A guerra (até então) inútil dos marketplaces

A guerra (até então) inútil dos marketplaces

Assistimos nos últimos anos a transformação acelerada no relacionamento dos consumidores com o mercado de food service, em especial no consumo por delivery (modalidade que vamos abordar aqui). Esse processo passa desde a exigência do consumidor não querer mais só comprar um produto e sim uma experiência completa dentro da modalidade de consumo, até o cliente que hoje desconhece o telefone e/ou endereço do seu restaurante favorito.

Outrora, acompanhei estabelecimentos que chegavam a ter 15 atendentes de televendas operando simultaneamente e isso era o que garantia o sucesso do negócio, pois o diferencial competitivo do mercado era não deixar o cliente esperando na linha.

Hoje um dos principais termômetros da capacidade de atendimento é o posicionamento da loja nos marketplaces, e é através dessa visão que o cliente entende o quão competente o estabelecimento é na entrega do que oferta.

Foi neste cenário de operações com estruturas pesadas que surgiu o iFood (antes Disk Cook), se posicionando diante do consumidor para facilitar o processo, até então moroso, de pedir uma "pizza de portuguesa, sem pimentão, com pouco orégano, cebola só na metade da pizza e um kit adicional de mostarda, na Rua Borboletas Psicodélicas, zona leste de SP".

Com uma estratégia bem formatada, o Disk Cook foi ganhando espaço no mercado de São Paulo, até que perceberam que o atrito do cliente no processo ainda era enorme no formato adotado e que precisariam reduzir ainda mais. A evolução da conectividade no Brasil, o surgimento dos smartphones com maior capacidade operacional, forneceram o que a empresa precisava para migrar do formato de catálogo impresso para aplicativo de delivery, e saísse na frente lá em meados de 2011.

Tem gente que credita esse fato ao iFood ser bem sucedido, mas ser o pioneiro não garante vida longa e nem mesmo é sinônimo de sucesso, e temos incontáveis exemplos disso. Na verdade o esforço para quem abre o mercado tende a ser muito maior, pois é dele o trabalho de educação e geração de demanda por necessidade. Em 2011 os estabelecimentos de food não sabiam que caso não entrassem na era digital, estariam às margens do mercado em poucos anos.

O que de fato deu tão certo para o iFood? Como chegou e se mantém até hoje com participação majoritária no mercado? Dividimos a resposta em duas partes:

  1. O iFood chegou ao patamar de líder absoluto por méritos próprios;
  2. Mantém uma fatia de 80% do mercado por demérito dos demais concorrentes;

O iFood, desde o seu lançamento como plataforma digital, se comportou como um verdadeiro shopping center

O demais players ainda não entenderam que nesse mercado não adianta queimar dinheiro por queimar, em campanhas fúteis mascaradas de marketing (quando o dinheiro é do investidor é mais fácil), e que uma estratégia de growth sem retenção é ainda mais prejudicial do que simplesmente não crescer. Em um mercado, que além de todos os demais desafios, ainda disputam o espaço de armazenagem no smartphone do usuário, "queimar na largada" com experiências ruins decorre em perda irreparável de usuários. E nesse mercado, o usuário é o ativo mais importante, e tende a não voltar quando mal atendido.

Entendendo exatamente que reter o usuário é mais importante do que agregar grandes marcas (em especial na etapa de largada), o iFood cuidou inicialmente de "sua vitrine".

O espaço (virtual) já era bom para o consumidor, bem apresentado (o que não impediu que evoluíssem ainda mais até chegar ao produto atual), organizado e com proposta sólida. Para o usuário, já era muito interessante navegar pelo aplicativo e conferir todas as ofertas, organizadas da forma mais confortável à sua escolha. Ele de fato decidia como navegar.

Por outro lado, educar os empresários do ramo de food service nunca foi tarefa fácil. Como explicar que eles precisavam "abandonar" suas estruturas de call center, e investir na digitalização do seu delivery, onde alguns nem possuíam essa modalidade de fato? Mais uma vez o posicionamento foi fator chave: o iFood se vendeu com a sua proposta original: ser mais um canal de vendas, e dessa vez ainda mais parceiro.

Por qual motivo um estabelecimento aceitar operar em um shopping center, com alugueis caros, regras impostas sem negociação, auditores na porta, multas por não cumprimento de contrato e condomínio em dobro no final do ano? Pois os shoppings atraem milhares de clientes/dia, ávidos à comprar. Eles vão entrar no shopping, pois lá um local confortável, seguro e com várias opções em uma única parada, e a partir dali a loja precisa ter o seu esforço para conquistar a atenção consumidor e fazer com que ele decida gastar em sua loja, em detrimento das outras centenas.

Por qual motivo 99Food, Uber Eats e Rappi não chegaram lá?

No meu egocentrismo, poderia falar duas asneiras: escolhas de estratégias fúteis criadas por gestores mal posicionados/contratados e falta de respeito com os recursos financeiros do investidor. Mas longe de mim externar esses pensamentos.

Não vou focar nos demais aplicativos como James (fizeram um péssimo movimento de mercado), Americanas (em validação), AiqFome, Delivery Much, dentre outros, pois de fato não sei ainda onde querem ou vão chegar (alguns da lista nem chegarão).

Os players ainda não entenderam que fidelizar clientes por cupom, é uma das estratégias mais inúteis que existe, se você não cuidou dos outros pontos.

Continuando a alusão ao shopping, não adianta inaugurar um centro comercial com centenas de lojas, com valores promocionais, mesmo que o preço seja praticamente o de custo, se for um ambiente mal iluminado, confuso para transitar, informações precárias, oferece péssima experiência de compra, etc. É lógico que quando as ofertas tentadoras acabarem, ninguém vai se sujeitar a voltar.

Quem fideliza por dinheiro, perde por centavos.

A Rappi chegou com uma proposta "super inovadora", mas com problemas operacionais horríveis. Torrou milhões em cupons de desconto, provavelmente validados pela equipe de marketing, que ao findarem, os consumidores voltaram para o iFood. Com um app confuso, poluído, com poucas integrações com os PDVs do mercado (isso impacta muito as pequenas operações), com a estratégia de crescer a inflar a plataforma a qualquer custo. Para sacramentar todos os problemas, esqueceram que no seu formato de negócio, o entregador era peça chave, e esse foi o erro mais básico que tiveram na maior parte das cidades, e no fim, sem entregadores, sem entregas. Exemplo clássico de que não adianta ter grandes nomes na plataforma, sem o conforto do usuário.

Uber Eats não encerrou sua operação no food service (na logística continua), pela dificuldade em concorrer com o iFood. A Uber perdeu para ela mesmo. Os usuários tinham 03 perfis macro:

  1. Tiveram experiências ruins com o iFood;
  2. Não eram atendidos em suas regiões pelo iFood;
  3. Recebiam mensagens com descontos vultuosos através do app de transporte de passageiros;

Além do aplicativo mal formatado, a ausência de suporte para o usuário consumidor era um ponto crítico da plataforma (analisa no Reclame Aqui). Na outra ponta do negócio, os estabelecimentos também relatavam muitas dificuldades nas operações, contato com suporte ao lojista era quase impossível e isso fomentou um boicote interno, pois parte dos negócios abandonavam a plataforma, pois não conseguiam resolver problemas técnicos.

E como um movimento repetitivo, que já mostrou ineficiência anteriormente, a 99Food chegou com o mesmo formato de expansão (crescer para encolher e depois fechar, é assim que enxergo). Lançou dezenas de cidades derramando cupons de desconto sem olhar saldo na conta, antes mesmo de ter feito um bom dever de casa na usabilidade das duas pontas: consumidor e operador. A dificuldade de contato com o cliente por chat (telefone nem existe o contato direto), informações desorganizadas, cardápios complexos para manutenção (conseguiu ser pior nesse ponto do que a Uber) acabam não valendo o esforço diante do volume ofertado após a saída dos cupons de desconto.

O que é comum em todos eles é a ausência de pensamento crítico. Acreditam que o mesmo formato de venda em um estado como São Paulo ou mesmo na China (caso da 99/Didi), que possuem uma população consumidora absurdamente divergente das demais regiões, vai funcionar em qualquer lugar. Ninguém conseguiu parar para pensar, que se o formato de operação, taxas, relacionamento, etc, for igual ao do iFood, os clientes não têm motivo de ter outro aplicativo ocupado espaço na tela dos seus smartphones?

É desesperador assistir, e espero que a Americanas não esteja indo no mesmo caminho, as empresas espalharem hunters por todos os territórios, captando estabelecimentos, sem mesmo tem a capacidade de gestão. Se não fizerem como o iFood fez lá no começo, pegando na mão do empresário e ensinando ele a se posicionar no digital, não vai funcionar. Vai ser mais um desperdício de investimento, que a 99Food não quer mais fazer e a Americanas nem pode, e que no final só vai fidelizar ainda mais clientes no maior player do mercado. A informação que os "fracassos" estão passando ao consumidor, é que não vale a pena experimentar novas plataformas, pois elas não vão se manter atrativas.

Existe chance de mudança?

Claro que sim! Desde que os CEO's ou qualquer outro C-Level saiam da blindagem de seus escritórios e comecem a ouvir os consumidores, os donos dos estabelecimentos e as empresas de sistema de gestão, e de fato comecem a aplicar o que lhe é ofertado de graça: feedback.

Eu só acredito em dois players para mudar a regra do jogo (espero queimar a língua), e isso deverá ser saudável aos consumidores e lojistas (monopólio não é bom para ninguém, e o iFood já impõe "mazelas" por detê-lo): Mercado Livre e Amazon. Até então, sem esses dois, não acredito em grandes mudanças, pois a cultura de expandir por expandir se mostra a mesma em todas as alternativas que surgem no mercado.

Enquanto isso, falo aos lojistas: operem em quantas plataformas puder, pois canal de vendas é sempre bem vindo. E aos consumidores: vamos aplaudir os méritos do iFood, e continuar consumindo, pois pedir comida em 03 cliques é sensacional!

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