Frustrados e mal pagos

1. Toda a responsabilidade das mudanças projectadas para a Educação cai sobre os professores, sendo tão curioso verificar o topete com que se anuncia hoje como novo e criativo tudo o que já foi usado e abandonado, como registar as incoerências crassas no seio daquilo que é proposto. Com efeito, que credibilidade podemos atribuir a uma estratégia de intervenção pedagógica que afirma querer construir um novo perfil de saída dos alunos, assente em novas competências, sem tocar no currículo e que afirma, igualmente, que vai definir as “matérias essenciais”, quando essa definição, obviamente, significa intervenção nos programas? Como serão feitos os exames e as provas de aferição? Considerando os programas, em que não vão mexer, ou as matérias essenciais, que vão definir? Tudo isto é uma trapalhada para tornear a lei, que prevê 20 meses entre o momento em que as alterações são anunciadas e o início do ano a que respeitem. Mas se é insensato achar que se pode fazer isto sem mudanças curriculares, mais insensato ainda é pensar que se pode desenvolver uma cultura altamente cooperativa e de trabalho conjunto entre os professores sem intervir nas suas cargas lectivas e não lectivas, designadamente na estúpida burocracia que os submerge.  

2. Com o contentamento irresponsável de quem não conhece a realidade, o ministro da Educação puxou pela cabeça e descobriu que a distância entre os nossos jovens e o iluminismo das metas para o século XXI se deve à inadequação da formação de 35 mil professores, que quaisquer 18 milhões de euros resolverão. À burocracia sem sentido que já existia somou a burocracia de um plano de combate ao insucesso, assente na formação do “Professor Novo” e no controle de régulos sobre escravos. Os arautos da flexibilização a qualquer título para os alunos são os mesmos que ajoujam os docentes sob a rigidez estúpida de relatórios inúteis e torrentes de formação bafienta, que passa ao lado da causa das coisas mas, subliminarmente, inculca na classe um dissimulado complexo de culpa e muita frustração. Como gostaria de ver todo este folclore lançado à sarjeta, pela reclamação vigorosa, por parte da classe, do respeito que merece e do pagamento que lhe é devido, depois de uma década de progressão na carreira suspensa e salários congelados. Exemplos recentes de direitos amarrotados, sem reacção adequada?

A secretária de Estado Ajunta e da Educação determinou em despacho que não haverá licenças sabáticas no próximo ano, fazendo, assim, tábua rasa do que prevê o nº1 do art.º 108 do estatuto de carreira dos professores. Nada aconteceu, que se visse.

O IAVE pediu dispensa oficial de serviço para os professores envolvidos na formação de supervisores das provas de aferição do básico, conforme o previsto no art.º 109 do citado estatuto e na portaria 345/2008. O despacho sancionador do pedido diz que as aulas perdidas têm que ser repostas pelos dispensados ou por colegas. O IAVE invocou o interesse público. Mas quem paga o interesse público é o lombo dos professores, com trabalho extra não remunerado. Para Governo de esquerda, estamos conversados. Mas os professores amocharam.

3. Quando um indivíduo utiliza o conhecimento e as competências que adquiriu para resolver problemas e satisfazer as necessidades dos outros, sejam os outros indivíduos ou organizações, e o faz num quadro próprio do ponto de vista legal, moral e ético, a troco de um pagamento que contribui para a garantia da sua própria subsistência e autonomia, dizemos que ele tem uma profissão.

Todas as profissões são humanamente dignas. Mas todas as profissões são diferentes. Porque têm utilidades diferentes, complexidades diferentes, requisitos diferentes e, naturalmente, reconhecimentos sociais diferentes. A profissão docente assume relevo particular por cumprir um direito humano básico: o direito à educação. Todavia, o seu estatuto social é cada vez menos prestigiante e nada gratificante, gerando docentes, exaustos, frustrados e mal pagos.

In "Público" de 5.4.17


Entre para ver ou adicionar um comentário

Outros artigos de Santana Castilho

  • A escola em rota de desastre

    A escola em rota de desastre

    Quem acompanhou a expressão e a evolução do pouco que foi dito pelos putativos responsáveis pela definição das…

  • Pouco senso, demagogia e cartaz

    Pouco senso, demagogia e cartaz

    Sobram-nos diagnósticos e propostas, com tanto de criatividade quanto de irrealismo e populismo. Faltam-nos políticos…

    1 comentário
  • A mediocridade do programa eleitoral do PS para a Educação

    A mediocridade do programa eleitoral do PS para a Educação

    O que me tem sido oferecido, em sede de pré-campanha eleitoral, configura desprezo pelo debate social sério, que…

  • Para que serve uma escola que nem a integridade física dos seus alunos protege?

    Para que serve uma escola que nem a integridade física dos seus alunos protege?

    A escola pública vive numa espécie de parque temático de desconcerto, desagregação e declínio. Não lhe bastava já ter…

    2 comentários
  • Irresponsabilidade e maldade

    Irresponsabilidade e maldade

    Terá João Costa (JC) queimado na fogueira da inquisição pedagógica que promoveu o que Sigmund Freud escreveu sobre os…

    1 comentário
  • A reforma dos urinóis

    A reforma dos urinóis

    É grande a perplexidade que me assola quando vejo deputados, sobre cujos ombros pesa a responsabilidade soberana de…

    1 comentário
  • PISA 2022: os factos e o responsável

    PISA 2022: os factos e o responsável

    Em síntese, eis os factos e o responsável por esta derrocada sem precedentes. Testados 6793 alunos de 224 escolas…

    2 comentários
  • O festim pidesco de um governo morto

    O festim pidesco de um governo morto

    1. Por entre os temas que dominam os noticiários, passou de fininho uma sinistra proposta do Governo (Proposta de Lei n.

  • De grotescos vivendo, assim vai Portugal

    De grotescos vivendo, assim vai Portugal

    1. A Sonae tomou a iniciativa de discutir o impacto da tecnologia na educação, criando um tal Innovators Forum 23, cuja…

    1 comentário
  • Um ministro e uma corte bem paga a propagar fantasias

    Um ministro e uma corte bem paga a propagar fantasias

    É impossível ficarmos alheios à barbárie exposta pela guerra que domina o mundo e ao tratamento que a comunicação…

Outras pessoas também visualizaram

Conferir tópicos