Introdução do livro "Um T.O.C de Criatividade"​
“Se há um livro que você quer ler, mas não foi escrito ainda, então você deve escrevê-lo.”

Introdução do livro "Um T.O.C de Criatividade"

São Paulo, 28 de setembro de 2016.

Pode me chamar de Edgar Reis. Tenho vinte e seis anos, não sei se algum dia voltarei para minha casa, também não garanto que haverá casa se algum dia eu voltar, mas de uma coisa eu tenho certeza: esta noite ficará para a história! O dia mais aflitivo da minha vida, com certeza! Mas também, o mais importante para toda a humanidade. Não sou exatamente o tipo de cara que gosta de ficar trancado num quarto fechado, como este, escrevendo sobre minha própria vida, sobre coisas do passado, mas acredite: você vai querer saber o que aconteceu. 

Há quase uma hora, eu estava preso no metrô, aconteceu alguma coisa nos trilhos e o trem passou a andar com velocidade reduzida, havia poucas pessoas dentro do vagão, dez no máximo, entre homens e mulheres. Todos com o medo estampado em suas faces! Uma criança chorava nos braços de sua mãe desde o momento em que entrei ali, um espernear agudo e interminável. Um homem ferido no rosto tentava desesperadamente ligar para alguém, ele dizia: “Por favor, atende! Atende logo! Mas que droga!”. Uma senhora de cadeira de rodas permaneceu me encarando, como se eu fosse algum tipo de suspeito ou coisa pior, ela nem piscava, mantinha os dentes cerrados e o olhar travado em mim. Senti arrepios só de manter o contato visual. 

A voz mecânica feminina alertou que havíamos chegado à Estação Luz, e isso significava que eu estava perto. Senti um alívio ao deixar o vagão. Passei pelas catracas e notei que o medo havia se alastrado como uma doença em todas as pessoas, olhos marejados, lábios trêmulos, alguns lamentavam e outros estavam muito feridos e apenas, com as mãos sobre a cabeça, observavam-me com estranheza, assim como a cadeirante no metrô. Pensei ter ouvido um dos passageiros citar meu nome num breve sussurro. A se julgar por todos os olhares contra mim, concluí que não era bem-vindo. A essa altura, já era de se esperar esse tipo de reação. Acelerei o passo evitando olhar para trás. 

Desci uma grande ladeira e encontrei os pontos de referência que me levariam até meu destino. A maioria das lojas estava fechada, outras poucas ainda estavam abertas, mas não havia mais ninguém vendendo ou comprando, balcões abandonados com mercadorias à mostra, caixas abertos ainda com dinheiro à vista. “O que houve neste lugar?”, pensei. Estava garoando e fazia muito frio, o céu nublado e os ventos gelados compunham um cenário deprimente da cidade de São Paulo. Vi um ou dois carros em movimento na Avenida Prestes Maia, a poucos metros um homem tentava dar a partida num Palio vermelho, o sujeito usava uma touca preta e mesmo de longe pude notar que estava falando sozinho, o veículo não parecia ser dele. “Está roubando, com certeza!”.

Mas quem poderia impedir qualquer ato criminoso, já que não havia mais policiais ou qualquer mecanismo de segurança? Então, ele olhou para mim, bem nos meus olhos, parou de movimentar os lábios e no mesmo instante entendi que precisava me afastar o mais rápido possível. Prossegui andando e aos poucos acelerei o passo novamente enquanto o homem me observava de longe, deixando de lado o volante, abrindo a porta lentamente.

Finalmente consegui chegar ao centro de São Paulo, sempre ouvi dizer ser praticamente impossível ficar perdido nesta cidade, enquanto corria observei muitas placas indicativas retorcidas e espalhadas pelo chão, as ruas estavam repletas de lixo, barracas destruídas com colares e pulseiras coloridas estilhaçadas na calçada, havia uma viatura de cabeça para baixo dentro de uma loja de sapatos, a sirene ainda piscava, sem emitir nenhum som de alerta, todas as outras lojas estavam abertas e abandonadas. Eu sei que vocês estão aqui, por que estão se escondendo? E pensar que em épocas como o Natal, toda aquela região ficava repleta de pessoas de todos os lugares, consumindo e pesquisando preços. O lugar mais frequentado do centro de São Paulo, eu diria.

Meu coração estava acelerado e aos poucos uma dor tomou conta de meu diafragma, não era para menos, afinal, havia acabado de percorrer uma longa distância do metrô até aquela região, voltei minha atenção para um poste retorcido, cuja placa dizia: PORTO GERAL. Segundo as coordenadas que eu tinha em mãos, era justamente por meio daquela ladeira incrivelmente íngreme que eu deveria passar para chegar ao meu destino! Arfante, subi a rua como se estivesse fugindo de cães raivosos, mas na metade do caminho, já quase sem pensar, parei escorado na parede de uma loja de roupas para recuperar o fôlego, apesar do clima frio e da garoa, eu estava suado e exausto e sabia que não poderia me dar o luxo de ficar mais nem um minuto ali. 

A loja estava vazia, uma placa PROMOÇÃO IMPERDÍVEL: QUALQUER PEÇA POR APENAS R$ 29,90 havia sido quebrada ao meio e abandonada sobre um amontoado de calças de sarja. Uma lâmpada oscilava entre estalos e faíscas no teto e dezenas de peças de roupa estavam jogadas no chão. Pus as duas mãos no joelho, apoiando-me num último intento de recuperar o fôlego e então deixei aquele lugar. Atravessei as calçadas que circundavam a Praça da Sé, em toda parte havia papéis e sujeira, carros ainda pegavam fogo quando voltei minha atenção para a Rua 15 de Novembro. “Onde está todo mundo?”. Meu relógio indicava 15h13 e não havia absolutamente ninguém em lugar nenhum em toda aquela região, pelo menos era o que parecia. Olhei para trás ainda pensando no homem do Palio vermelho. Senti como se estivesse em uma área de quarentena, a garoa estava engrossando e por alguns segundos não foi possível ouvir nem um sinal de vida, bem a minha frente havia restos de um ônibus ainda em chamas. A minha direita, vitrines destruídas, árvores caídas na beirada da Praça da Sé, nesta calmaria reduzi o ritmo de meus passos assim que pisei na praça. Por mais que eu nunca tivesse visto aquele lugar pessoalmente, sabia que nunca ficava totalmente vazio e silencioso, afinal, o centro de São Paulo era o centro de São Paulo.

Ali, após refletir sobre o que havia acontecido naquela região, lamentei muito não estar ao lado das pessoas mais importantes em minha vida. Passei a mão pelo cabelo até chegar a minha nuca, e antes de sequer concluir o que faria a seguir, ouvi uma multidão furiosa saindo de trás da igreja. De onde eu estava constatei que eram homens de terno e gravata, andavam rápido, a passos largos e irregulares, batiam entre si, como se disputassem quem chegaria primeiro, contei no mínimo vinte e poucos homens vindo em minha direção, todos desconsiderando a catástrofe que havia acontecido no centro de São Paulo, começaram a se espalhar! 

A minha esquerda, a uns trinta metros, um homem velho de casaco verde-musgo gritou algo que eu não entendi, mas o que quer que tenha dito chamou a atenção de mais pessoas que estavam, até aquele momento, escondidas em algum lugar, ele olhou bem nos meus olhos, da mesma maneira que o homem do Palio vermelho havia feito, senti meu coração apertar e cerrei os dentes imediatamente. Depois ele ergueu as mãos com uma agilidade não condizente a sua idade e todos os outros atrás dele fizeram o mesmo, tive de correr e sabia que não poderia parar para descansar tão cedo. 

Aquelas pessoas gritavam meu nome, homens e mulheres que eu nunca havia visto em toda a minha vida gritavam como se eu fosse o monstro de Frankenstein! Eu ficaria mais tranquilo se todos estivessem carregando tochas e lanças, mas para minha infelicidade era algo muito pior. 

Pensei em descer a ladeira Porto Geral novamente, mas assim que vi outras pessoas surgindo com uma expressão agressiva, contornei o quarteirão. Em alguns rápidos momentos olhei para trás e pude ver os homens de social brigando com os mendigos e outras pessoas, durante o primeiro momento acreditei que eram duas classes sociais em uma espécie de guerra civil, mas logo percebi que cada um lutava por sua própria vida e aparentemente não estavam no pleno controle de suas ações. Meu nome deixou de ser citado e isso me concedeu um resquício de alívio. Havia um prédio bem a minha frente, cuja fachada era constituída de pastilhas cerâmicas e pintura clara, acima do pequeno jardim da entrada o letreiro dizia EDIFÍCIO KAPPER, não havia guarita de zelador e o portão estava aberto.

Um homem trajado de preto passou perto de mim e disse que me daria algum tempo, disse também que eu precisava ficar longe daquelas pessoas. “Ainda bem que você está aqui.”, pensei e agradeci num gesto rápido seguindo pelo caminho que ele me indicou. Olhei para trás enquanto passava pelo portão do prédio e o vi lutando contra cinco homens de uma vez, como naqueles filmes do Jet Li, só que usando outros meios para atacar e se defender. Desta maneira, passei pela entrada e subi as escadas sem pensar em qual andar me esconderia, não havia luz em parte alguma, chamar o elevador seria totalmente inútil. Subi as escadas pensando na minha decisão de vir para São Paulo, relembrando de tudo que me levou a escolher este caminho estreito e evitando pensar nas consequências se meu plano desse errado. 

Cansado de subir as dezenas de degraus virei num corredor a minha direita. O piso azulejado estava parcialmente danificado, observando de onde eu estava parecia que alguém havia tentado levar uma geladeira até um apartamento e a deixara cair algumas vezes no caminho. Havia quatro apartamentos naquele andar, dois a minha direita e dois à esquerda, a minha frente dava para ver o céu nublado por uma janela. Uma das portas estava semiaberta. “Apartamento número sessenta.”. Entrei, fechei-a e a tranquei da maneira que pude. Corri até uma das janelas empoeiradas e vi centenas de pessoas brigando umas com as outras, usando o que lhes vinha à mente para atacar e se defender. 

O homem que me possibilitou entrar neste prédio defendia a entrada com unhas e dentes, felizmente não eram todos que tentavam entrar. Afastei-me da janela atordoado, encostei-me à parede, sentindo-a gelada e sentei no chão recuperando minhas energias e tentando assimilar tudo o que havia acontecido até o momento. “Eu não sei nem por onde começar.”. Apesar de ter permitido que uma única lágrima escorresse em meu rosto, fiz o máximo para voltar meus pensamentos para a única maneira de acabar com esse pesadelo.  


Entre para ver ou adicionar um comentário

Outros artigos de Rafael Oscar

  • Problema com Peixes e Patos

    Problema com Peixes e Patos

    É claro que toda empresa se preocupa em aumentar seus lucros. A grande questão é: como? Vou descrever um processo de…

    1 comentário

Outras pessoas também visualizaram

Conferir tópicos