Feicibuqui

A cozinha muito clara recebia a luz e o ar fresco matinal. Um pássaro curioso, pousado no parapeito da janela, atiçava o cachorrinho esperto e brincalhão.

Em seu vestido rodado, branco com bolinhas pretas, sapatinho combinando, a mãe retira a margarina da geladeira.

Sorri singela e elegante. De maquiagem, apenas um batonzinho cor-de-rosa, cabelos num estilo semelhante ao de Jane Wyatt, como naquele seriado “Papai Sabe Tudo (Father knows best)”, da década de 1950.

O pai bem barbeado vestia uma roupa social que ainda aguardava o acompanhamento da gravata e do paletó. Os avós, metidos em abrigos de ginástica, logo mais iriam para o “Clube da Melhor Idade”. O casal de filhos, uniformizados, mantinham-se impecáveis.

Alguém disse algo engraçado e todos riram em tom agradável e educado.

De repente começa a tocar a música “Perhaps Love”, na voz de Plácido Domingo e John Denver.

Com um semblante delicado e amoroso, a mãe passa margarina numa torrada e a oferece a filha.

A vovó afaga a cabeça do menino que tinha cara de bom menino. Limpo, cheiroso, obediente, unhas bem cortadas, sem nenhum arranhão pelo corpo.

A música continua tocando. A porta se abre e produz um rangido cortante.

Era Suellen em seus sete meses de gravidez. Vestida com roupas velhas, surradas, porém confortáveis, trazia um lenço mal amarrado na cabeça.

- Já falei para não passar por aqui a essa hora.

- Ora! Até parece que eu vô dar a volta pelo quintal com essa trouxa enorme de roupas. A lavanderia é logo ali. E pra quê? Pra senhora fazê filminho pra colocar no feicibuqui?

- Insolente!

- Não fale assim, querida. Ela está grávida. Ela não precisa dar a volta pelo quintal.

- Quem é o pai, Suellen? Perguntou o vovô.

Os olhos do marido e da empregada se encontraram por breves segundos, enquanto a música de fundo voltou a tocar.

J. Campos

Barueri, 25-11-2018

 

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