FOI GOLPE!

Naquele longínquo 5 de abril de 1992, às 10 horas da noite de um domingo, eu desembarcava no aeroporto Jorge Chavez, em Lima. Ao dar o primeiro passo para fora do avião, pisando no degrau inicial da escada que me levaria à pista, fui recepcionado por uma brisa cálida que, movida por algum extravagante fenômeno meteorológico, soprava do frio Pacífico diretamente para meu rosto. De ambos os lados dos Andes era outono e, por isso, estranhei o calor úmido nessa região, sabidamente desértica onde, raramente, se vê uma única gota de água despencar das nuvens cinzas que cobrem a cidade o ano todo, como viria a descobrir nos próximos doze meses em que lá estive. Da costa chilena, ao litoral do Equador, o clima é árido. O excelente voo da Varig que atravessara a Cordilheira, permaneceria por uma hora na capital peruana quando, uma vez mais decolaria na direção de Los Angeles, para uma última escala antes de seu destino final: Tóquio. Já em solo firme, ou asfalto se preferirem, caminhei até o local em que se resgata a bagagem, sem deixar de bisbilhotar o lado de fora do Terminal, à procura de um rosto amigo, pois Milagros Plaza, a gerente geral da Young & Rubicam Peru, confirmou que estaria presente no momento de minha chegada. E, de fato, estava acompanhada de Pepe Rosenberg, o diretor financeiro da agência. Antes de atravessar o portão que me levaria ao encontro de meus empregadores, troquei alguns dólares por “soles”, a moeda nacional, medida que se provou equivocada, já que o país andino adotara o duplo câmbio e o dinheiro americano era tão ou mais aceito que o local. Aprendi a falar e a escrever o espanhol muito rapidamente, mas naquele preciso instante em que recebia os abraços de Mila e Pepe, meu castelhano não era muito melhor do que o inglês de Joel Santana. O que me salvava era a pronúncia, nunca tive qualquer dificuldade em captar a “musicalidade” das línguas. E passei a pronunciar meu breve portunhol com acento hispânico e assim me fazia compreender melhor, mesmo quando não entendia nada do que eles falavam. Do aeroporto ao “hostal”, em que ficaria na primeira semana, demoramos não mais do que meia-hora. O trajeto revelou que as periferias das grandes cidades latino-americanas são todas iguais, onde pude testemunhar acúmulo de lixo e de habitações envergonhadas de sua pobreza, tal qual encontramos nos cinturões urbanos de nossas metrópoles. Antes de seguir adiante, esclareço que “hostal”, como empreguei acima, não foi um erro de digitação, mas sim a palavra usada para se denominar o que mais tarde viria a ser chamado de hostel. Lá chegando, preenchi meus dados, peguei minha chave e, acompanhado por um funcionário do estabelecimento, subi para meu quarto, depois de uma despedida acalentada por novos abraços, apertos de mão, sorrisos e uma infinidade de “muchas gracias” e “hasta mañana”, generosamente distribuídos por Milagros e Pepe. Quinze minutos depois de instalado, trajando pijama e com a televisão ligada, onde o Presidente Alberto Fujimori ocupava o que parecia ser uma rede, com todos os canais exibindo o mesmo programa, tocam à porta de “mi habitación”. Quem poderia ser àquela hora, quase meia-noite? Abro e, para minha surpresa, um tão cuidadoso quanto constrangido Pepe Rosenberg tenta me informar o que creio ter sido: “Hola, Zoca, perdoname la moléstia, pero hay un pequeño inconveniente, parece que hubo un golpe de estado, y seria mejor que no salgas del hostal hasta que lo recojamos por la mañana! Has entendido? De acuerdo?” Si, claro, de acuerdo! Assenti eu, quando na verdade a única coisa que, realmente, compreendi daquela enorme sentença foi “golpe de estado”, expressão de conhecimento continental, de tradução instantânea para qualquer sul-americano com um mínimo de memória histórica. O “pequeno inconveniente” como, delicadamente, mencionado por Pepe, explicava a presença de Fujimori em rede nacional de televisão. No momento em que me preparava para o sono dos justos, ele comunicava ao país a interrupção dos Poderes Legislativo e Judiciário. Medidas que viriam seguidas da imposição de toque de recolher e a suspensão de alguns importantes direitos civis. Mas considerando o que não vi durante o itinerário entre o Jorge Chavez e o hostal, provavelmente, até as forças armadas foram surpreendidas pelo golpe, já que não lembro de termos cruzado com um só tanque ou blindado sequer pelo caminho. Mas eles estavam lá, e pude vê-los em toda sua assustadora dimensão nos meses que viriam. Aliás, vi todo tipo de veículo militar e outros que só ouvia: os carros bomba que o Sendero Luminoso preenchia com centenas de quilos de dinamite e ao explodirem, produziam um deslocamento de ar sentido onde estivéssemos em Lima. Contudo, havia um efeito muito mais devastador gerado pelo rebentar desses artefatos móveis: estilhaços que destroçavam gente próxima a seu raio de alcance. Um desses pavorosos atentados, o da “Calle Tarata”, motivou a criação de um anúncio que concebi no dia seguinte ao ataque. Ao lado da foto da destruição perpetrada por seres humanos contra outros seres humanos, que consumiu 25 vidas, coloquei um título: “Parece Beirut, pero la gente está diciendo basta em castellano”. Sentíamos a pressão da “guerra popular” que o Sendero dirigia contra alvos específicos, cada vez mais próxima. Até setembro daquele ano, quando a Dincote (Dirección Nacional Contra el Terrorismo) capturou Abimael Guzmán, o dirigente máximo da insurgência maoísta, a capital peruana sofreu a maior escalada de atentados jamais registrada até então. Quartéis, delegacias de polícia e empresas multinacionais constituíam o objetivo primário das investidas terroristas. Dezenas de grandes edifícios envidraçados, transformaram-se em carcaças de aço, tamanho era o poder liberado pela detonação de cargas de TNT nas proximidades desses prédios. Explosões que reduziam janelas em lascas de metal, vidro e madeira e estes em lâminas que dilaceravam tudo que estivesse em sua rota letal. Diversas empresas de origem, principalmente, norte-americana, retiraram seus nomes das fachadas. Fizemos o mesmo e, de um dia para o outro, a placa que identificava a Y&R, desapareceu da vizinhança. KFC, McDonalds, Diners Club, General Motors, American Express, Esso e tantas outras marcas perderam sua identidade pública o que, cá entre nós, é menos dramático do que perder partes do corpo, senão o próprio, como resultado “de la explosión de un coche-bomba”. Vinte e cinco anos após meu retorno ao Brasil, trouxe dessa experiência de trabalho na linha de fogo, um inestimável aprendizado no que diz respeito ao relacionamento, frequentemente, conflituoso da criação com o atendimento e planejamento e, por vezes, até com a direção de criação. Quando nos fazem pedidos ou alterações que soam como o fim do mundo, creia, uma Kombi com meia tonelada de explosivos parada na esquina, prestes a estalar, isso sim é o fim do mundo. O resto é só encheção de saco de quem não sabe fazer. 

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