Lei 14.599 - Novas considerações e pontos para reflexão

Olá, saudações a todos os amigos desta rede social.

Passados três meses desde que publiquei minhas considerações iniciais acerca da lei 14.599, retorno hoje ao assunto para compartilhar um misto de reflexões, questionamentos e até mesmo alertas.

Uma ressalva desde já: este conteúdo não corresponde necessariamente ao posicionamento da empresa onde atuo. Antes ele representa minhas inquietudes e percepções pessoais, calcadas em quase 45 anos de atuação na indústria de seguros de transportes.

A lei 14.599, publicada em 19 de junho deste ano, trouxe alterações importantes à lei 11.442, que vigora desde janeiro 2007, e que pode ser considerada como o marco regulador da atividade de transporte rodoviário no Brasil.

São várias as alterações trazidas, mas vou me concentrar em duas que, em minha avaliação, causam maior repercussão/impacto:

UM: Ela tornou os antigos seguros facultativos de responsabilidade civil associado ao desaparecimento de carga e de responsabilidade civil por danos causados a terceiros em seguros OBRIGATÓRIOS e;

DOIS: Ela definiu que os seguros de responsabilidade civil só podem ser contratados pelos transportadores (como os legítimos detentores do chamado interesse segurável).

Isto interfere na relação comercial/financeira entre embarcadores e transportadores, cada qual com suas impressões. Não farei juízo de valor de quem está certo ou errado nesta questão.

Vi muitas reações à lei. Uma delas ressaltava a grande preocupação por parte de embarcadores com relação a um hipotético aumento de custo de seguro. Lembro de um comunicado que sugeria aumento em patamar próximo a 3.000% (isso mesmo, o custo atual aumentaria 30 vezes!!!).

Bom, não me cabe avaliar se tal projeção é ou não bem fundamentada. Isto eu deixo para cada um. O que pretendo avaliar é como será o provável comportamento da receita de prêmio de seguros em transportes no Brasil.

Nos últimos 12 meses (setembro/22 a agosto/23), a carteira de transporte nacional, aliada à de RCTR-C e RCF-DC somaram prêmios emitidos de praticamente R$ 4,2 bilhões. O volume das perdas, por sua vez, ficou ligeiramente acima de R$ 2,4 Bilhões, representando uma sinistralidade de 57% (59% se tomássemos o prêmio ganho).

Oras, prêmio de seguros tem uma relação direta com a probabilidade do sinistro se materializar.

Tomemos, como exemplo comparativo, o seguro de uma motocicleta.

A proporção do quanto o prêmio representa em relação ao valor do próprio bem será, como regra, muito superior à proporção encontrada no prêmio de seguro de um veículo de passeio em relação a seu valor de mercado. E isto se explica pelo fato de que as chances de uma moto se envolver em acidentes ou ser objeto de roubo são, comparativamente, maiores.

Mas voltemos aos seguros de transportes.

Alguém imagina que como resultado da publicação da lei haverá maior número de caminhões se envolvendo em acidentes? Ou que o crime organizado esteja comemorando as modificações trazidas pela 14.499? É claro que NÃO!

O mais razoável é supor que as perdas permanecerão no mesmo patamar observado em tempos recentes.

E se não existe razões para supor o aumento do volume das perdas, igualmente não deveria haver razões para embarcadores temerem aumento nos custos de seguro.

O que haverá, e com justa razão, é um natural movimento migratório de parte dos prêmios que embarcadores pagam no seguro de transporte nacional para o ramo de RC-DC.

Mas o que explica essa migração?

É simples. Imaginemos uma seguradora que tenha indenizado 10 milhões em perdas na soma de diversos eventos rodoviários no curso da vigência de sua apólice de transporte nacional. Identificado o causador de tais perdas, é praxe a seguradora agir regressivamente contra tal causador. Isto poderia fazer com que o prejuízo líquido final se reduzisse substancialmente (digamos, para 5 milhões).

Oras, se minha expectativa de perdas é de 5 milhões, meu prêmio de seguro será um. Se a expectativa de perdas sobe para 10 milhões, o prêmio necessário será obviamente maior.

É esse prêmio maior que deveria, hipoteticamente, migrar para a apólice de RC-DC e ser repassado a título de ad-valorem para o embarcador, tornando esta uma conta de soma zero.

Lembremos: há várias dezenas de milhares de transportadores rodoviários operando no Brasil.

Se um dado transportador, como consequência da nova lei, pretender “impor” algum custo adicional, que seja “fora do razoável”, o que o embarcador precisa fazer é o que qualquer consumidor faz: buscar outro fornecedor. O preço “justo” será facilmente encontrado, como ocorre em qualquer atividade em que exista elevado número de oferta.

No passado embarcadores se acostumaram a resolver a questão do (hipotético) exorbitante ad-valorem mediante a estipulação do seguro de RCTR-C e ainda a inclusão de DDR em sua apólice de transporte nacional. Isto se tornou impossível pela nova lei. Portanto, a concessão de DDR ou eventualmente da chamada “carta conforto”, simplesmente não faz mais sentido. Esta afirmação já constava em minha publicação de julho passado.

E assim chegamos ao ponto de alerta e reflexão que comentei no início.

Tenho escutado que há seguradoras dispostas a continuar fornecendo as chamadas DDR ou carta conforto. Torço para que seja algum mal-entendido ou desinformação.

E o que explica tal torcida?

Acredito que isto trará desdobramentos nocivos, que resultarão em perdas financeiras, de um lado, e deterioração da imagem da instituição seguros de transportes, de outro.

Pensemos no seguinte cenário:

A seguradora “X”, na ânsia de atender seu cliente embarcador e seu corretor de seguros, decide por conceder a DDR. Conforte demonstrado acima, isto oneraria o preço do seguro de transporte nacional.

Por outro lado, o transportador “Y”, terá que contratar seus seguros de responsabilidade civil.

Haveria algum segurador, subscrevendo o risco de responsabilidade civil do transportador, disposto a aceitar a DDR ou “carta conforto” e com isto, se dispondo a eliminar ou reduzindo substancialmente o custo deste seguro?

A resposta lógica e coerente à essa pergunta é que NÃO.

Imaginem que ao final da vigência da apólice de transporte nacional essa seguradora “X” conclua que precisa elevar a taxa do seguro em, digamos, 15% para sua renovação. Este aumento sendo explicado por um volume de perdas maior do que o que estimou quando subscreveu a apólice.

Digamos que o embarcador não aceite tal aumento e decida pela troca de seguradora (eventualmente também de corretor).

Digamos finalmente que o volume de perdas indenizadas tenha sido algo próximo a R$ 5 milhões.

Seria razoável pressupor que tal seguradora, não mais tendo qualquer vínculo comercial com o embarcador, decidisse agir regressivamente contra os transportadores de forma a atenuar seu prejuízo?  

Minha opinião é de que tais chances são gigantescas. O prejuízo já está com ela. Não há “nada a perder” (salvo algum custo na forma de honorários advocatícios).

E como transcorreria uma ação judicial assim?

De um lado haverá a carta de DDR emitida pelo autor da ação.

Do outro lado haverá a força do que determina a lei e ainda a própria apólice de RC, que movimentou prêmio (e, portanto, evidencia a transferência de risco para o segurador).

Minha conclusão é que as perdas acabarão por recair, em grande escala, nas apólices de responsabilidade civil. E é isto o que torna incoerente a um segurador diferenciar custo de seguro pela existência da chamada DDR.

Meu justo receio é que se este procedimento (concessão de DDR), for acatado pela indústria de seguros, teremos lançado a semente de um sério problema, que certamente virá.

Quando a condenação na ação regressiva judicial se confirmar, seguradores de transportadores terão súbita e radicalmente modificados seus resultados técnicos. Transportadores, por sua vez, poderão ter que responder por significativos valores, na forma das franquias ou participações obrigatórias constantes de suas apólices.

E assim, sob os olhos do poder judiciário, a imagem das seguradoras, que emitem DDR e posteriormente dão início a ações regressivas, ficará ainda mais prejudicada.

Haverá muita gente nervosa e inconformada. Tal nervosismo fará com que a seguradora que foi condenada a assumir perdas de seus segurados transportadores, haja em sentido inverso, igualmente tornando “nula” a DDR oferecida em algum momento no passado.

Para evitar estas certas consequências deletérias, cada ente participante desta indústria (embarcadores, transportadores, corretores de seguro), deveria combater veementemente esta prática que, a médio longo prazo, será nociva ao próprio mercado.

Os mais antigos lembrarão que houve o tempo em que o mercado de seguros de transportes praticava apólices que continham as chamadas “cláusulas de revisão”. Este era um dispositivo que permitia à seguradora onerar o custo do seguro, no curso da vigência da apólice, sempre que as perdas superavam um patamar previamente esperado pelo segurador. É quase dizer que o risco de prejuízo em uma apólice era praticamente anulado. E não é possível conceber um mercado de seguro dissociado de risco.

A proibição de tais cláusulas de revisão representou um avanço da forma como seguradores são percebidos. Não criemos algo que se voltará contra todos.

Como disse no início deste texto, esta é minha avaliação pessoal, calcada em mais de quatro décadas de atuação nesta indústria.

O mercado de seguro de transportes seguirá existindo. Minha passagem por ele é que se aproxima do fim. Quero ter a certeza de ter dado minha melhor contribuição para que ele seja merecidamente respeitado.

Bom, agradeço a paciência e boa vontade de quem conseguiu chegar até aqui. Estou ansioso para receber comentários, em qualquer sentido, sobre minhas considerações.

Grande abraço a todos e até uma próxima publicação.

João Marcelo dos Santos

Sócio fundador do SBA e Membro do Conselho Executivo da Global Insurance Law Connect - GILC, the global network of insurance lawyers.

1 a

Excepcionais reflexões, José Neto. De qualquer modo, a premissa de que os prêmios do seguro do embarcador (que deixou de ser obrigatório) não se reduzirão, mesmo em face da DDR, pode não se concretizar. Do mesmo modo, o seu raciocínio, excelente, sobre a relação entre sinistralidade "agregada" e prêmios de seguros parte da premissa de que o risco continuou o mesmo (algo a ser confirmado em face das alterações paradigmáticas que a lei traz na gestão e na seleção do risco segurado) e que não há novos ganhadores e perdedores, internos ou externos ao setor de seguros, na operação (premissa a ser confirmada).

Grande Neto ! Parabéns pelo texto e reflexão ao tema. Sempre admirei suas colocações e apontamentos aos assuntos inerentes ao seguro de transportes . Com certeza seu legado junto ao mercado de seguros , já está na calçada da fama do segmento. Abraços

Valdene Alcantara

Consultora e Executiva em Seguros Logísticos

1 a

Neto, primeiramente parabéns pelo texto que nos prende a atenção não só pela brilhante didática como pelo tema bastante comentado e discutido. Sinto que patinamos nas  grandes e boas tomadas de decisões sobre o tema. Os interesses comerciais divergem e muito do objetivo da Lei. Poderíamos ficar horas em conversas, palestras, painéis, enfim... Há muito que se  pensar quando falamos de seguros obrigatórios dos embarcadores, sendo de forma embrionárias cancelados face ao novo contexto, cobranças ad valorem exorbitantes vindo a tona, DDR e carta conforto sendo emitidas, sem realmente considerar pontos importantíssimos colocados por você. Ainda estou divagando aqui na premissa de serem seguros distintos se confrontando e não se complementando, enfim vamos logo marcar um almoço para trocarmos mais ideias.  Grande abraço.

Varne Amaral

Especialista de Transportes na Tokio Marine Seguradora S/A

1 a

Meu mestre Neto. Como sempre incisivo e altamente esclarecedor. Aguardarei suas próximas reflexões pessoais sobre essa grande indústria. 

Lugarezi, Orivaldo

Gestão | Vendas | Multicanalidade | Relacionamento Pós-Vendas

1 a

Grande Neto, Vc, como sempre, lúcido e preciso. Um forte abraço !

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