Geração Samba

Geração Samba

Não temos personalidade, mas temos ténis giros.

Há filmes de publicidade que se transformam em peças icónicas, porque, com o tempo, mostram outros costumes, modas e realidades. Mostram, no fundo, outros tempos.

Toda a gente se lembra do filme da Super Bock que se faz acompanhar pela canção “The Story”, de Brandi Carlile. É uma pena que tenhamos deixado cair o rock — quando os filmes publicitários confiavam em hinos barulhentos e sentimentais o reforço das suas narrativas, os anúncios diziam-nos mais, e falavam connosco de um modo mais próximo. (Lembramo-nos desse, mas não daquele que vimos ontem, no TikTok.) Por isso, ainda hoje recordamos estas produções com alguma nostalgia.

Ultimamente, tenho pensado muito sobre o filme que a Sumol lançou em 2008, aquando da campanha Junta. Lembro-me de o ter visto algumas vezes na televisão, mas, hoje, sei que, então, não o compreendia, nem tinha como compreender a sua mensagem, porque não tinha mais do que 10 anos, e ainda não me interessava pela cultura popular e pelas subculturas que a compõem. É um filme simples: comunica o produto da marca partindo do princípio de que todos o consomem — os punks e os betos, os nerds e os freaks, os góticos e os dreads, os ravers e os rockeiros, os hippies, os skaters e os surfistas. O insight compreende-se, mas é falível. Duvido que pessoas de grupos diferentes vejam — ou vissem — pontos de união num refrigerante de ananás ou laranja. O álcool costuma unir mais do que estas bebidas doces e gaseificadas.

Mesmo assim, trata-se de um filme muito bom e, acima de tudo, bastante refrescante. É curioso ver que, em 2008, as marcas, que também seguiam as tendências que se reproduziam nos tecidos sociais, já se preocupavam com a inclusão de todos e de todas — e faziam-no de um modo que, atualmente, se mostra mais honesto e verdadeiro, porque menos ligado a pressões comunicacionais, decorrentes de obrigações impostas por departamentos de marca.

Não sei até que ponto é que seria possível realizar este filme em 2024, porém. Hoje, as marcas preocupam-se, mais do que nunca, com a inclusão de todos os grupos — é certo e faz sentido. O problema é que, ao dia de hoje, há menos grupos. As pessoas, sobretudo as mais jovens, apresentam poucas diferenças entre si, pois consomem os mesmos produtos de um modo cada vez mais homogéneo — isto é, sem graça ou propriedade.

Se o leitor for contra generalizações, é provável que tenha deixado de achar piada às minhas palavras. Mas, se ainda quiser alinhar com o meu raciocínio, convido-o a passar para o próximo parágrafo.

Nas ruas de Portugal, vê-se pouco punk. Os góticos estão à beira da extinção. A corrente emo nunca teve muita adesão no nosso país — o mesmo não se pode dizer da sua música, que conquistou os miúdos incompreendidos de todo o mundo. O skate não desapareceu, mas os skaters perderam o seu encanto e parte da sua força. Pode ser que, em breve, voltem a dominar, de algum modo, a cultura popular, mas, por agora, não podemos contar com eles. Os surfistas não saíram do mar, e continuam a apanhar as suas ondas, mas é notório que a sua influência já teve dias melhores, assim como as marcas de surf, que conseguiram fazer com que, durante décadas, toda a gente fosse surfista, sem que fosse necessário pegar numa prancha. Há cada vez mais ravers, porém — sobretudo em Lisboa. (Para lá do LuxFrágil, a cidade, que não é mais do que um enorme barracão redecorado, pertence-lhes.)

Os grupos não desapareceram com a chegada da internet. Seria fácil culpá-la, mas também seria errado e redutor, até porque ela criou novos grupos — os runners, por exemplo. A internet, aqui representada pelas redes sociais e pelas figuras que as dominam (os influencers e as girlies), não é mais do que o reflexo das vontades — assumidas e não assumidas — das pessoas e das sociedades em que estão inseridas. Somos nós os responsáveis pela padronização dos nossos dias e dos nossos gostos, porque prestamos atenção ao que gera mais likes e ao que fica bem nos outros. Assim, como consumimos as mesmas coisas, ficamos mais parecidos, e viramos costas às nossas personalidades. É uma escolha nossa. Não digo que seja o caso concreto do leitor — não duvido que tenha uma personalidade mais forte do que a dos comuns —, mas acredito que esteja a perceber o meu ponto. Interrompa a leitura por dois segundos, e olhe para os seus pés. (Quero confirmar uma coisa.) Por acaso, não está com umas Adidas? Ou com umas pantufas Birkenstock?!

Dantes, julgávamos os homens pelos sapatos. Hoje, julgamos as pessoas pelos ténis — e observamos se têm Adidas ou peças de outras marcas simultaneamente clássicas e mainstream. É provável que as tenham, porque toda a gente as tem, independentemente da personalidade que apresentam (ou do grupo a que podem pertencer). Por isso, sou da opinião que a Gen Z deve ser rebaptizada, pois houve um engano na letra escolhida— acho o nome Gen S mais perspicaz, por exemplo. Generation Samba, em honra do modelo de ténis da marca alemã, diz mais sobre nós do que qualquer outra nomenclatura. Julgar é sempre perigoso, mas é uma ação inerente à condição humana. Confiamos no julgamento de cada vez que não temos informação suficiente sobre determinada pessoa ou grupo — e vivemos confortavelmente com a certeza de que os outros fazem o mesmo connosco.

Quanto a esta questão, estamos todos no mesmo barco — mas também estamos nos mesmos bares, discotecas e restaurantes. Em qualquer plataforma de streaming, escutamos os mesmos artistas, o que nos leva a ir aos mesmos concertos e festivais; organizamos as mesmas viagens, e aterramos nos mesmos destinos; vemos os mesmos filmes no cinema, e consumimos freneticamente as mesmas séries em casa; lemos os mesmos autores, e confiamos (muitas vezes, mal) nas mesmas notícias. E, mais cedo ou mais tarde, calçamos os mesmos ténis.

Tem sido assim desde o início — desde que a juventude passou a ser uma oportunidade de negócio, deixando de ser apenas uma fase de vida. Dava tudo para perceber — de um modo analítico e profundo — o funcionamento das modas e das trends, mas sei que se mostram imprevisíveis, porque dependem de pontadas de aleatoriedade e de sorte. Desconheço o porquê de andarmos todos tão parecidos, mas aceito esta realidade de bom grado, até porque reconheço que não é um evento exclusivo da geração a que pertencemos, nem dos tempos em que estamos integrados.

No entanto, sentir que existem cada vez menos diferenças entre pessoas tão diferentes — e com histórias e origens tão diferentes — origina uma certa comichão, especialmente numa altura em que a sociedade clama por diferenças, mostrando-se alheada de uma realidade cada vez mais indistinta e original. O que nos safa é que temos ténis coloridos e giros. Toda a gente, independentemente do grupo a que pertence, tem direito a três belas riscas. Não é a comunidade que queríamos, mas é desta que precisamos.


Achei por bem publicar a minha crónica mais recente em Ainda Bem Que Voltaste no LinkedIn, porque — sem ter dado por ela — escrevo sobre anúncios publicitários, hábitos de consumo e marcas, e suponho que a Geração Z deve ser rebaptizada, porque há outros nomes que lhe ficam melhor.

Subscrevam o meu Substack neste link. Publico uma nova crónica todos os domingos.

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