A Guerra pela Terra Alentejana
Foi ontem executado com grande solenidade e não menos prazer o último melão de casca de carvalho trazido até à aldeia pelo tractor do velho contrabandista da Amareleja.
Era particularmente delicioso, como todos de todas as arrobas em saco de serrapilheira que comprei este ano.
O único travo de tristeza que me deixou o último pedaço da derradeira talhada é que poderá ser um dos últimos para sempre.
Na verdade, a guerra pela terra, desta vez mais sofisticada, tomou de novo o Alentejo.
Percorri pela primeira o território há trinta e cinco anos e nunca mais o deixei de considerar como meu.
Farto-me de perguntar a mim mesmo, especialmente nas noites de muitas estrelas, vento suave e flores felizes no jardim, as razões para esta pertença.
Nunca as descubro.
Terá claro a ver com tanta coisa, algumas tatuadas na alma, outras escondidas em algum recanto da mente.
Estradas perdidas a cortar planície infinita a que volto sempre, o rumor criado pelo vento quando ondula árvores, arbustos e flores, luz e sombra no casario, muros, chaminés ferramentas, mercados pela matina e tantas outras coisas a que ninguém liga.
E um sofrimento que vem de tempos perdidos que ouço das gentes nas olarias, nas esquinas, nos campos e quando sou convidado para a mesa.
As guerras pela terra alentejana, que são diferentes das guerras transmontanas e beirãs pelo mesmo bem ainda hoje precioso, embora para cada vez menos pessoas e decisores, apesar dos vários planos contra a desertificação que vão sendo aprovados, vêm de muito longe.
Para não recuarmos muito no tempo, deram-se, e dão-se, em permanência temporal, a do latifúndio, e deu-se a do celeiro da Nação do Estado Novo.
Vou aprendendo sobre estas nos textos conhecidos, mas mais em monografias e outras impressões em alfarrabistas perdidos, como as do Pedro Ferros, que tanta falta nos faz.
Como nas histórias que me contam e nas fotos do José Manuel Rodrigues, do Gérard Castello Lopes e do Guy Le Querrec, em 1975.
A guerra neste momento pela posse da terra alentejana é das monoculturas intensivas ou superintensivas, especialmente olival e amendoal, desencadeadas por multinacionais do sector.
Como escrevi, é uma guerra de estratégia, alvo e metodologia muito diferente.
Numa síntese imperfeita, é uma guerra em que o poder é uma entidade global privada protegida, o alvo é a extracção máxima de lucro, e a metodologia é da exaustão da terra e do emprego de mão de obra barata, em grande percentagem pertencente aos circuitos globais da mão de obra de remuneração reduzida.
Sobre esta operação ofensiva têm escrito alguns vigilantes com conhecimento.
O meu bom Paulo Barriga, dos que mais sabe sobre o território, mais recentemente o Gerador, que publica as fotografias de José Manuel Rodrigues, outro grande andarilho alentejano, o André Paxiuta, no P3 do Público, e com rigor científico a Zero.
No fim deste texto, deixo as ligações para estes extraordinários trabalhos, que trarão muito mais conhecimento do que aquele que tenho.
O que procuro decifrar de há uns anos para cá, é, primeiro, porque é que só há uma força armada nesta guerra, e, segundo, quais as consequências desta.
No que tem a ver com a primeira dimensão, ainda não consegui decifrar porque é que poder central e autárquico não exigiram e não exigem contrapartidas às entidades globais em acção.
Quando falo de contrapartidas, falo de limites do uso de água do Alqueva e da preservação do património, de limites de produção, da obrigação de contratação de mão de obra local, do retorno financeiro de percentagem do lucro para fins comunitários.
Como também não decifro como é fácil para esta força dominar o terreno, como já foi a outras em terra alentejana.
São dois pontos que não consigo decifrar, por mais que pesquise.
No que tem a ver com a segunda dimensão, todas as investigações e todos os estudos científicos caminham no mesmo trilho, a de que as consequências são violentas.
O esgotamento dos recursos hídricos do território num tempo em que caminhamos para o desastre ecológico global.
A destruição das pequenas culturas agrícolas, tantas delas orgânicas, de que recolho os frutos nos mercados das aldeias e vilas.
A eliminação do montado, uma fonte de biodiversidade fundamental para e única no mundo, como poderão descobrir no documentário cuja ligação também deixo aqui.
O desaparecimento do património arqueológico, natural, agrícola, artesanal e tanto outro, que Ana Paula Amendoeira, outra grande combatente pelo território, tão bem assinala no Gerador.
Mas sendo todas estas consequências de enorme violência, o que mais me inquieta é o destino do Alentejo e dos alentejanos.
Desenhar e aplicar um destino colectivo não é tarefa simples.
Neste texto, partilho apenas um fragmento do que penso que possa ser.
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Não sou dos que querem o Alentejo “profundo”, desértico e “tão relaxante” como os turistas, lunáticos, fanáticos, gurus e outros que fui descobrindo estes anos todos em caminhos e refúgios no litoral e no interior.
Nunca ouviram as gentes que no casario estão ao seu lado, com marcas vindas de tão longe.
Quero um destino para o Alentejo que afaste o sofrimento que sempre o acompanhou e acompanha.
No entanto, o destino alentejano que desejo ver cumprido exige condições de fixação e identidade.
Fixar as gentes na sua terra exige trabalho e remuneração digna.
Por outras palavras, exige conhecimento dado para profissão de relevo e remuneração competitiva.
Não é a hospitalidade e o turismo que vão permitir isto.
O território alentejano como complexo turístico total não é destino.
O que é destino é ter uma rede de pontos tecnológicos, culturais, ambientais e agrários competitivos e sustentáveis.
E um destino sem sofrimento e sem pobreza exige também identidade.
Sem ela, não se luta pela terra que é nossa.
O que vejo nas ruas, nas aldeias, nas vilas e nas cidades é as moças e os moços agarrados ao Tik Tok para ver as promoções no Freeport ou em Espanha, a música brasileira no Spotify, a prestação do SUV a cair todos os meses, e um desconhecimento total das raízes.
Um apagamento do passado, embora este esteja em todo o lado no presente.
Na casa, no trabalho, nos interesses particulares.
As moças e os moços nunca meteram as mãos na terra, fogem das olarias, recusam as marcenarias, desdenham as artes e os ofícios, dos da panela aos do couro e da lã.
Principalmente, não aprendem sobre o seu património, que é único.
É um modo de olhar o mundo, de ver a medida da vida, que até há muito pouco tempo foi moldado pelo passado e por o que os cercava.
Temo que esta nova guerra pela terra seja a mais destruidora de todos, e que o destino que procuro para o Alentejo seja uma utopia.
Há neste território uma cicatriz de afastamento, submissão, sofrimento e pobreza que parece não ser possível de eliminar.
Olho para as paredes de terra de há trezentos anos da minha casinha na aldeia, para os canteiros de barro, para as minhas meninas no jardim, e não é isto que quero pensar.
Sinto o medo de que para o ano o tractor já não traga melões de casca de carvalho.
Foto: Guy Le Querrec, Pias, 1975.