Inteligência artificial até 2041 - Dez visões para nosso futuro
Lee & Qiufan (2021) (LQ) publicaram texto chamativo sobre impactos futuros da IA, buscando sublinhar perspectivas mais animadoras, embora sempre muito complexas da Inteligência Artificial (IA), primeiro relevando história real (não inflada) da IA e, segundo, para parar de produzir pânicos, usando mais a imaginação. A história da IA sempre foi marcada por altos e baixos; mais recentemente, com a analítica digital e deep learning viveu um dos ápices; mas, com as limitações impostas pela presença de ideologias, fake news, discursos de ódio, racismo etc. tanto nos algoritmos, quanto nos megadados, sofre outra baixa. A perspectiva de substituir a mente humana, ou de a superar definitivamente, está adiada (talvez soterrada). A expectativa excitadíssima do deep learning avançou muito, tornando a IA parceira contundente dos humanos, mas, como a máquina não tem a história biológica do cérebro, nem sua complexidade orgânica, faz coisas melhor que o cérebro, enquanto não faz outras fundamentais para a comunicação humana. O computador é máquina mecânica, linear, sequencial, nisto também previsível e controlável, processa e armazena dados muito além da capacidade cerebral, aprende, no plano linear muito mais efetivamente que humanos, mas a aprendizagem humana vai muito além do plano linear: entende o que faz, combina razão e emoção, desconstrói a realidade e o discurso sobre a realidade, aprende como autor, é complexa, hermenêutica, lida com ambiguidades e duplos sentidos, produz sentidos etc. Citam Turing – O que queremos é uma máquina que aprende da experiência – e Clarke – Toda tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da mágica (LQ:VII). A primeira citação já é real, embora apenas na dimensão linear, aproveitando a linearidade da experiência; experiências complexas, porém, ainda não cabem na IA. A segunda citação persiste, porque, para muitos, a analítica digital acarreta modo de tratamento dos megadados que a máquina manipula e os humanos não entendem bem, realizando, de certo modo, que a interpretação dos megadados tem suas peculiaridades, quando feita por humanos e quando feita pela máquina – podem complementar-se, mas são também diferentes ou mesmo estranhas.
I. INTRODUÇÃO (Lee) – História real da IA
Lembra uma citação própria, de 40 anos atrás, quando estava fazendo seu PhD em Carnegie Mellon U.: “IA é software e hardware inteligente capaz de realizar tarefas que tipicamente requerem inteligência humana. IA é a elucidação do processo humano de inteligência, a quantificação do processo humano de pensar, a explicação do comportamento humano e o entendimento do que torna possível a inteligência. É o passo final da humanidade na trajetória do autoentendimento, e espero que fazer parte desta ciência nova e promissora” (LQ:XI). Sobretudo na tecnologia digital, o que se disse há 40 anos não vale mais! É um alerta para Lee, que quer prever 2041, uma temeridade. Lembra McCarthy que inventou o termo “Inteligência Artificial” no verão de 1956; IA parece para muitos a quintessência do século 21, mas isto vem de longe. Na vida de Lee, IA era coisa acadêmica, com poucas adaptações comerciais. As aplicações práticas evoluíram devagar. Nos últimos 5 anos, contudo, IA saltou para a tecnologia mais avassaladora do mundo. Um ponto de virada ocorreu em 2016 quando AlphaGo, máquina dos engenheiros de DeepMind, derrotou Sedol no jogo Go (Google DeepMind Challenge Match), visto por muitos como jogo que exige muita inteligência, sabedoria, refinamento do espírito. AlphaGo foi montado sobre deep learning, tecnologia que usa megadados para se ensinar coisas. Foi inventada há anos, mas apenas agora há suficiente poder de computação para mostrar sua eficácia e suficientes dados para treinamento, chegando a resultados excepcionais. Comparando com o início da trajetória de Lee há 40 anos, temos agora cerca de um trilhão de vezes a mais de poder de computação para experimentação em IA e o armazenamento de dados é 15 milhões de vezes mais barato. Os aplicativos para deep learning – e suas tecnologias relativas da IA – vão tocar, na prática, todos os aspectos da vida. IA agora está num ponto de virada, deixando a torre de marfim, também os passos lentos de outrora.
Em apenas 5 anos, IA bateu campeões humanos no Go, pôquer e o videogame Dota 2 e tornou-se tão poderosa que aprende xadrez em quatro hora e joga com humanos vencendo sempre. Em 2020, resolveu um enigma de 50 anos da biologia chamado dobramento da proteína. A tecnologia ultrapassou humanos no reconhecimento da fala e de objeto, serviu aos “humanos digitais” com realismo estranho na aparência e na fala, e obteve avaliações de superação em exames para universidade e licença médica. Supera juízes em sentenciamento justo e consistente, e radiologistas na diagnose de câncer de pulmão, bem como em dotar drones que vão mudar o futuro da entrega, agricultura e guerra. Finalmente, capacitando veículos autônomos que andam mais seguros nas rodovias e ruas. Enquanto IA persiste em avançar e produzir aplicativos novos, para onde vamos?
Lembra de seu livro de 2018 – AI Superpowers: China, Silicon Valley, and the New World Order – abordou a proliferação de dados, o “novo petróleo” que turbina a IA. Estados Unidos e China lideram a revolução da IA; os primeiros puxam avanços na pesquisa; a segunda, corre mais rápido nos aplicativos e megadados. Lee predisse novos avanços, da decisão puxada por megadados à percepção maquinal, a robôs e veículos autônomos. Projetou que novos aplicativos nas indústrias digitais, finanças, varejo e transporte irão erigir valor econômico sem precedentes, mas também criar problemas na perda de empregos humanos e outros desafios. IA é tecnologia de oniuso que vai penetrar virtualmente todas as indústrias. Os efeitos estão aparecendo em 4 ondas, começando com aplicativos da internet, seguidos por aplicativos empresariais (serviços financeiros, por exemplo), percepção (pensemos em cidades inteligentes) e aplicativos autônomos, como veículos:
i) onda 4 de 2018: IA autônoma: agricultura, manufatura (robótica), transporte (veículo autônomo);
ii) onda 3 de 2016: IA de percepção: segurança varejo, energia; IOT, casas e cidades inteligentes;
iii) onda 2 de 2014: IA de negócio: serviços financeiros, educação, serviços públicos, médicos, cadeia de suprimento, escritório de retaguarda;
iv) onda 1 de 2010: IA da internet: aplicativos/sites, busca, advertising, jogos/entretenimento, e-comércio, âmbito social, estilo de vida da internet (LQ:XII).
Aposta que, no momento e pela frente, as predições irão avançar ainda mais, tornando-se realidade. Há que prosseguir para novas fronteiras, sendo pergunta constante: o que vem depois? Em 5, 10, 20 anos? Que será dos humanos no futuro? Alguns creem estarmos vivendo uma “bolha da IA” que pode estourar, ou esfriar, pelo menos. Quem tem visões mais drásticas ou distópicas acreditam em tudo, desde a noção de que gigantes da IA vão “sequestrar nossas mentes” e inventar nova corrida utópica dos “ciborgues humanos”, até a chegada do apocalipse puxado pela IA. Tais tiradas provê da curiosidade genuína e medo compreensível, mas são em geral especulativas ou exageradas, passando muito ao largo da realidade.
A especulação é fomentada pelo fato de que IA é complexa e opaca. Para Lee, as pessoas apelam para três fontes de entendimento dela; ficção científica, notícias e pessoas influentes. Nada disso é suficiente e seguro. Há que ser seletivo na análise, também para haver aprofundamento. Vai haver aplicativos excitantes em cenários futurísticos da IA, que vão ser excelentes. Primeiro, IA vai criar valor enorme – PricewaterhouseCoopers estima $15.7 trilhões em 2030 – o que vai ajudar a reduzir a fome e pobreza. Vai criar serviços eficientes que vão poupar tempo de nossas vidas, assumindo rotinas. Por fim, humanos vão trabalhar simbioticamente com IA, enquanto IA faz análise quantitativa, otimização e trabalho de rotina, e humanos contribuem com criatividade, pensamento crítico e paixão. A quem espera o pior, é importante contar outras versões, procurando focar em IA realista, não fantasmagórica. Quando à data de 2041 é uma referência sugestiva, para termos algum limiar pela frente. Muitos dirão que a confiança está exagerada! Revela que nos 40 anos, envolveu-se em pesquisa de IA e desenvolvimento de produto em Apple, Microsoft, Google e lidou com $3 bilhões em investimentos. Tem, então, experiência farta, acrescendo que, sendo conselheiro de governos em IA, pode arriscar predições razoáveis, sem serem especulativas. Como IA penetrou apenas 10% das indústrias, há espaço enorme para a criatividade futura. Mesmo sem saltos ou poucos, IA está fadada a gerar impacto profundo na sociedade.
Há uma indicação interessante na diferença entre IA e humana – quantitativa vs qualitativa, mesmo en passant. Indica também que máquinas e humanos vão conviver, cada lado com suas virtudes e limitações. Mas parece muito inflada a expectativa, sobretudo na formulação de 40 anos atrás – a aprendizagem maquinal, mesmo tão exaltada e surpreendente, sobretudo aprendendo por si com autotreinamento, é linear, cumulativa, agregativa, ou quantitativa, e nisto, muito além da capacidade humana na analítica digital linear, mas não é páreo para a aprendizagem cerebral de cunho orgânico, complexo, cultural, histórico, autoral. Falta à máquina a história de vida da biologia, de bilhões de anos, misturando o linear e o complexo, de modos que ainda não desvendamos. Um ser vivo é gestado organicamente, via processos extremamente complexos, que sempre possuem o lado linear (DNA, genes, por exemplo), mas transbordam para dimensões da autopoiese, são entidades que se desenvolvem de dentro, possuem margem de manobra, são autorais, enquanto a máquina (ainda) não sabe o que é isto. Uma máquina é montada, peça por peça, sendo o todo a soma das peças (pode ser desmontado e remontado, resultando na mesma entidade); um ser humano não pode ser tratado assim, porque não é apenas entidade linear: como neurônios se tornam a mente imaterial ainda é mistério e o computador não emula isto.
II. INTRODUÇÃO (Qiufan) – Como podemos aprender a deixar de se preocupar e abraçar o futuro com imaginação
Recomendados pelo LinkedIn
Conta que, em 2019, visitando Barbican Center em Londres, achou uma exibição: IA: mais que humana. Revela que mudou sua visão com o que viu, sobretudo superou vieses e equívocos sobre IA. Cada sala revelava novas maravilhas, tudo bem sintonizado com a definição extensiva dos curadores do que IA inclui. Havia Golem, criatura mítica no folclore judeu; Doraemon, o herói amado japonês de anime; os experimentos iniciais da ciência do computador de Babbage; AlphaGo, programa concebido para desafiar o intelecto fundamental humano; a análise de Buolamwini sobre viés de gênero do software de reconhecimento facial; e a arte interativa digital de ampla escala de teamLab banhada com filosofia e estética xintoísta. Era um prêmio ao pensamento interdisciplinar. Lembra da lei de Amara: tendemos a superestimar o efeito de uma tecnologia no curto prazo e a subestimar no longo prazo. Muitos pensam muito estreitamente sobre IA: o bot assassino de The Terminator, algoritmos incompetentes que nunca rivalizariam com a sagacidade ou ameaçariam a existência dos humanos, invenções tecnológicas sem alma, que nada têm a ver com como humanos percebem o mundo, comunicam emoções, gerem instituições e exploram outras possibilidades da vida.
Para Qiufan – tal qual se revelou em estórias desde o conto chinês de Yan Shi, a mecânica que cria a humanidade, até Talos, o autômato de bronze na mitologia grega – a corrida humana pela IA persistiu na história mundial, muito antes do computador, revolucionando toda dimensão civilizatória, também porque sempre parte central dela. Ficção científica, a escolha de Qiufan, tem papel bem delicado em investigar o paradigma humano-máquina. A novela de 1818, Frankenstein, muitas vezes aclamada com primeira no gênero, toca questões até hoje sensíveis: com auxílio da tecnologia, podem humanos criar vida inteligente que difere das formas vigentes de vida? Qual a relação entre a criação e o criador? O arquétipo de cientista maluco impondo suas criações ao mundo originaram-se da obra prima de Shelley há 200 anos. Enquanto muitos descartam a ficção científica, culpando pela visão estreita ou negativa da IA, é apenas um pedaço da estória. Tem a capacidade de servir como advertência, mas narrativa especulativa tem a habilidade única de transcender limitação espaço-tempo, conectar tecnologia e humanidades, apagar os limites entre ficção e realidade e espalhar empatia e pensamento profundo dentro do leitor. Harari chamou ficção científica “o gênero mais importante artístico” do tempo (LQ:XX). E isto determinou a colaboração com Lee.
Este tem entendimento enorme e profundo da pesquisa de ponta e suas aplicações nas empresas, podendo delinear modos nos quais IA poderá mudar a sociedade em 20 anos em áreas como medicina e educação, entretenimento, emprego e finanças. Conta que anos antes havia desenhado a ideia de “ficção científica realista”, levando em conta que imaginação é real na vida humana. Antes de criar qualquer futuro, há que imaginá-lo. Antes de virar escritor de tempo integral de ficção, trabalhou em tecnologia – uma prova de que engenheiros e tecnólogos prezam a imaginação, não apenas o lado técnico.
CONCLUSÃO
Apesar da insistência em realismo, considero que a visão dos dois AA é exagerada, apressada, muito influenciada pelas disputas entre Estados Unidos e China, também pelas chances de mercado. A comparação, contraposição, entre cérebro e computador ainda obscurece muito a discussão da IA, porque se trata de suas tecnologias que podem se complementar, mas são muito distintas. A tecnologia biológica depende de muito tempo, é incremental como regra, e tem propriedades orgânicas complexas, autopoiéticas, por ser “viva”, não se faz por ajuntamento quantitativo apenas, mas por reconstrução dotada de margens de liberdade, como é o processo evolucionário. Computador não evolui organicamente, não tem autoria nenhuma do estilo vivo, não é autopoiético, não precisa crescer, desenvolver-se, formar-se, amadurecer etc., embora precise se atualizar, mas apenas linearmente. Não admira, então, que suas virtudes podem não confluir diretamente, havendo propriedades para cada lado. O computador já ultrapassou os humanos na força bruta de computação, quantitativa, lidando com capacidade de cálculo muitíssimo além do cérebro, também em termos de armazenamento. Quando se diz que a máquina aprende (deep learning), refere-se a processos lineares, não hermenêuticos, intersubjetivos, culturais e históricos, políticos, próprios da inteligência humana, agregando um estilo de entendimento autoral, de dentro para fora, sempre aberto, em andamento, numa completo. Nesses processos lineares, porém, a máquina tem uma potência que ultrapassa enormemente a capacidade humana, reconhecendo-se ademais que a interpretação computacional, mesmo sendo linear, frequentista, é diferente da humana, o que acarreta dificuldades de entendimento, porque cada programa escava padrões comportamentais recorrentes que podem variar de caso a caso. Isto mostra que há muitos caminhos para interpretar a realidade, que, ao final, não se mostra inteira para nenhum esquema interpretativo. O que humanos ainda possuem de próprio, é sua interpretação intersubjetiva, histórica e cultural, racional e emocional, política, dada a politicidade humana, que o computador não tem intrinsecamente, apenas no uso extrínseco, como qualquer tecnologia.
Daí segue também a ingenuidade de imaginar que a IA vai ser um benefício para a humanidade como um todo, apostando em virtudes do mercado liberal, que tem mostrado o inverso: enquanto consegue, em casos esporádicos apenas, realizar crescimento econômico incisivo, como na China, no geral gera concentração da renda, mercantiliza tudo na sociedade, inclusive as interações humanas, a tudo compra e vende, porque inverte a lógica: mercado é fim, sociedade é meio. IA poderia ser de utilidade geral, se fosse bem comum. É um bem privado! Ser bem privado favorece muito a criatividade na área, porque é turbinada pela inovação destrutiva capitalista (Schumpeter), que, porém, não cabe à vida no planeta. Tais disparidades, porém, têm um lado alvissareiro: IA e humana não são inimigos fatais; podem complementar-se, ao lado de rivalizar. A noção de que haverá uma superinteligência maior que a humana implica comparação linear – nesta dimensão, a IA já supera muito a humana – além de fantasiar um cenário de destruição humana, prevendo que a superinteligência irá sufocar a humana, usando em geral a hipótese da seleção natural. Não se podem fechar as portas tecnológicas, porque não sabemos o futuro; assim como a natureza achou a vida de maneira imprevisível e até hoje não explicada minimamente – a hipótese prevalente é do evolucionismo, mas é hipótese – não se descarta que a tecnologia digital possa inventar coisas do arco da velha, até mesmo alguma forma de vida imprevista, mas dificilmente fará a vida obtida evolucionariamente, porque esta tecnologia não é digital apenas.
Em parte, o caráter afoito dos fãs da tecnologia digital é reflexo da lógica liberal de mercado: sendo este a razão da sociedade, não o inverso, não se veem outras inventividades que não sejam as mercadológicas, lineares, quantitativas, via força bruta de computação. O positivismo ajuda muto nesta redução de tudo ao quantitativo linear, obsessão da ciência atual. Ignora-se que a vida é fenômeno que, admitindo o lado linear sempre, quantitativo, material, desdobra-se complexamente em outras dimensões que ainda não sabemos desvendar, mas resultam em dinâmicas que pedem outras tecnologias de desenvolvimento autoral, não de mero crescimento. Por exemplo, todo processo de aprendizagem humana, sendo autopoiético, acrescenta algo de sua autoria e é diverso em cada cérebro, por ser este orgânico, não só linear. Um computador faz todo dia a mesma coisa. Um cérebro, nunca.
REFERÊNCIAS
LEE, K. & QIUFAN, C. 2021. AI 2041: Ten visions for our future. Currency.