Filme: "Uma Prova de Amor" - brevíssimo estudo de caso
Filme Uma Prova de Amor - (Disponível Prime Vídeo)
Kate tem um tipo raro de câncer, diagnosticado quando ela tinha 5 anos de idade. Na oportunidade, a família nuclear era formada pelo casal de pais, Kate e um irmão mais novo. Com os cuidados necessários à filha, Sara assume como cuidadora principal e pausa uma carreira bem estabelecida, sem que isso afete negativamente a vida financeira da família. Da família ampliada, podem contar efetivamente apenas com a tia materna de Kate.
Das opções de tratamento, devido a incompatibilidade dos familiares para doação, foi sugerido a gestação de uma criança programada geneticamente que pudesse ser uma doadora compatível... Assim nasce Anna, que passa a servir como fornecedora de “insumos” biogenéticos ao tratamento da irmã mais velha.
Com a evolução da doença, vários aspectos da vida familiar são negligenciados e cada um, a sua maneira, mais ou menos impactado por essa nova dinâmica familiar, para além das questões diretamente relacionadas à doença e tratamento de Kate. Ainda assim, demonstram ter relativa maturidade e vínculos afetivos/emocionais preservados, sem uma desestruturação que inviabilizasse a dinâmica funcional familiar.
Graças principalmente aos esforços de Sara, e aos “insumos” fornecidos por Anna, Kate consegue ampliar sua expectativa de vida com alguma qualidade, mas o prognóstico continua sendo ruim, até que as possibilidades de intervenção médica se esgotam e cuidados paliativos passam a ser considerados, apesar da contrariedade da mãe.
No entanto, toda a trama parece se desenrolar a partir da negativa de Anna em seguir sendo doadora compulsória da irmã, buscando judicialmente a emancipação médica para que pudesse decidir como dispor de seu corpo, mesmo que isso implicasse na morte da irmã.
Vamos lá.
Podemos dizer que se trata de uma doença de início gradual, o que permite à família um maior tempo inicial para adaptar-se a situação, mas sua evolução progressiva, após período de remissão e recidiva, “continuamente sintomática e que progride em severidade”, vai requerer da família muita flexibilidade para os ajustes contínuos necessários na rotina e papeis familiares.
Neste momento, é muito importante que o profissional, ou a equipe que acompanha o caso, fortaleça a família e seus membros para desenvolver e mobilizar recursos internos que possibilitem melhor adaptação às novas situações e lidar, de forma adequada, com cada uma delas.
Importante também estar atento a como cada membro individualmente lida com a doença, os conteúdos que emergem, para que possam ser passíveis de intervenção oportuna, em especial ao cuidador principal.
Evidentemente, as intervenções e abordagem serão distintas para cada momento da doença:
· Fase de crise, aquela que inclui o período sintomático antes do diagnóstico e plano de tratamento pós diagnóstico;
· Fase crônica, que incluem a manutenção do tratamento e questões sobre a doença e morte.
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· Fase terminal, quando o tratamento não é mais focado na doença, a morte é um dado de realidade e o foco seria nas questões relacionadas à morte, luto e reorganização da vida para aqueles que ficam.
À época do diagnóstico, o ciclo de vida familiar proposto por Carter e McGoldrick, era o “Tornando-se pais: famílias com filhos pequenos”, mas para efeito de propostas de intervenção nesta atividade, foi considerada “A transformação do sistema familiar na adolescência”, período em que se desenrola o filme e todos os personagens estão em cena.
Neste momento, os pais já precisam lidar e trabalhar para o desenvolvimento e independência dos filhos, não tendo mais como impor uma autoridade completa sobre os filhos, o que se evidencia no pedido de Anne por emancipação médica.
Nessa fase, com o surgimento da doença no núcleo familiar, a equipe precisará garantir apoio a esta família para que as “tarefas” próprias desse ciclo de vida, não sejam esquecidos por outras demandas e que elas possam fazer parte do plano de cuidado da família, para além das questões relacionadas a doença.
Individualmente, partindo da teoria da personalidade de Eric Erikson, onde cada estágio, dos 8 propostos por ele, assumem personalidade própria e é caracterizado por uma crise de identidade. Nesta família encontramos o estágio da adolescência, dos filhos, e idade adulta, dos pais.
Temos, portanto, pontos de atenção individual em dois momentos. Primeiro, de garantir condições para que os adolescentes desenvolvam sua autonomia e consolidem sua individualidade enquanto pessoa e não mais atrelada às expectativas e ordenamento paternos, sendo necessário incluir os pais nesse processo para que o movimento seja de libertação compartilhada e não de ruptura familiar. Depois, temos os pais... Na fase adulta, as pessoas assumem um lugar na sociedade e se responsabilizam por este lugar, no que produz, no que podem deixar de legado e cuidar daquilo com o que se preocupam... Por si só não é tarefa fácil, material incessante para terapia e, principalmente, se incluirmos nessa equação a presença de um familiar doente, outros atores da equipe vão precisar se reunir para compor o cuidado integral destas pessoas.
De uma forma geral, a ocorrência da doença crônica na família, ainda mais com a severidade apresentada no filme, pode-se assemelhar à adição de um novo membro (indesejado) à família, produzindo novas formas de relação entre seus membros e com a enfermidade, sendo necessário também que alguém assuma mais um papel nessa relação: a de cuidador (principal ou secundário). No filme estes papeis se apresentam bem definidos e podem ser fonte importante de estresse, desestabilização emocional, desgastes de suas relações e isolamento, devendo ser objeto de atenção de toda a equipe, para que os cuidados ao doente sejam oferecidos e que a saúde global do cuidador não seja negligenciada.
Quanto a equipe, um capítulo à parte, mas vale ressaltar o que segue. Deve-se cuidar para que a atuação seja num formato interdisciplinar, que os saberes possam se complementar, que a atuação possa ser compartilhada e responsabilizada, pelo bem do paciente e desenvolvimento da equipe.
Aí vocês vão me perguntar: Onde está o SUS nesse relato todo? Respondo: Está na provocação.
O nosso SUS é para todos e, enquanto não tivermos isso muito claro, e não trabalharmos para isso, pode parecer que só atendemos quem não tem condições de ter um plano de saúde... como se a maioria destes planos que existem, fossem bons parâmetros, não é mesmo?
Sabiam, por exemplo, que o SUS tem equipes específicas para atendimento domiciliar em diferentes níveis de complexidade? Sabem quem são os profissionais que compõe essas equipes? Sabem quem são os pacientes que podem ser beneficiados por este tipo de atendimento?
Pois é, se fosse aqui no Brasil, Kate e sua família teriam direito a esse tipo de atenção e não tenho dúvidas que seriam muito bem atendidas. Aproveito para deixar aqui toda minha admiração e respeito aos amigos da AB, EMAD e EMAP.
Quanto ao fim do filme, bem, não vou dar spoiler.