JAMAIS SEREMOS HUMANOS
"...Julius trocou cheiros com Morávia durante passeio matinal no parque. Foi atração ao primeiro contato. Dobermann da melhor estirpe, inteligente, destemido e forte, ele trotava garbosamente seguro à coleira conduzida pelo pai – Fávaro –, quando os receptores olfativos liberaram sinais elétricos. Transmitidos ao cérebro, reverberaram no olhar arisco e guloso, de adolescente com a libido em erupção, ao encontrar os olhos meigos e tristes da fêmea da raça Labrador. Ele estacou, a ponto de quase derrubar o tutor, sacudiu o rabo, babou, latiu. Ela remexia lixo, faminta, suja, desmazelada. Ao vê-lo, abaixou a cabeça, constrangida, humilde. Afastou-se com o rabo entre as pernas, ciente de sua condição miserável, da inferioridade social, ao ouvir o homem ralhar com o filho e levá-lo embora à força. Não tens vergonha? Onde é que já se viu, querer se meter com essa gentinha! Queres pegar uma doença, te encheres de pulgas e carrapatos, é isso? Já pra casa, rapaz. Contenha-se!
O dobermann ganiu, rosnou, recebeu um safanão, aquietou-se, se deixou levar. Passados dois dias, no crepúsculo de um entardecer de março, fugiu de casa, após aconselhar-se com Átila, o gato siamês de olhos azuis, pelagem escura e mente astuta, com quem dividia a ambiguidade, a veleidade e a atenção da família Santiago Carmona – Fávaro, o pai; Dânia, a mãe; Caio Flávio, o filho de 12 anos; Augusta, a filha de nove anos. O amor e a atenção irrestritos dos Santiago, no entanto, se acumulavam em Safira, cadelinha shih tzu de cor castanho-claro, a “dona do pedaço”. Ela reinava absoluta – tal uma pequena, porém egocêntrica déspota –, ciente do seu poder. Mantinha-se acima da “plebe”, formada por Julius e Átila, seus inimigos íntimos, mestres em camuflar ressentimento e desprezo.
Impelido pela paixão, guiado pelo instinto, enlouquecido pelos feromônios exalados pelo cheiro e a urina de Morávia – ele tinha certeza de que era ela –, voou em direção ao parque. Julius temia que algum rival chegasse antes e se aproveitasse da fragilidade da fêmea no cio. A possibilidade lhe soava como insuportável, estava disposto a matar ou morrer pela primazia de ser o pai dos filhos da labrador. Forçou o corpo ao limite, num sprint sensacional, cruzou ruas e avenidas como uma flecha, adentrou noite alta ao parque, arquejante, farejando o ar em busca dos odores da cachorra desejada. Deu de cara com seis ou sete vira-latas curtindo a ociosidade da liberdade sob um jacarandá centenário, à luz de uma lua gorda, sorridente e luminosa. Empertigaram-se, trocaram informações, se prepararam para eventual refrega com o visitante de brilhante pelagem marrom, tons de cor ferrugem na face, nas patas e no corpo esguio, cabeça longa e olhos escuros, enigmáticos.
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– Pessoal, vim em paz – avisou, desarmando espíritos e instintos. – Alguém pode me dizer se viu por aí uma fêmea solitária de pelo caramelo e olhar triste de dar dó?
Os SRD (sem raça definida) entreolharam-se, ainda desconfiados, cheiraram o intruso, confabularam em língua própria dos deserdados e marginalizados, calaram-se e se puderam atentos ante a intervenção de Plutarco, buldogue de corpo abaulado, de cor azulada, olhinhos amarelos arregalados, focinho marrom, voz rouca, que lhe denunciava a idade avançada. Ele estava deitado junto ao tronco da árvore, cabeça erguida, mente atenta..."