INTERPRETAÇÃO CASUÍSTICA DAS NORMAS
Acabei de ler a seguinte afirmativa, em petição de um advogado: "cada operador do Direito deve, de acordo com suas bases teóricas pessoais e até mesmo com uso da hermenêutica, decidir qual linha interpretativa assumirá".
É uma representação perfeita do que venho denominando interpretação casuística da norma.
Se cada operador deve interpretar as normas segundo suas bases teóricas pessoais, há de se concluir que a norma terá milhares de interpretações, algumas até similares, mas nunca iguais. E se a mesma norma pode ser interpretada de forma individual por pessoas com interesses antagônicos, para que serve a norma? Para cada um defender seu ponto de vista?
Por certo que não. Quando estudei hermenêutica (há muitos anos), aprendi com o (saudoso) prof. Condorcet (e lendo Carlos Maximiliano) que há métodos jurídico-científicos que devem ser adotados para a interpretar as normas. E o uso de tais métodos tem uma finalidade expressa - tentar alinhar ou conciliar a busca de uma única (e mais adequada) interpretação da norma. Porque o ato de interpretar não pode ser arbitrário.
Quando se sustenta que a interpretação deve considerar o contexto histórico, por óbvio não se trata do contexto histórico pessoal. Porque uma pessoa de 70 anos tenderá a interpretar a norma considerando uma "história" totalmente diferente de um jovem de 25. Interpretação histórica, portanto, não se refere a história pessoal, mas ao momento histórico em que a norma é aplicada.
Quando se sustenta uma interpretação teleológica, reforçam-se as ideias de impessoalidade. Não se considera, no ato hermenêutico, o interesse pessoal do intérprete. Interessa saber o intuito do legislador - que, em tese, representa a coletividade. Em outra faceta, interessa saber o objetivo da própria norma, para que ela foi criada e quais os objetivos deveria atingir.
Por fim, quando se recomenda uma interpretação lógico-sistêmica, busca-se, mais uma vez, suplantar uma visão estreita e pessoal, assumindo que a norma deve ser integrada a todo o sistema jurídico, em suas diversas facetas, propostas e objetivos. Mais uma vez reforça-se a universalidade e coletividade em prejuízo da individualidade.
Nesse contexto, nada tem me incomodado tanto nos últimos anos quanto essa "individualização e interpretação casuística" das normas. Me exaspera quando alguém não tem mais pudor em sustentar que "interpreto a norma do jeito que eu quiser e segundo meus interesses".
Quase ninguém mais lê a exposição de motivos das leis ou as discussões do processo legislativo para buscar o intuito do legislador e o objetivo de edição da norma. Aplicadores do Direito interpretam um artigo sem considerar (ou ignorando) outro que invalida sua interpretação. Interpretam uma lei sem considerar que essa mesma linha interpretativa inviabilizaria a eficácia de outra.
Infelizmente temos exemplos até mesmo nos poderes constituídos - que representam a sociedade. Membros do Poder Judiciário interpretam de forma casuística, sem se preocupar em manter coerência ou justificar cientificamente a mudança interpretativa. Chegou-se ao ponto de dizer que uma norma que contém a conjunção aditiva "e" deveria ser entendida como se tivera a conjunção alternativa "ou". Órgãos do Poder Executivo não tem pudor em editar normas administrativas que inviabilizam direitos criados pelo Legislativo - e quem quiser que vá buscar a garantia de seus direitos no Poder Judiciário. Nem as cláusulas pétreas da Constituição tem uma interpretação geral consolidada. Que o digam os direitos fundamentais em tempos de pandemia e conflitos de princípios.
Não rejeito a ideia de que a interpretação é sempre um ato individual e, por vezes, solitário. Tampouco desconheço o fato de que é impossível a um indivíduo interpretar sem a interferência de suas convicções. Mas refuto a tese de que podemos manejar a interpretação das regras segundo as conveniências momentâneas, dispensando metodologias teóricas e a melhor técnica científica.
Também não pleiteio que a interpretação deva ser imutável. Como disse determinado Ministro da Suprema Corte, não se pode cobrar coerência absoluta e imutável. O intérprete evolui, amadurece e, certamente, poderá interpretar uma mesma norma de forma diferente ao longo do tempo.
Mas a teoria da impermanência não pode justificar casuísmo, principalmente de interesses. O intérprete do Direito deve ser servo da sua consciência, mas conhecedor da consciência coletiva (desculpem o uso imprópio do termo). Não pode interpretar a norma para dizer "o que o cliente quer ouvir" ou para atender os interesses momentâneos do caso sob análise ou os seus próprios. Há de se reconhecer que há uma linha interpretativa razoável, sugerida ou acatada por uma maioria que deve ser buscada e, no mínimo, admitida como aplicável.
Não que a doutrina e a jurisprudência devam ser adotadas como axiomas perpétuos e absolutos. O advogado que sustenta um determinado entendimento porque o Supremo assim decidiu ou porque determinado doutrinador sustentou, restará escravo das opiniões alheias, incapaz de pensar por si mesmo e aplicar o Direito a um caso novo.
Mas me ensinaram que as normas são instrumentos de pacificação da sociedade, de solução de conflitos gerados por interesses pessoais, às vezes antagônicos. Se as leis são para pacificar e conciliar interesses, por certo que deve-se buscar uma interpretação das normas que possam ser entendidas e assumidas por todos.
Talvez esse seja, atualmente, um dos motivos da absurda judicialização da nossa sociedade. As pessoas esqueceram que há normas que contém um significado que pode ser extraído com métodos científicos e entendidos (assumidos) como razoáveis por todos. O que vemos hoje é o oposto. Vivemos em uma sociedade com sede de direitos e privilégios, que busca interpretar a norma, não segundo critérios razoáveis para buscar um entendimento comum, mas como instrumento para tentar obter mais benefícios sem obrigações.
"La loi c`est moi" ... regredimos bastante!
Engº. DE MINAS/ Engº de Segurança do Trabalho SUPERVISOR DE MINERAÇÃO NA IBAR Ltda.
9 mExcelente texto... por isso, que membros da alta cúpula jurídica desse País, chamado Brasil, defendem algo nas redes e julgam outras verdades, tem jurídicos que defenderam o desarmamento anos atrás, mas hoje com outra forma de pensar estão renovando o porte de arma... claro olhando o lado dele... mas deixo aqui um texto abaixo, uma parte só... que reflete nossa situação jurídica do País atual....segue: "A vontade do legislador não será a da maioria dos que tomam parte na votação da norma positiva; porque bem poucos se informam, com antecedência, dos termos do projeto em debate; portanto não podem querer o que não conhecem. Quando muito, desejam o principal: por exemplo, abaixar ou elevar um imposto, cominar ou abolir uma pena. Às vezes, nem isso; no momento dos sufrágios, perguntam do que se trata, ou acompanham, indiferentes, os leaders, que por vez prestigiam apenas o voto de determinados membros da Comissão Permanente que emitiu parecer sobre o projeto. Logo, em última análise, a vontade do legislador é a da minoria; talvez de uma elite intelectual, dos componentes, que figuram nas assembleias políticas em menor número sempre" (negritos de ora)
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4 aMuito bem!