em socorrer o empregado, assumindo, também, todos os custos com assistência médica.
Novamente papai não precisou desembolsar nada. O pronto socorro pertencia a um hospital público de Brumadinho.
Vida eterna para o SUS!
CAPÍTULO DÉCIMO OITAVO: Dia de coroação
Acredite se quiser: um dia já fui anjo!
Naquela manhã, mamãe pediu para eu ir tomar banho e lavar meus cabelos. Estranhei, mas obedeci. Geralmente a hora do banho era no final do dia, quando chegávamos suados, sujos e cansados de tantas brincadeiras e estripulias.
Após o banho, vesti um vestido surrado, mas limpo. Roupa nova era só para dia de festa.
Geralmente herdávamos as roupas de nossas irmãs mais velhas. As mais usadas seguiam em nossas mochilas para fazenda e ficavam por lá, guardadas, remendadas e limpas, nas gavetas do único guarda-roupa da casa.
Mamãe sempre dizia que as pessoas podiam vestir roupas velhas, surradas e até remendadas, mas nunca sujas, rasgadas ou furadas. Ela considerava desmazelo. Dizia que sabão, agulha e linha todo mundo tinha de ter em casa, mesmo sendo pobre, por considerar itens baratos e de fácil acesso.
Nós não tínhamos vaidade. Não estávamos nem aí! A gente ia sujar as roupas durante o dia mesmo...
Anos mais tarde, reparei que a empregada estava usando um pedaço do meu vestido para tirar poeira dos móveis da casa. Deixei para lá! Minha mãe já havia avisado que se visse eu usando aquele vestido furado novamente, iria recortar e fazer pano de chão. Ela cumpriu a promessa!
Naquele dia, assim que saí do banho vestida com um vestido surrado, mas limpo, mamãe colocou eu entre as pernas dela, penteou meus cabelos, passou limão com água e foi separando meus cabelos em mechas, colocou pedaço de papel, enrolou com os dois dedos indicadores das mãos dela e finalizou a mecha dando um nó no papel.
Repetiu o processo em todo meu cabelo.
Quando terminou, fui ao banheiro para olhar minha imagem no espelho, mas estava ocupado. Tive de esperar meu irmão sair, pois o único espelho da casa ficava lá, em cima da pia.
Quando meu irmão saiu, deu de cara comigo. Olhou para minha cabeça e soltou uma gargalhada de deboche.
Fiquei mais curiosa ainda. Empurrei ele para o lado, entrei no banheiro, subi na cadeira de plástico, que a Márcia, minha irmã mais nova, usava para tomar banho e olhei para minha imagem no espelho. Por pouco não perdi o equilíbrio e caí da cadeira: eu estava parecendo um ET: horrível!!!
Desci da cadeira e corri para minha mãe chorando, dizendo a ela, entre lágrimas e emburrada, que ia ficar em casa. Não ia sair daquele jeito!
Ela, segurando o riso, disse que soltaria os papelotes antes de sairmos.
Resignada, tive de esperar.
Não saí de casa, mesmo assim, para evitar as críticas e deboches dos meus irmãos.
As horas não tiveram dó de mim: custaram a passar.
Estava distraída, quando mamãe chamou para eu ir no quarto dela.
O vestido branco destacava em cima da colcha de retalhos da cama de casal.
Ela desabotoou meu vestido velho, deixando ele escorregar pelo meu corpo, caindo em cima dos meus pezinhos e colocou o outro, empurrando-o pela minha cabeça. Levantei os dois braços para ela acomodar o vestido no meu corpo. Ela subiu o fecho e passou as mãos pelo vestido.
Corri novamente para o espelho do banheiro, para poder conferir: só deu para ver a parte de cima. A parte debaixo tive de abaixar a cabeça para ver.
Gostei: o tecido era branco e todo bordado.
Voltei para o quarto, para ela poder, finalmente, soltar os papelotes dos meus cabelos.
Cuidadosamente ela foi retirando um a um. Ia sentindo os cachos caírem sobre meus ombros.
Quando terminou, ela ajeitou meus cabelos com os dedos e colocou uma armação com uma auréola por cima. Depois ajudou eu a vestir a meia calça branca e a calçar os sapatinhos, estilo boneca, na cor rosa.
Finalizou apertando minhas bochechas com os dedos das duas mãos, dizendo que era para dar um colorido no meu rostinho.
Fui direto olhar no espelho, mas o banheiro estava novamente ocupado. Tive de esperar, ansiosa. Dessa vez foi uma de minhas irmãs que saiu lá de dentro. Ela olhou para mim e elogiou meus cabelos e a vestimenta. Fiquei aliviada!
Foi difícil subir na cadeira, devido comprimento do vestido, mas deu para conferir: não podia imaginar, até aquele dia, o quanto eu podia ficar bonita: os cachos brilhavam, devido ao suco de limão. Estavam firmes. Não iriam desfazer tão fácil. Minhas bochechas estavam rosadas e a auréola dava um ar angelical em meu rosto.
Corri e abracei minha mãe na cintura, agradecendo-a. Ela retribuiu meu abraço com um largo sorriso e um beijo em uma de minhas bochechas cor de rosa.
Papai já estava impaciente no carro, buzinando.
Corremos para o carro.
Chegando à Igreja do distrito de Suzana, lá perto da fazenda, todo meu orgulho "caiu por terra": tinha várias crianças vestidas iguais a mim, espalhadas pela escadaria, na porta da igreja.
Minha mãe apresentou uma senhora, pedindo para eu segui-la e obedece-la. Seguimos àquela desconhecida senhora em direção à sacristia.
Chegando lá, ficamos em pé, em volta dela, escutando atentamente as instruções. Depois saímos pela porta dos fundos, em direção à porta principal da igreja.
Ela nos organizou em fila única, por ordem de tamanho: da menor para a maior. Eu fui a última a entrar.
Chegada minha vez, peguei a linda coroa e coloquei na cabeça de Nossa Senhora, fazendo, em seguida, o sinal da cruz.
Senti que seus lindos olhos azuis olhavam diretamente para mim. Ela vestia um manto azul e seus braços estavam levemente abertos.
A celebração foi abençoada pelo padre, enquanto uma senhora cantava e tocava uma linda música no órgão.
Lembro da estrofe da música até hoje:
"Mãezinha do céu, eu não sei rezar;
Eu só sei dizer: eu quero te amar;
Azul é seu manto, branco é seu véu;
Mãezinha eu quero te ver lá no céu."
Essa música foi tocada e cantada, repetidas vezes, durante toda a coroação. Foi um momento sublime! Estive no céu!
Até hoje não sei aonde mamãe conseguiu a roupa, as asas e a auréola. Não perguntei. Agora é tarde para perguntar: ela já não está mais entre nós.
Só casei no Civil, mas posso dizer que já entrei de branco na igreja.
CAPÍTULO DÉCIMO NONO: Um exemplo de família
Era bonito de se ver!
Da varanda podia-se avistar tia Terezinha descendo o morro do vizinho, a pé, de braços dados com tio Waltinho e seus filhos seguindo à frente, por ordem de tamanho e idade: Ricardo, Cecília, Fernando e Letícia.
A Cláudia foi a filha temporã: nasceu anos depois. Minha irmã mais velha foi convidada para ser a madrinha de batismo dela, na época.
Tia Tetê, como carinhosamente a apelidamos, ainda não tinha aprendido a dirigir, naquela época.
Quando meu pai não podia trazê-los, vinham de ônibus de BH e pediam ao motorista para parar de frente à porteira da "Fazenda da Barra". Só bastava dizer isso.
Eles abriam a porteira e seguiam o resto do caminho a pé, passando em frente à casa do vizinho, antes de chegar à porteira principal da fazenda, para poder subir o morro cascalhado e acabar de chegar.
Todos nós temos um grande respeito e um carinho todo especial por essa família!
Tia Terezinha, na verdade, não era irmã de minha mãe. Eram primas.
Nossa mãe a considerava uma irmã, visto que, quando meus avós maternos morreram, em Lavras, mamãe foi morar com a tia dela, que passamos a chamar carinhosamente de vó Maria, seu marido de vô Antônio, a mãe dela de bisavó Cecília, e os filhos deles Oscar, Ruy, Tereza e Maria da Glória, de tios, na Vila Inhá, no bairro Floresta, em BH, aos 13 anos de idade.
Hoje só dá para ver o portal da Vila, que foi preservado pela construtora. No lugar, construíram um prédio residencial alto, com vários apartamentos.
Vó Maria recebeu nossa mãe em seu lar com muito carinho, sendo a responsável por ela até o dia de seu casamento com meu pai, que foi realizado na igreja da Floresta.
Quando ainda éramos muito crianças, papai ainda nem tinha comprado a fazenda, íamos lá para visitá-los aos finais de semana. Sempre fomos recebidos por todos eles com muita delicadeza.
Nossa mãe sempre teve muita consideração, amor, carinho e gratidão por todos eles.
Lembro que ganhávamos muitos discos de vinil do tio Cacá (Oscar), porque ele trabalhava em uma grande gravadora, no Rio de Janeiro.
Ele foi casado com uma baiana, Tia Léa, muito bonita! Ela pintava lindos quadros.
Acredito que ela tenha inspirado a Letícia, filha da Tia Tetê. Mais tarde ela fez curso de pintura. A foto de um dos quadros dela está estampada na capa desse livro.
Em uma de suas visitas à fazenda, ainda adolescente, ela pintou a tela, colocou em uma moldura e presenteou meu pai.
A estadia deles na fazenda sempre foi curta, por isso, não perdiam tempo.
Tia Terezinha descia o morro, em direção ao riacho, sempre segurando meu tio pelo braço, que tinha dificuldade para enxergar, devido cegueira progressiva. Eram seguidos pela sua prole.
Eu, sempre muito curiosa, ia atrás deles.
Ela procurava por uma sombra, de frente para o riacho, que pudesse abrigar todos nós. Sentávamos debaixo de um bambuzal, lá ficando por um bom tempo, em um cúmplice silêncio, ouvindo o barulho das águas "correndo" no comprido, mas estreito rio.
Os pássaros não gostavam: queriam conversar, namorar, aparecendo para as suas candidatas com suas lindas asas, cantando uma música, cuja letra só eles entendiam.
Minha querida tia nos ensinou a admirar, respeitar e ouvir o som único e perfeito da natureza.
O Ricardo acordava bem cedo, esperando o galo cantar para "pular" da cama. Vestia uma blusa de malha, de mangas compridas, um short, galochas e dependurava um caneco de plástico em um cordão no pescoço, seguindo direto para o curral. Gostava de beber o leite quente e cheio de espuma que o caseiro tirava das tetas da vaca, diretamente em seu caneco. Voltava para casa com um bigode branco, denunciando aonde tinha estado.
Tínhamos quase a mesma idade. Ele era seis meses mais velho que eu e o filho mais velho daquela família. Tinha Síndrome de Dow.
Essa desordem genética não o impediu de conseguir trabalho. Era pontual, esforçado e muito querido no seu local de trabalho, na Imprensa Oficial.
Lembro da nossa tia contar que a geladeira nova foi um presente do Ricardo. Ele economizava seu suado salário para poder realizar seus sonhos e desejos.
Era torcedor fanático por futebol, mas se seu time não correspondesse às suas expectativas, ele trocava a camisa, como forma de protesto, tendo sido torcedor do Cruzeiro e, mais tarde, do Atlético.
Sentia um grande orgulho quando ia visitá-los e o via saindo de mãos dadas com o pai para ir ao clube Olímpico do bairro Serra, perto do apartamento deles. Ele era o guia e companheiro do pai.
Hoje, os dois são falecidos. Devem estar de mãos dadas no Céu.
À tarde, recolhiam suas mochilas para ir embora.
A hora da partida era sempre triste. Não gostava de despedidas.
Papai os levava de carro para esperar o ônibus na porteira.
Aprendi com ele como saber se algum automóvel estava se aproximando: deitávamos na terra, com um dos ouvidos grudados no chão. Não falhava!
Não tinha rodoviária. Isso é coisa de cidade grande.
Nem ponto de ônibus.
Era só levantar a mão que o ônibus parava e todos subiam, procurando espaço nos duros bancos de plástico.
Ficávamos esperando o ônibus sumir na curva, deixando um rastro de poeira vermelha, para voltar à fazenda.
Existem pessoas especiais, que nos ensinam a viver.
Essa família é cheinha delas!
Mais tarde, quando já era uma adolescente, convidei minha tia para ser minha madrinha de Crisma.
Ela aceitou!
Fiz "Normal", no ensino médio, seguindo seu exemplo.
Ela aposentou como professora e, mesmo depois, ainda continuou ministrando aulas noturnas para o EJA.
Depois de formada, fui trabalhar em outra área. Logo depois ingressei na faculdade.
Faltando uns 20 anos para aposentar, fui convidada para ministrar aulas em cursos técnicos. Especializei e fui convidada para ministrar aulas em diversas faculdades. Depois de aposentada, ainda ministrei aulas para cursos de pós-graduação.
Minha tia e madrinha falava que eu tinha jeito para professora, quando fiz estágio presencial em sua escola, com seus alunos, na época que eu fazia Normal, no ensino médio.
Passei metade da minha vida laboral ministrando aulas: ela estava certa!
Segui o exemplo da minha querida tia e madrinha!
Pena que a agitação e afazeres do dia à dia não nos deixa sobrar tempo pra curtir quem amamos.
Te amo, tia!
Adoro vocês, primos!
CAPÍTULO VIGÉSIMO: Dia triste
O dia amanheceu nublado. Ainda não sabia que era um prenúncio de um dos dias mais tristes da minha vida.
Meus tios Alberto e sua esposa Dalva, irmã mais nova de minha mãe e minha madrinha de batismo, continuavam à mesa jogando canastrão com meus pais. Parecia que não haviam dormido. Quando despedi deles, na noite anterior, estavam na mesma posição, jogando.
Os cumprimentei com um usual "bom dia"! Eles levantaram seus rostos, desviando seus olhos das cartas, respondendo, com uma expressão sisuda, em uníssono, um frio "bom dia"! Mais nenhuma palavra ou sorriso. Pelo contrário: percebi uma certa tensão no ar. Logo deduzi que poderia ter ocorrido alguma discussão entre eles, devido alguma jogada infeliz. Deixei para lá. Estava faminta!
Segui direto para o móvel da cozinha, aonde estava o saco contendo pão "dormido". Parti dois pães de sal ao meio, passei manteiga e os coloquei para fritar em cima da chapa quente do fogão de lenha.
Enquanto os pães douravam, cortei duas fatias generosas de queijo fresco, colocando-as, em seguida, em uma das chapas quentes para derreter. Peguei uma faca, virei o queijo e fui buscar um prato de alumínio no armário. Coloquei dentro dele os pães, já com um dos lados dourados, e por cima deles as fatias derretidas de queijo. Peguei a faca e raspei as casquinhas que ficaram grudadas na chapa, para não queimar, colocando as lascas na beirada do prato. Fui logo colocando-as na beirada da língua para degustá-las. Queimei a língua. Bem feito! Não resisti: é uma delícia comer lascas crocantes de queijo derretido.
Despejei o café fumegante, que se mantinha quente dentro do bule que estava em cima da última trempe do fogão de lenha, dentro de um caneco de alumínio. Saía fumaça. Soprei o líquido para amornar antes de beber. Lembrei daquele velho ditado: "gato escaldado tem medo de água fria".
Sentei em uma cadeira, ali mesmo na cozinha, para degustar meu café da manhã.
Percebi um estranho e sinistro silêncio no ar. Sem pronunciar uma palavra, eles continuavam jogando.
Fui para o meu quarto arrumar minha cama e continuar a leitura de um livro.
De porta aberta deu para eu escutar as batidas das tampas ao fechar as panelas, indicando que a cozinheira iniciou o preparo do almoço.
Continuei a leitura.
Umas duas horas depois, ouvi o barulho de uma das janelas batendo. Logo pensei: deve ser o vento. Acho que vai chover.
Levantei, fui em direção à sala e passei a tramela na janela, fechando-a.Voltei para o quarto.
Faltavam poucas páginas para terminar a leitura do livro. Nem bem cheguei na metade da página, quando escutei barulho de coisas caindo dentro do banheiro.
Levantei, novamente. Fui verificar.
Frascos de shampoo estavam espalhados no chão vermelho do banheiro.
Recolhi, colocando-os de volta na beirada da janelinha, fechando-a. Pensei, novamente: deve ter sido a força do vento.
Ao passar em frente à porta do quarto da Márcia, nossa irmã mais nova, lembrei de não ter escutado a voz dela ainda, naquele dia.
Voltei e fui para cozinha perguntar à minha mãe se a Márcia já tinha levantado para o café da manhã.
Mamãe, com um aceno de cabeça, respondeu que não.
Diante de sua negativa, disse que iria ao quarto dela para levá-la para o banho, pois já estava na hora do almoço.
Não estranhei a Márcia ainda estar dormindo. Naquela época a fazenda já tinha luz elétrica e ela ficava até tarde escutando o programa do Hamilton de Castro, que era transmitido pela Rádio Itatiaia, durante a madrugada. Seria surpresa se ela acordasse cedo.
Empurrei a porta pesada de madeira: o quarto estava um breu. Abri a janela de madeira, para clarear o quarto, encostando-a na parede.
Pude ver que a Márcia estava deitada de costas para parede. Suas meias tinham sido retiradas por ela, antes de dormir, e cuidadosamente dobradas em cima da cadeira, ao lado da cama.
Virei seu corpo, levando o maior susto de minha vida: ela estava com o rosto amassado do lado esquerdo, tinha uma estranha espuma saindo de sua boca, estava toda roxa e gelada!
Corri para cozinha, tremendo, tropeçando no pé da cama, chamando meu pai, parando estática na cozinha informando-os que a Márcia estava morta!
Eles levantaram de suas cadeiras aos pulos e assustados. Papai passou por mim, com olhar preocupado, seguindo para o quarto da Márcia. O segui.
Fiquei de costas para janela olhando aquela triste cena: meu pai olhando para ela, minha mãe esfregando os punhos gelados da Márcia com álcool, na esperança de que ela fosse acordar.
Desviei os olhos marejados de lágrimas, em direção à janela e pude perceber que formigas subiam, em fila única, pela parede.
Papai disse que iria buscar um médico em Brumadinho.
Fui com ele.
Fomos direto para a casa do médico, conhecido do meu pai, que já havia atendido a Márcia há um tempo atrás. Conversaram por um bom tempo, enquanto eu os esperava no carro.
Nosso pai saiu de lá, sem o médico, segurando um papel em sua mão. Era o Atestado de Óbito.
Ele havia relatado para o médico que na noite anterior a Márcia não conseguiu urinar. Meus pais iriam levá-la ao médico na segunda feiraMinha irmã tinha problema de paralisia da bexiga desde que nasceu.
Mamãe, desde seu nascimento, de três em três horas, durante 24 anos, tinha de espremer a bexiga para ela poder urinar. Marcinha vivia em consultórios médicos devido infecção urinária.
A paralisia era da cintura para baixo, impossibilitando-a, também, de andar.
Na época, nosso pai buscou a Nina em Vargem Grande para ajudá-la com a Marcinha.
Antes da moleira dela fechar, a cabeça dela foi crescendo desproporcional ao corpo. Seus olhos começaram a inchar, parecendo que iam saltar para fora. Mamãe, então, procurou um oftalmologista, pensando ser algum problema nas vistas.
Esse especialista recomendou que meus pais procurassem ajuda, urgente, de um neurologista.
Após exames, foi constatado que a Márcia havia nascido sem as válvulas que bombeavam água no cérebro. Ela teria de colocar válvulas sintéticas com urgência.
Demorou alguns meses, pois as válvulas tiveram de ser importadas.
Não sei precisar quantas cirurgias a Márcia fez durante sua breve vida. Viveu mais tempo em hospitais do que em casa. Era conhecida e querida por todos os médicos e enfermeiras dos Hospitais Felício Rocho e Belo Horizonte. Teve de operar para colocar as válvulas e depois repetidas vezes, durante sua vida, para trocá-las, quando entupiam.
As válvulas eram substituídas, mas os tubos de plástico, que conduziam a água do cérebro para bexiga, não. Foi enterrada com todos eles.
Operou as pernas e pezinhos, também, para endireita-los e poder usar aparelho para conseguir andar de muletas.
No final, a causa da morte foi parada cardíaca, provocada por paralisia renal.
Fomos escolher o caixão e encomendar o carro fúnebre que iria transportar o corpo da fazenda para o cemitério da Colina.
Papai ligou para o meu cunhado, marido da minha irmã mais velha, para pedir para ele cuidar dos trâmites do velório e enterro. Pediu, também, para ele avisar o restante da família.
Voltamos em um completo silêncio em direção à fazenda. Olhava pela janela do carro, mas não reparava a paisagem. Minha mente estava longe. Lembrava dos momentos felizes que tivemos ao lado dela. Não saía do seu quarto: adorava ficar escutando os discos do Roberto Carlos. Era fã dele. Do dia que ela estava pelada, tão pequena que cabia dentro da bacia cheia d’água, em um dia quente no terreiro, lá na fazenda. Seu sorriso de satisfação era contagiante. Não sei qual das minhas irmãs ficou com essa foto.
Chegando à fazenda, tinham vários carros estacionados no terreiro e cavalos amarrados na cerca: era o povo da região. A notícia "corre" rápido na boca do povo. Alguns apareceram por mera curiosidade. A maioria gostava realmente dela. Ela era querida na redondeza.
A cozinheira não parou um minuto: servia café e biscoitos para o pessoal.
A Helena estava lá. Ela é filha do dono do sítio que ficava ao lado da fazenda, depois do riacho. Ajudava mamãe com a Márcia, desde o falecimento da Nina. Ela deu banho em minha irmã e colocou a roupa que Tia Dalva tinha levado para ela, de presente.
Marcinha estava deitada em cima de uma mesa, coberta por flores silvestres.
Uma Senhora, conhecida da igreja, estava rezando o terço. Todos acompanhavam a reza.
O corpo não podia ficar lá por muito tempo. Assim que o carro fúnebre chegou, colocaram o corpo dela, cuidadosamente dentro do caixão, fecharam, colocaram no carro fúnebre e seguimos atrás, no carro do nosso pai. Nossos tios nos seguiram, no carro deles. Alguns vizinhos mais chegados também foram atrás, formando um cortejo.
Foi uma viagem lenta e silenciosa até chegar ao Cemitério da Colina. Ao chegar, os familiares e amigos da família já estavam lá.
As coroas de flores não paravam de chegar.
A despedida dói fundo no coração da gente.
Algumas pessoas sorriam ao cumprimentar. Nessa hora lembrei de um trecho da música "A flor e o espinho": "Tire esse sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor".
A noite foi fria e solitária. Ficaram apenas alguns familiares.
Pela manhã o padre chegou para "encomendar" o corpo. Depois seguimos para acompanhar o enterro.
Dei um beijo em uma rosa e joguei em cima do caixão, durante a descida dele. Ela não ia ficar sozinha: meu avô estava lá, na gaveta debaixo.
Chegando em casa, sentamos todos em volta da mesa, que havia sido posta pela empregada. Não queríamos comer. Só conversar.
Chamei tia Dalva, conduzindo-a pelo braço em direção ao meu quarto. Lá chegando, fui logo perguntando o motivo dela ter levado a roupa que a Márcia foi enterrada, de presente para ela, sendo que não era Natal e nem o aniversário dela. Foi aí que ela contou:
Haviam avisado a ela, no Centro Espírita, que a hora da Márcia estava chegando.
Completou, dizendo que comprou a roupa e pediu ao marido dela levá-la à fazenda. Ela chegou no dia anterior à morte de minha irmã. Entregou o presente e a Márcia, toda satisfeita, foi logo vestindo a roupa, para ver se servia.
Quando a Márcia estava de cabeça baixa, tirando umas bolinhas da roupa com os dedos, minha tia viu o espírito dela querendo sair de seu corpo. Foi nesse momento que ela teve a confirmação.
Ela voltou para copa e eu fiquei ali, sozinha no quarto, tentando entender.
Por isso que todos estavam estranhos aquela manhã: tia Dalva deve ter contado para eles.
Será que os barulhos que ouvi teriam sido provocados pelo espírito da Márcia? Ela querendo nos avisar que estava morta no quarto?
Fui dormir na cama de casal dos meus pais, no meio deles. Não tive coragem de ficar sozinha no meu quarto.
"Existem mais mistérios entre o Céu e a Terra, do que a vã filosofia dos homens possa imaginar" (SHAKESPEARE, William; 1564 – 1616).
Descanse em paz, minha querida e saudosa irmã!
CAPÍTULO VIGÉSIMO PRIMEIRO: Tudo tem um fim
Um dia tudo chega ao fim. Nossos dias na fazenda também.
Papai a vendeu, de porteira fechada, para um vereador de Brumadinho. Recebeu dinheiro e, para completar o pagamento, um sítio e um terreno em frente, separado por uma estrada de terra.
O caseiro recebeu, como acerto trabalhista, um pedaço desse terreno, onde ele iria construir uma casinha para poder morar com a família. Eles estavam felizes. Teriam um pedaço de terra só deles para plantar e acabar de criar os filhos. Não ia ficar desempregado. Continuaria trabalhando para o meu pai, para vigiar e cuidar do sítio.
Mal sabia eu que aquele dia na rede, com minha filha bebê, aconchegada em meus braços, e meu marido dormindo no quarto ao lado, seria a despedida.
Guardei a imagem em minha memória, como se fosse a pintura de um quadro: o céu estava azul naquela manhã. Algumas nuvens passavam preguiçosamente embaixo dele, branquinhas e disformes.
Um pássaro preto pousou na árvore, à minha frente, encarando meu rosto, quieto, só olhando eu balançar a rede, com a perna direita esticada e meu pé encostando na grade para dar o balanço. Acho que veio se despedir.
Um mosquito ficou voando ao redor de nossas cabeças. Esse queria nos afugentar dali.
As árvores e o céu se moviam, com o balançar da rede.
As rosas se despiam à minha frente. Suas pétalas iam aos poucos cobrindo o chão de terra vermelha. Não iria ver os próximos botões nascer.
Podia ouvir o mugir das vacas no curral. Deviam estar dizendo "adeus".
Daquele dia em diante não poderia mais visitar a fazenda para mostrá-la para minha filha, quando estivesse crescida: o novo dono iria derrubá-la.
Adeus fazenda querida!
Agradeço pelos quase trinta anos de convivência!
Você acompanhou nossa infância, adolescência e maturidade.
Testemunhou alegrias e tristezas.
Nascimento de alguns e morte de outros.
Festas juninas, de casamentos, aniversários, natais, viradas de ano, Copas do Mundo, o primeiro passo do homem na lua, novelas de rádio....
Abrigou conhecidos e desconhecidos, incluindo estrangeiros.
Aguentou firme as tempestades.
Brilhou nos dias de sol quente.
Ficou famosa na região: naquela época todos a conheciam ou ouviram falar de você: "Fazenda da Barra".
Por sua causa, papai conseguiu casar todas as quatro filhas: os genros achavam que papai era rico. Que iria deixar a fazenda como dote. Eles também devem ter ficado tristes nesse dia.
Depois compreenderam que papai já estava velho, diabético e manter a fazenda estava ficando difícil para ele: era muito trabalho e pouco retorno financeiro. Já não tinha o apoio do nosso avô para administrá-la.
Tinha perdido dois filhos e as outras quatro já estavam casadas. Já não encontrava mais prazer.
Quando adentramos pela sua majestosa porta, éramos nove: nosso avô, pai, mãe e seis filhos. Quando sua porta foi definitivamente fechada e trancada, éramos apenas seis: pai, mãe e quatro filhas.
Ao mesmo tempo que nossa família reduzia, foram chegando os genros e os netos. A vida é assim: enquanto uns vão embora, outros vão chegando.
Em sua soleira mais ninguém iria colocar os pés.
Suas portas e janelas serão eternamente fechadas.
Ninguém teria mais a oportunidade de apreciar as lindas paisagens de suas grandes e fortes janelas.
A fumaça de sua chaminé será eternamente apagada.
Adeus, querida amiga!
Nos encontraremos nas lembranças e sonhos bons.
Agradeço pelos lindos momentos que você proporcionou à nossa família.
“O que importa não é o que você tem na vida,
mas quem você tem na vida”.
(SHAKESPEARE, William; 1564 – 1616).