A graça e os medos de um sonho realizado e 90 dias no escuro

Completando noventa dias longe de tudo o que fez parte da minha realidade durante os últimos trinta anos, é chegado aquele momento de refletir e, com um pouco mais de experiência, pensar nas coisas que vivenciei neste período, da euforia à solidão e das incertezas aos novos sonhos e objetivos.

Não foram necessários mais do que alguns minutos dentro do avião para que um resumo do processo que me trouxe à Califórnia fosse detalhadamente reproduzido em minha mente. Não seria apenas mais uma viagem de curto prazo, com data para terminar. Seria um recomeço, onde tudo o que eu havia conquistado fora deixado para traz. Esposa, carro, casa e o respeito e a amizade de pessoas excelentes que conheci dentro e fora do trabalho passaram a fazer parte do passado na poltrona desconfortável da novíssima aeronave da United Airlines.

Foi neste momento que as reflexões trouxeram à tona frases de efeito como “Cuidado com o que você deseja, pois pode se tornar realidade” e “Se você realmente deseja algo, todo universo conspira a seu favor” e, pensando no que deixaria saudade e nos desafios e descobertas que estavam por vir, fui tomado por um sentimento de êxtase, misturado com agonia e vontade de correr chorando pro colo da mãe. Tarde demais! Num instante estávamos a dez mil metros de altitude. Quinze horas de voo estavam apenas começando e, deste momento em diante, absolutamente tudo seria absolutamente novo.

Pronto! País novo, carro novo, casa nova, chefe novo e esposa eu volto para buscar daqui a alguns dias.

É interessante a sensação de não ser turista em um lugar ao qual não se pertence de fato. Língua, costumes, alimentação e cultura são apenas alguns dos ingredientes de uma iguaria para a qual não se encontra a receita nas páginas de um livro. É o processo de preparo de um tempero que muda de sabor à medida que a mistura vai ganhando consistência. Traduzindo: (1) em minha primeira compra no supermercado foram gastas quase quatro horas tentando localizar produtos conhecidos ou semelhantes aos que estamos habituados no Brasil; (2) passei alguns dias pesquisando dicas de faxina, até aprender que aqui não se usa pano para limpar a casa, mas papel toalha; e (3) cheguei à triste conclusão de que muitos meses mais (mesmo!) serão necessários para considerar a hipótese de afirmar que a comunicação está fluindo em um nível próximo do ideal. Minha meta a curto prazo é falar “say it again, please” menos de dez vezes por dia. Já estou quase lá!

A parte boa é que, depois de passar todo este tempo ponderando sobre o que poderia ter sido e que não foi e vários outros “blá blá blás”, a rotina vai conquistando seu espaço, as dificuldades dão lugar às oportunidades e a sensação de estar em casa começa a reinar novamente. Desafios pessoais vão sendo superados e o foco volta a ser o trabalho, motivo que me trouxe aqui e que garantirá minha permanência caso a expressão “IF (esposa feliz) AND (chefe satisfeito) THEN Califórnia = TRUE” seja mantida.