Get your motor runnin'​: 2 mil Kilometros em cima de uma moto pelas highways americanas.

Get your motor runnin': 2 mil Kilometros em cima de uma moto pelas highways americanas.

.Pensei em escrever esse texto no acostamento da Highway 101, enquanto esperava o Donça voltar com o galão de gasolina que salvaria nossas vidas. Era uma da tarde e eu apodrecia debaixo do calor do sol da California. Ficamos sem gasolina após perceber que o contador da moto que alugamos estava quebrado; estávamos a caminho de Los Angeles e assistimos nossa viagem ruir junto com os últimos litros de gasolina que nos restavam.

Eu já morava em L.A há um tempo quando esse grande amigo veio me visitar.

Ele chegou trazendo a melhor ideia que eu tinha escutado em tempos:

- Por que não aproveitamos essas semanas de verão para atravessar o estado em cima de uma moto? Mais de 2 mil km para completarmos em 6 dias...

A ideia era descer até San Diego e depois subir lentamente pelo interior do golden state até chegarmos em San Francisco, onde passaríamos alguns dias e finalmente voltaríamos costeando o mar até a Cidade dos Anjos.

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0 Km: Los Angeles, 22/07/15


Logo que o Mendonça chegou, deixamos de lado os tentadores bares de rock da Sunset Strip e seguimos direto para a locadora de motos, de onde saímos com uma Harley 883 preta, que seria até então, nosso cavalo de guerra.

Na manhã seguinte ele se mandou na moto com destino a San Diego; eu ainda tinha que me virar com a ansiedade enquanto um compromisso gastava todo o meu dia.

Assim que me livrei de tudo, aluguei o carro mais barato que encontrei e tomei a estrada como um louco em direção ao México, para então começar o que prometia ser uma clássica Road Trip pelos confins do terceiro maior estado americano.


190Km: San Diego, 23/07/15


Cheguei no hotel por volta de uma da manhã e acordei o Donça para tomar uma cerveja e comer uma pizza.

No dia seguinte, comprei um chapéu de feltro que nunca mais usei, enchemos nossas barrigas com a primeira porcaria que encontramos e resolvemos voltar revezando entre a moto e o carro e parar em cada cidade que conseguíssemos.

Logo na saída de San Diego percebi que pegar a estrada ao meio dia não era a melhor das ideias, principalmente para quem estava na moto. Seguimos mesmo assim. Durante os primeiros quilômetros achei divertido, apesar do calor, dirigir na highway; o vento frio, aquele asfalto lisinho e o sol ardendo minha pele formavam a combinação perfeita. Foi quando a bichinha apresentou seus primeiros sinais de fraqueza. A 883 começou a engasgar e desacelerar, olhamos a moto e não achamos nada de errado, até que abrimos o tanque e... surpresa, o contador estava quebrado e nós sem gasolina. Minha testa rachava no calor do asfalto quando o Donça sacou seu Iphone em busca do posto mais próximo. Esse é exatamente o meu problema com a tecnologia: ela deveria nos libertar, mas ao contrário disso, ela acaba com qualquer esperança de se ter esperança. E não deu outra, o primeiro posto estava a 20 km de distância, e pior, VOLTANDO.

Pelo que entendíamos de moto, teríamos mais ou menos 12 ou 15 km até que a ela morresse de vez. Nao tinha o que fazer, seguimos em direção ao posto, o Donça a 20 por hora em minha frente e eu na banguela rezando para chegar logo. A coitada morreu a 2 km do posto. Já de saco cheio e com fome, o Mendonça correu uns 15 min de baixo do sol e voltou com um galão de oito litros nas mãos. Enchemos o tanque e enchemos o saco.

–     Vamos voltar e devolver essa merda


Paramos para almoçar em Laguna Beach, e um dos melhores peixes que já comi na vida me ajudou a melhorar o meu (mau) humor.

Chegamos em Los Angeles recepcionados por seu pôr do sol laranja e juras de sucesso eterno. Subimos para o apartamento que em que morava no centro da cidade e dormimos como crianças. Derrotados pela estrada, pelo sol e pela maldita moto.


450Km: Los Angeles, 24/07/15


O Donça mal levantou, acendeu um cigarro e me cutucou:

-      Vamos devolver essa merda e pegar a grana de volta.

-      Vamos. Será que eles devolvem a grana? – perguntei ainda dormindo.

-      Vamos lá descobrir.

Enxaguei os olhos, calcei a bota e fomos.

Obviamente eles não devolviam o dinheiro, era política da empresa e blablablá. Mas, cientes do medo de processo que todo americano tem, vomitamos nossa história e frustração.

Não demorou muito para que um simpático senhor aparecesse. Russ, o gerente da loja, se aproximou e nos levou até a garagem de motos. Mas que lugar espetacular, tinha todas as motos que você imaginar (nem todas, mas vamos fantasiar um pouquinho). O cara era o Willie Wonka das motos.

-      Vamos lá molecada, escolham a que vocês quiserem.

Olhei para o Donça assustado. Ele nem me viu, olhou direto para a BMW que estava parada ao seu lado, pensou mais um pouco e disparou:

-      Vamos para San Francisco?

-      Bora.

-      Ei, Russ, qual a melhor delas para ir daqui a San Francisco?

Ele explicou que, por conta dos limites de velocidade das estradas, deveríamos escolher algo não tão veloz, e sim confortável, e em seguida apontou para uma Electra Glide verde guerra no fundo da loja. Ela brilhava lá de longe, gigante, tremenda.

Não se passaram 15 minutos e estávamos de volta ao itinerário, dessa vez em cima de um mito das estradas americanas, a famosa Electra Glide Ultra Classic.

Seguimos dalí mesmo direto para San Fran, a mais ou menos 700 km de estrada pela frente.


750 Km: I-5, 24/07/15


Nossos primeiros 300 km foram tesão puro. Ao sair de Los Angeles e seguir adiante na I-5 Highway podíamos perceber o isolamento da sociedade e a calorosa recepção do deserto - a certa altura a sensação térmica passava dos 50. Diferente do que muitos pensam, o vento em cima de uma moto no deserto é bem longe de ser refrescante. Ele é quente e te queima a pele como se fosse um maçarico. Mas isso não era nada perto da sensação que aquela máquina nos proporcionava. Passei por algumas fortes rajadas de vento lateral que pareciam querer me derrubar, e apesar do forte cheiro de fumaça das Highways, simplesmente respirar alí era bom para cacete.

No final do dia assisti o sol se pôr no asfalto, a lua subir até quase acender aquela imensidão toda ao meu redor... o tesão, a liberdade, a adrenalina e muitas outras coisas se misturando na minha cabeça me faziam entender o que Plant queria dizer quando me contava que era um viajante do tempo e do espaço... momentos como esses traziam sentido para a viagem e para a vida.

Rodamos mais 300 km e estávamos a 100 do nosso destino. Já era escuro quando paramos para comer algo na beira da estrada e lembramos de um pequeno detalhe: não tínhamos onde dormir, e pior, este era o final de semana da maior parada gay do mundo, sediada em...? Sim, San Francisco. Estávamos fodidos, seria quase impossível encontrar um hotel.

Sem sinal de celular e com o Wi-Fi precário de uma loja de conveniência, procuramos hotéis como loucos e logo desistimos, a cidade estava lotada e o quarto mais barato para a noite iria nos custar 800 dólares.

- Vamos para o subúrbio e a gente dorme num motel qualquer. Foda-se.


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1150 Km: São Francisco, 25/07/15


O único hostel que encontramos, embaixo da ponte de Oakland, fedia tanto que decidimos dormir no carro mesmo.

Encostamos em um estacionamento grande e, com meu espanhol meio enferrujado, expliquei a situação para o mexicano simpático que tomava conta. Sem dizer muito, Juan me apontou uma vaga que deveria ter sombra até as 9 da manhã - ele parecia familiar com a situação. Compramos umas cervejas e entramos no carro. Estávamos sujos e fedidos e cansados... mas felizes. Éramos cúmplices naquela jornada e o modo como tomávamos nossa cerveja refletia nosso estado de total relaxamento.

Na manhã seguinte achamos um hotel, tomamos um banho e logo corremos para a rua, onde passamos o dia. Comemos bem, bebemos bem e passeamos por toda a cidade. São Francisco é foda, não à toa uma das cidades mais vanguardistas do mundo, capital das causas gays, dos hippies e da alta tecnologia.

A cidade se mistura com a natureza e suas pessoas com a cidade e então com a música e com a literatura... Lá escutamos jazz, visitamos a Golden Gate e tomamos muito, mas muito whisky. 

Já estávamos mal acostumados com a “boa vida” quando nos demos conta de que, segundo nosso roteiro, teríamos que voltar a estrada no dia seguinte, rumo à Big Sur – que acabou sendo minha parte favorita da Viagem.

Às 8 já estávamos de pé. Comemos uns ovos cozidos, demos uns goles de café e subimos em nossos cavalos. Agora faríamos o caminho de volta, só que dessa vez sem desertos. Voltaríamos pela costa, desbravando uma das primeiras estradas cênicas da América, fonte de inspiração para escritores e artistas como Robinson Jeffers, Henry Miller, Hunter S. Thompson e Jack Kerouac.

Eu não aguentava mais esperar e queria ir o mais rápido possivel para aquele lugar. Ainda tínhamos 300 km pela frente e no caminho pararíamos para conhecer Carmel e Monterrey.

Me concentrei apenas na estrada, indo o mais rápido que conseguia sem me matar. Nessa hora não existia mais medo ou estranhamento. Eu e a moto éramos uma coisa só, homem e máquina. Um centauro moderno rasgando as serras do norte da California. Em poucas horas entramos na estrada que serviu de inspiração para um já cansado Jack Kerouac, em seu livro homônimo.


1450 Km: Big Sur, 27/07/15

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O vento cada vez mais frio me mostrou o mar; depois veio o cheiro e finalmente aquela imensidão azul, e nós ali, pendurados em um rochedo enorme e ao mesmo tempo tão pequeno perto daquilo tudo. Encostamos na beira da estrada e fomos observar a vista. Impossível contar nos dedos a quantidade de tons de azul, e se você olhasse adiante, via um tímido caminho que costurava aquelas pedras e formava, por uma centena de quilômetros, uma das mais míticas estradas do mundo.

Conhecemos cada ponta de penhasco que tinha por lá, até que, já no final da tarde, um pouco antes do sol se pôr, avistamos um hotel na beira da estrada pendurado em um dos penhascos mais íngremes que já vi. Aquele parecia ser mais que adequado para a noite.

Um típico senhor americano de cabeça branca e olhos claros nos encaminhou para o quarto com vista para o mar. Era fantástico, apenas duas faixas de asfalto nos separavam do oceano. Não pensamos duas vezes: descemos para a vendinha do hotel, compramos uma dúzia de cervejas e um vinho barato, sentamos na varanda e começamos a conversar. Mal vimos as horas passarem enquanto falamos de nossas vidas, perspectivas, trabalhos, família, mulheres... e, lógico, da estrada e de como seria difícil voltar a realidade. Enquanto Muddy Waters resmungava algo na caixa de som, o sol se pôs, ali na nossa frente, deixando o céu laranja, rosa, lilás, azul, para finalmente apagar por completo e nos deixar apenas a imensa lua platinando o asfalto. Era lindo, era foda. Pela primeira vez em 3 horas paramos de falar e apenas assistimos. O Donça me cutucou e apontou para uma placa na beira da estrada. Ela estaria fechada das 10 da noite ás 7h da manha. Não tive tempo nem de acender um cigarro e ele já estava lá, no meio da highway com sua cerveja. Peguei minha câmera e corri para sentar no asfalto ainda quente. Que sensação doida. Algumas horas atrás estava dirigindo como um louco sobre ela e entregando minha vida nas mãos da mesma estrada que agora dormia em baixo da minha própria bunda. De dia ela era temida e agora não passava de um assento de bar. Mais alguma cervejas e quase não consigo subir as escadas até o quarto. Desmontamos na cama e dormimos.


1600 Km: Big Sur e US-1, 28/07/15

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Uma coisa que descobri na estada é que quanto mais cedo você começar a sua viagem, mais cenas inesquecíveis você terá na memória, principalmente aqui na costa oeste, onde as manhãs são nebulosas, e mais ainda na Big Sur, onde ao amanhecer a neblina se encosta na estrada. Para quem vê de longe, parece um caminho de nuvens por entre o mar. A neblina por aqui cria uma cortina que bloqueia a visão por um tempo, gerando suspense, para, depois que o sol esquente o asfalto, essa cortina se abra e nos surpreenda com aquelas cores insinuantes e curvas pornográficas.

Por isso caíamos na estrada o mais cedo possivel todos os dias. Sabíamos que, depois da neblina, sempre existia algo que valeria muito a pena ser visto. Esse dia não foi diferente, costuramos por entre as nuvens, parando em cada ponto que podíamos, fotografando, comendo e sempre acompanhados por uma excelente trilha sonora.

Dessa vez desceríamos direto até Santa Barbara, onde passaríamos a noite espiando as garotas – a cidade é famosa pelas universidades e universitárias. Cortamos caminho por algumas rotas alternativas, entre enormes plantações de milho e trabalhadores simples e cansados. O contraste era grande comparado aos turistas hiperalimentados que víamos nos outros lugares. Passamos por dentro de cidades fantasmas e vilas abandonadas, um visual já bem mais pesado e nada diferente desses que vemos nos filmes de faroestes hollywoodianos.

A certa altura, o mensageiro do mundo real me encontrou: meu celular tocava incansavelmente no bolso e eu, na moto, ignorava. Na quinta vez não aguentei e fiz sinal para encostarmos.

Era do apartamento onde estávamos ficando em L.A. Meu cartão foi recusado no sistema e eu teria que sair de lá nas próximas seis horas. Mais uma vez a tecnologia me trazia mensagens de desesperança. Estávamos outra vez, no olho da rua.


1750 Km: Santa Barbara, 28/07/15


Preocupados em encontrar um lugar para dormir, tocamos direto para Hell-a.

Tchau Santa Barbara, te vejo em breve, seja boa com minhas garotas...


2000 Km: Los Angeles, 28/07/15


Entramos na cidade já no começo da noite, pegamos nossas coisas no apartamento, socamos dentro do carro e partimos em busca de um lugar para passar a noite. Fomos de porta em porta e nada. A ideia de que dormiríamos outra vez na rua começou a me animar, por um momento aquela viagem ainda não tinha terminado.

Toca mais uma vez o maldito celular:

-      Vagou um quarto em um dos hotéis para os quais ligamos por um preço razoável. Bora?

Dessa vez, o cansaço falou mais alto.


2011 Km: Los angeles, 28/07/15


Já no hotel comecei a pensar de onde vinha esse meu fascínio por estradas. Pelo senso comum, a estrada por si só não é nem mesmo um lugar, ela é apenas um pedaço de asfalto que interliga lugares, uma ponte entre dois destinos. Mas, para aqueles que tomam controle sobre a forma que enxergam o mundo e a beleza de todas as coisas, esses sabem mais do que qualquer um que a estrada além de ser sim um lugar, é o único a se estar.

 

No dia seguinte Mendonça foi embora. Quantas historias levaríamos dessa viagem. Mal ele partiu e eu já comecei a planejar minha próxima viagem. Não durei nem três dias em “terra firme”: lá estava eu outra vez na estrada, dessa vez em direção ao mais seco deserto da California, o sedento Mojave. 

Mas isso é historia para outro texto...

Julia Bergamo

Founder, Strategist and Creative Director

5 a

Adorei! Que saudade desse tempo em LA, amigo.

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