Fundos de investimento (que não têm personalidade jurídica) podem sofrer desconsideração da personalidade jurídica?

Fundos de investimento (que não têm personalidade jurídica) podem sofrer desconsideração da personalidade jurídica?

Por Rodrigo Dufloth e Vinícius Napoli (Carvalho, Machado e Timm Advogados)

A responsabilidade limitada é a maior singular descoberta dos tempos modernos, constituindo um dos grandes avanços do capitalismo. O motivo pelo qual as sociedades limitadas são o principal instrumento[1] para seus empreendimentos reside no fato de esse tipo societário permitir que a responsabilidade dos sócios se restrinja à sua respectiva participação no capital da empresa criada, após sua integralização.

No entanto, já há muito se reconhece (doutrinária e legislativamente) no Brasil a denominada Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, de origem anglo-saxã (Disregard of the Legal Entity Doctrine), caracterizada – como o nome já diz – pela desconsideração momentânea e excepcional – em casos de abuso de direito – da existência de personalidade jurídica, para que se permita atingir o patrimônio da empresa com o intuito de satisfação de dívidas pessoais dos sócios. O inverso também se aplica – ao que se denomina “Desconsideração Inversa” -, podendo o sócio ter a esfera patrimonial atingida em face das dívidas contraídas pela empresa.

Trata-se de medida importante para o combate de fraudes e garantia de crédito em casos de abusos no uso da autonomia da personalidade jurídica. Ao mesmo tempo, trata-se de instituto de aplicação excepcional, face à necessidade de segurança jurídica e negocial a ser conferida às empresas. Precisamente diante da busca empresarial pela garantia de que o instituto da desconsideração não será indiscriminadamente aplicado, a Lei nº 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica) tornou ainda mais criterioso seu uso ao alterar a redação do artigo 50 do Código Civil (CC), imprimindo conceituação detalhada ao “desvio de finalidade” (§1º) e delimitando hipóteses que caracterizem confusão patrimonial (§2º) – sendo ambos, alternativamente, pressupostos da caracterização da desconsideração.

Em que pese a excepcionalidade da medida, vale notar recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), proferida em 05 de abril de 2022, em sede de Recurso Especial (“Resp”) nº 1965982/SP, de relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, pelo qual a Terceira Turma do STJ negou provimento ao Recurso Especial movido por um Fundo de Investimento em Participações em face de Acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (“TJ-SP”) que confirmou pedido de desconsideração da personalidade jurídica concedido em primeiro grau, resultando no bloqueio e transferência de ativos financeiros de sua titularidade.

No voto do Ministro Relator, acompanhado pelos demais Ministros componentes da Terceira Turma, após discorrer sobre a natureza condominial dos Fundos de Investimento, o Ministro Cueva consignou que, uma vez caracterizado o abuso de direito (seja por desvio de finalidade ou confusão patrimonial), a não responsabilização do Fundo por dívidas de quotistas “deve ceder diante da comprovação inequívoca de que a própria constituição do fundo de investimento se deu de forma fraudulenta, como forma de encobrir ilegalidades e ocultar o patrimônio de empresas pertencentes a um mesmo grupo econômico”. No caso, os quotistas do Fundo eram empresas que faziam parte de um mesmo grupo econômico, pretensamente constituído com a finalidade de fraudar, dentre ouros credores, aquele que movia a execução que originou a causa.

Após a referida decisão, passou a ser levantada a seguinte problemática: diante da natureza jurídica e estrutura dos fundos de investimento (que não possuem personalidade jurídica, analogamente a condomínios), seria adequada a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, como dá a entender o precedente aqui comentado?

Em princípio, o próprio Ministro Villas Bôas pareceu indicar que daria provimento ao Recurso, de modo a entender pela inaplicabilidade da medida, pois que, em seu voto, aduziu que “apenas em tese, repita-se, não poderia a constrição judicial recair sobre o patrimônio comum do fundo de investimento por dívidas de um só cotista, ressalvada a penhora apenas da sua cota-parte.” Isso porque a natureza condominial dos fundos não os reveste de personalidade jurídica, sendo impossível desconsiderar (ou seja, momentaneamente tomar por inexistente), aquilo que já não existe.

No entanto, diante do cenário de Fundo que, pertencente a complexa estrutura dentro de grupo econômico, se constituiu com intuito próprio de fraude, o STJ pareceu assumir como justificável aplicar-lhe o instituto, permitindo que a constrição patrimonial possa desconsiderar a “personalidade” – que não existe -, para a satisfação da dívida discutida no processo.

Nesse sentido, parece que o STJ se vale de aplicação analógica do instituto a figura jurídica (Fundo) que, em tese, não estaria sujeito a sua incidência. Em que pese serem dotados de direitos e obrigações próprias e assumirem estruturas similares às sociedades em determinados casos, os Fundos ainda são constituídos em formato de condomínio – apesar de sua natureza sui generis -, ou seja, de patrimônio em comum.

Em contraposição à decisão, pode-se indagar se, ao invés de se utilizar do mecanismo da desconsideração-, não poderia ter-se considerado outras alternativas para o caso concreto: não possuindo personalidade o Fundo, será que não seria mais apropriado declarar-se, por exemplo, fraude contra credores (artigo 171, inciso II, CC), ao invés de se aplicar o instituto da desconsideração da personalidade jurídica?

Note-se que, à primeira vista, os efeitos práticos poderiam ser similares: os bens direcionados pelos quotistas ao Fundo retornariam a seu patrimônio, as pessoas (outrora quotistas do Fundo) teriam suas personalidades desconsideradas para efeitos da execução que se movia em face de outra pessoa jurídica pertencente ao grupo econômico, de modo a desmantelar a fraude planejada por este.

As preocupações aqui expostas não passam de mera conjectura, ao menos por ora, considerando que a decisão é recente e o precedente não é vinculante[2]. No momento, em linha com a Lei de Liberdade Econômica, prevalecem (i) a natureza jurídica condominial especial dos Fundos (art. 1.368-C do Código Civil), (ii) a autonomia da personalidade jurídica (art. 49-A do Código Civil), e (iii) a excepcionalidade da desconsideração da personalidade jurídica (art. 50 do Código Civil).

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[1] Segundo estudo periodicamente realizado pelo Ministério da Economia, já existe, no Brasil, um número total de 4.667.178 sociedades limitadas. Mapa de Empresas, 1º Quadrimestre de 2022.

[2] Considerando que não se trata de súmula do STJ, nem de Acórdão proferido em sede de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), conforme artigo 927, incisos III e IV, ambos do Código de Processo Civil de 2015 (CPC)

Guilherme Cooke

Lobo de Rizzo Advogados | Partner | Investment Funds & Market Players

2 a

Excelentes pontos! Parabéns pelo artigo, ficou fantástico! Também acho que poderiam ter usado outros instrumentos, na linha de anular o ato de constituição do fundo. Desconsideraram o inexistente. Mas sabe que depois da lei de liberdade economica e da aberração que a entidade fundo de investimento virou, eu acho que o fundo "meio que" ganhou personalidade jurídica. Não da forma clássica prescritiva do direito civil, mas por algumas das novas características trazidas na lei, típicas de Pessoas, como o fundo responder diretamente por ativos e passivos, resp. limitada de cotista e insolvência civil. Não acho que essa visão se aplique a esse caso, pela questão temporal, pela ausência da nova regulamentação da CVM e de jurisprudência da aplicação efetiva destas características - e por isso concordo que desconsideraram algo que naquele caso não existe. Mas tenho a impressão que a jurisprudência futura e a doutrina podem passar a olhar para o fundo como ente com personalidade jurídica, principalmente pós regulamentação e alguns anos de prática. E um ente bem bizarro. Vamos ver como isso vai se desenrolar no futuro. Esse assunto tem muito pano pra manga! Abs e parabéns de novo, precisamos dessas discussões e referências.

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